Yabba – Dabba – Doo, os Simpsons chegaram!
Sobre o filme Os Simpsons e sobre a família do século XXI
Imagine algo que passe a seguinte mensagem: os norte-americanos são ignorantes; não passam de um povo consumista e impulsivo; sua polícia é idiota e truculenta; os políticos são despreparados, corruptos e oportunistas; o judiciário perde-se em questões irrelevantes; o ensino é deficiente; a população é mal-educada e grosseira; a religião é de fachada e retrógrada; os executivos só pensam em lucro e são os verdadeiros donos do poder; a hipocrisia é a tônica das relações sociais, além disso se alimentam como porcos, bebem demais e estão poluindo descaradamente o planeta. De quem é esse discurso?
a) Hugo Chaves; b) Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã; c) Algum filósofo francês; d) Um militante de esquerda radical. Nenhuma das alternativas é correta, essas idéias nada alentadoras provém do desenho animado americano Os Simpsons, agora em formato de filme. Podemos dizer muito dos EUA, mas falta de autocrítica eles não têm. Poucos povos conseguem dizer tanto de si como eles, ainda que seja através do humor.
O presidente Bush recomendou às famílias que se pareçam mais com os Waltons do que com os Simpsons, embora o público e a imprensa insistam em sentir-se melhor retratados nesse último. Temos que lembrar ao presidente que os bons tempos de seriados como os Waltons, Papai Sabe Tudo, Bonanza, Daniel Boone e Perdidos no Espaço, entre outros, já acabaram. Pelo menos na ficção o pai não é mais aquele, já não há um patriarca que seja o exemplo e a reserva moral da família. Os desenhos animados seguem o mesmo padrão, a família continua em voga, mas o papel do pai deixa de ser exemplar.
A metralhadora giratória de humor inventada por Matt Groening, que comemora 20 anos de vida e mais de 400 episódios de televisão, de fato não poupa ninguém. Os Simpsons brinca com políticos, celebridades, idéias, nações, cultura contemporânea e clássica. Como sabemos que a inteligência é pré-requisito do humor, nem todos apreciam o seriado.
O desejo dos criadores é que a figura central da trama fosse Bart, um pré-adolescente inteligente e indomável, especialista em irreverências, algumas admiráveis e outras de franco mau gosto. Porém, a cena foi roubada pelo seu pai, Homer Simpson, um bobo alegre, tão fraco de idéias como forte em determinações fúteis. Através desse novo Homero escreve-se uma história oposta à dos patriarcas que fundaram nossa civilização.
Na ficção infanto-juvenil, o século XXI inaugurou-se sob os auspícios de um pai demasiado humano, frágil, infantilizado, e mais do que criticável, ridículo. Não há conflito entre gerações, pois para tanto é preciso que alguém esteja disposto a lutar por suas convicções. Bart e Homer estão muito ocupados fazendo bagunça e tentando tirar proveito de tudo para litigarem entre si. Isso não quer dizer que a relação seja afável, longe disso, são agressivos e abusados um com o outro, não demonstram um pingo de respeito e consideração entre si. Mas, apesar das aparências, se amam.
Na cena oposta desses dois homens adoravelmente inadequados, Homer e Bart, há três mulheres mais confiáveis. São Marge, a mãe de todos, e Lisa, uma garota culta, politicamente ousada e corajosa, até a bebezinha Maggie dá mostras de ter mais luzes do que os homens da família. Apesar disso, a postura delas é de tolerância amorosa com eles. Mas nem todos os episódios sustentam-se na burrice dos rapazes, as mulheres também arranjam conflitos: Lisa, uma menina-mulher contemporânea, insiste criar caso ao denunciar a imbecilidade do americano médio, enquanto sua mãe por vezes compensa com alguma fantasia aloprada seu papel clássico de dona de casa passiva dos anos 50. Podemos dizer que a serie passa não só um desencanto com o pai, mas um desencanto com os homens, nesse sentido o seriado inclina-se para o feminismo.
