Waldrausch
Uma palavra certa pode ser a proteção necessária contra as tempestades da vida
Esses dias fazia de segundo violino para Lya Luft numa palestra. Escutando uma história da sua infância quase me perco da minha função. Sua prosa envolvente, onde realidade e ficção perdem o sentido do limite, me embalava.
Ela estava no jardim de sua casa quando começava uma tempestade. Sentia a vegetação sinistramente agitada pelo vento, aquela inquietude da natureza que conhecemos, um ar carregado de ameaças. A tempestade é um encontro menor com o caos, ergue-se como um tsunami pocket para tirar tudo do lugar. No vento, que anuncia a água e os trovões, há uma gravidade, uma urgência no ar. É um momento de desamparo: dá vontade de correr para um abrigo, “estar dentro”, não importa do que.
Eis que mãe se aproxima da pequena Lya paralisada, os olhos azuis arregalados, abaixa-se e lhe sussurra em alemão, língua na qual transitava na infância: é o “waldrausch”. O “rumor do bosque”, ela nos traduz. A criança se acalmou, o medo transmutou-se em poesia. A ameaça do mau tempo tornou-se uma espécie de conto de fadas, assustador, mas fascinante, como um filme de terror, uma sinfonia angustiante, que nem por isso deixa-se de escutar. Uma simples palavra pronunciada pela mãe fez a diferença. Deve ter sido assim que ela virou escritora, ofício que, aliás, começou a exercer depois de tornar-se mãe, não por acaso.
Lembro de uma amiga que me contava história avessa. Sua mãe era fóbica, pouco saía de casa, sobrecarregando-a com o cuidado dos irmãos. Dentre as ameaças do mundo, eram as tempestades os piores inimigos dessa mulher, momento no qual recolhia os filhos e abrigava-se embaixo da mesa da cozinha. Ela cresceu corajosa, sina freqüente dos primogênitos que podem contar pouco com os pais. Porém, sofria de uma dependência amorosa, da qual custou a se livrar: o ser amado era seu lugar seguro. Um grande, e infelizmente fracassado, amor foi para ela como a mesa, abrigo que a mãe usava para se abrigar da tempestade. Quão diferente teria sido se fosse uma mãe que pudesse continuar lhe sussurrando ao ouvido cada vez que o desamparo ameaçava: “é o rumor do bosque”!
Esse bosque está sempre dentro de nós. Uma floresta de pensamentos, fantasias e pesadelos feitos de amor e morte. Em nossa turbulenta natureza interior, ventanias, cataclismos se armam de tanto em tanto. Tanto sabemos disso que trememos a cada brisa sinistra, carregada de cheiros que vieram sem ser convidados. Quando as memórias de infância carecem do encanto necessário, sempre temos na ficção um lugar seguro para estar enquanto a tempestade passa, cumpre seu ciclo. Os artistas são aqueles que partilham suas metáforas, seus bosques e ventos, ao pé do nosso ouvido. Quanto a nós psicanalistas, o tempo todo garimpamos essa palavra que permite atravessar a rude natureza da alma.
(publicado na Revista Vida Simples, edição de fevereiro)
Texto maravilhoso!!!!!
Talvez seja isso que a literatura faz comigo. Adoro te ler.