Voyeur de leituras

Espiar o livro alheio é indiscreto, mas irresistível!

No ônibus, tal era meu empenho em descobrir a identidade do livro que uma moça estava lendo que pegou mal. Num solavanco, quase caí sobre ela. Imagine a posição esdrúxula que a missão requeria. A pobre vítima da ostensiva curiosidade fechou o livro, colocando a mão em cima da capa (maldita!), e proferiu um ofendido “com licença!”. Percebera a indiscrição, reagia como se estivesse lhe espiando o decote. Apesar da natural resistência, o nome do livro acabou sendo descoberto: era evangélico. Foi um banho de água fria. Senti como se tivesse sido expulsa de uma comunhão imaginária, composta pelos que navegam no mesmo universo de fantasias. As escritas religiosas não me tocam, a empatia com aquela leitura era impossível. Uma tristeza, meus esforços haviam sido inúteis.

Sou capaz de ridículos estratagemas para descobrir qual é o livro que alguém esteja lendo em um local público. A capa contém a chave desse mistério, desvela a alma do leitor, é o acesso para um acervo potencialmente partilhável. Quem lê um livro que conhecemos deixa de ser um desconhecido. Porém, essa curiosidade abusada é uma imperdoável profanação da intimidade. Eu devia, como psicanalista, suportar estoicamente a introspecção do próximo. Só me revelariam seus pensamentos quem quisesse.

A leitura é uma intimidade portátil, podemos carregá-la na bolsa, no bolso. É uma experiência onírica controlável, nesse sentido melhor do que as fantasias rebeldes dos sonhos noturnos. Se empolgante, nos possuirá, mas também podemos abandoná-lo para divagar, assim como postergar o clímax. Não é por acaso que a leitura foi acusada de substituta ou incentivadora do onanismo. Sim, trata-se de um prazer solitário: o de embalar sonhos.

Um livro pode livrar-nos do ambiente tenso de uma sala de espera, da imobilidade angustiante da viagem ou do vazio de uma conexão. Na cafeteria, ele mantém afastados os conversadores indesejáveis. Livro é o antônimo de um cachorro, quem sai à rua com seu animal de estimação tem papo garantido. Ao contrário, leitura é refúgio, defensora da solidão aprazível. Por que, então, essa deselegante intromissão na leitura alheia?

Meter-se no livro do outro é voyeurismo, do tipo clássico. O mesmo que leva a criança a espiar seus pais, ou que alimenta a pornografia. O prazer alheio observado ou imaginado, revela e ensina, o voyeur viaja na cena, imagina-se parte dela. De forma segura, já que o espião se protege no anonimato. Olhando, aprendemos os caminhos que o desejo almeja percorrer. Da mesma forma, descobrir a obra que alguém lê é participar da sua cena imaginária, de suas fantasias, adivinhar seu sonho acordado. Não passa de uma devassidão pueril, mas a moça tinha razão de ficar furiosa: é uma desagradável invasão de privacidade. Incontrolável, no meu caso.

6 Comentários
  1. Nina permalink

    Muito bom!!
    Eu não tento com tanto afinco descobrir o que as pessoas estão lendo quando estou no ônibus, desisto mais fácil!
    Mas me divirto horrores escondendo a capa dos curiosos ehehehehe
    😉

  2. Patricia Maciel permalink

    Ótimo, como sempre Diana. O seu prazer em espionar o livro alheio talvez seja parecido com o que sinto ao abrir as páginas da revista TPM todos os meses e topar com seus textos. Parabéns.

    • Diana permalink

      só que não estou mais na TPM, é na Vida Simples agora minha contribuição mensal. mas não importa onde, é bom contar com tua leitura!
      abços

  3. augusto permalink

    Interessante.
    Mas pergunto: se aparecer um Católico ou um adepto do Pentecostalismo você atenderia ou mandaria embora?

    • Diana permalink

      certamente atenderia, não sei como te explicar, mas a escuta não ocupa o mesmo departamento das empatias da vida real, a gente se conecta natural e verdadeiramente com as crenças do paciente, como com quaisquer dos seus desejos, amores e prioridades! boa questão!

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