Apesar de que na família Simpson a mãe tenta ser a tradicional provedora de bem estar, cuidando de corpos, roupas, objetos e estômago de filhos e marido (é sua filha que se incumbe de representar as mulheres liberadas), é Homer que desnuda a dança das cadeiras de papéis na família nuclear contemporânea. O pobre homem não sabe nem abrir seu iogurte e se desespera como um bebê frente a qualquer desafio doméstico. A feminista Betty Friedan já dizia que a libertação das mulheres na verdade permitiria o amadurecimento de maridos e filhos, infantilizados pela conduta atenta da rainha do lar. Homer resiste a essa idéia, mais do que querer, parece precisar de cuidados maternos para sempre.
O filme começa com a inaptidão de Homer para ser pai, continua com sua inadequação como cidadão e termina com alguma reparação, a possível face às circunstâncias. Ele não sabe educar nem cuidar dos filhos, é causador de um grave crime ambiental que atrai a desgraça para Springfield, obriga a família a se exilar e depois volta para tentar salvar tudo e todos, num grande remendo possibilitado por alguns atos heróicos. No fim das contas, a catástrofe causada por ele foi minimizada embora sua reputação continue irrecuperável. De qualquer maneira, ainda não surgiu nada que impeça essa família amarela de amar uns aos outros, mesmo sendo tão pouco amáveis.
Homer não está só nem seu tipo foi inventado hoje. Só para usar um exemplo proveniente da mesma terra dos desenhos animados, podemos dizer que ele faz parte da família de Fred Flinstone. Embora menos apalermado que Homer, Fred é mais primitivo pela sua imbecilidade do que pela Idade da Pedra em que vive, nem seu cão-dinossauro o leva muito a sério. Criada em 1960 pela dupla Hanna e Barbera, a família Flinstone introduziu os primeiros humanos entre um exército de personagens animais daquele estúdio. Eles apostaram num público infantil, a grande massa da audiência televisiva de sua época. Já os Simpsons encontram seu fã clube entre os adolescentes, púberes, jovens adultos e muitos já nem tão jovens assim. Entre os programas atuais dirigidos aos pequenos, os pais não encontram melhor cotação, pois os heróis voltados para sua etapa de vida, via de regra contam (ou melhor, não contam) com uma dupla de genitores que oscila entre a omissão e a idiotice.
Os Simpson já tem sucessores mais novos, que não os substituem, antes os complementam. Por exemplo, em termo de desqualificação da figura paterna, recomendamos Family Guy, (Uma Família da Pesada, Fox). O pai dessa família, é, acreditem, ainda mais idiota que Homer, nem seu coração vale alguma coisa. Como no caso dos Simpsons, aqui também a geração adiante é um pouco melhor, e pelo jeito quanto mais jovem, mais lúcido, existe um bebê inteligente. Ou então, outro bom exemplo seria Padrinhos Mágicos, onde um garoto complementa a inutilidade dos pais, desconectados e burros, com uma dupla de “pais” fantásticos: um casal de fadas madrinhas que tenta solucionar seus problemas, mas até eles, cometem uma sucessão de trapalhadas. Como se vê, nos programas preferidos de crianças e adolescentes, não se tem grandes expectativas a respeito dos adultos em geral.
Na tradição da literatura infanto juvenil e popular, a maior parte dos protagonistas é órfã e suas aventuras ocorrem graças a essa ausência da família, que lhes fornecem as provações e a independência necessárias para o desenrolar da história. Baseada no fato de que é preciso dispensar a presença e a proteção dos pais para encontrar a própria identidade, a literatura precisava livrar-se deles de entrada e a morte sempre foi uma boa solução para isso. Por isso maior parte das crianças dos romances era órfã, estava aos cuidados de famílias substitutas frias e cruéis ou padecia em colégios internos. Antes desses personagens de romance, nos contos folclóricos que deram origem aos atuais contos de fadas, os pais e mães bonzinhos que protegiam também desapareciam nos créditos iniciais, deixando em seu lugar bruxas e ogros que simbolizavam as provações que esperavam aos que crescem, amam e querem sucedê-los no trono e na vida. Ocorre que agora a meninada não precisa mais matar os pais para livrar-se deles.
Em primeiro lugar, os mais velhos da nossa sociedade não precisam ser derrotados ou confrontados para ceder um trono, pois eles também não querem ocupá-lo. Estão mais dispostos a recomeçar a vida sucessivas vezes, fazer plásticas, mudar de profissão e buscar um companheiro mais jovem, do que a bancar algum tipo de maturidade, sabedoria ou autoridade. Eles não têm tempo para isso, precisam aproveitar a vida e combater o medo da morte. Fica difícil superar pais que estão na mesma batalha, que são fisicamente menos vigorosos, mas possuem mais experiência, dinheiro e prestígio do que seus descendentes.
Nessa gincana entre gerações, os pais não parecem muito envolvidos em provar o prestígio de sua posição. Os que hoje são quarentões e cinquentões viveram sua adolescência no rescaldo das décadas floridas da revolução sexual, do pacifismo, do misticismo difuso do movimento hippye, o que os levou a valorizarem mais a revolução, a mudança, a novidade, do que a sabedoria estabelecida pelos antigos. Como se perguntou certa feita Hanna Arendt: o que podem legar os que querem legar a revolução? A paixão pela mudança é mais uma convicção a transmitir do que um conteúdo a ensinar, e isso coloca um desafio para a postura parental moderna, uma charada que ainda não sabemos solucionar.
Este é apenas um dos impasses dos adultos contemporâneos que são pais, outro é proveniente da desvalorização dos feitos de nossos antepassados. O mesmo século XX que combateu e derrotou o nazismo, foi o que o construiu sociedades onde se sonhava com um mundo igualitário e viram seus ideais serem tragados pelo totalitarismo de estado. A liberdade das democracias foi o caldo de cultura em que proliferaram as corporações que hoje mandam informalmente no mundo. A mesma ciência que abriu portas para tantas descobertas geniais, fechou seus olhos para a destruição oriunda da tecnologia. Os novos adultos precisam conviver com as incertezas sobre sua capacidade de inventar e sonhar sem produzir danos. O homem não só está longe de ser o centro da criação, como corre o risco de ser o maior vilão do universo conhecido, afinal temos sido tão bons em criar soluções como em gerar problemas.
Não bastasse a derrocada de qualquer idealização possível da condição humana, um novo desafio nos espera. Outrora, a divisão entre a vida privada e a pública produziu muitos grilhões, muita hipocrisia, mas também algumas facilidades. As mulheres presas entre lençóis, fogões e fofocas podiam até almejar e fantasiar com aventuras no mundo lá fora, mas não precisavam enfrentá-lo. Já os homens, podiam ser um rei em seu lar e tratar a esposa e os filhos como súditos, sem precisar explicar-se pelo que faziam lá fora, enquanto trabalhadores e cidadãos. Além disso, no mundo externo ninguém estava interessado em saber se um homem era um pai e marido compreensivo, democrático e sensível. Hoje é preciso coerência, o pai é reflexo do cidadão e vice-versa. De certa forma, é uma queda das máscaras. Apesar de que adoramos dizer que habitamos um mundo de aparências, acreditamos que não é bem assim. Claro que vivemos para parecer algo, mas hoje não serve o enchimento do paletó, é preciso que o homem tenha músculos por baixo.
Por isso, no filme dos Simpsons, assim como no nosso mundo, homens e mulheres devem ser coerentes em seus papéis familiares e sociais. Frente a isso, melhor não prometer nada, para não correr o risco de não cumprir. Quando um ideal se avoluma, atinge níveis inatingíveis, o melhor é fazer como a raposa com as uvas, ignorá-lo ostensivamente. Por isso os pais, além de se omitirem, fazem questão de demonstrar que não estão ocupados com isso. Os esforçados também são meio ridículos, como o viúvo carola Ned Flandres do seriado, que faz de tudo para ser um bom pai e até seduz Bart com suas boas intenções. Ned é somente um pai dedicado, o resto de suas questões fica nas mãos do criador, fazendo-o parecer meio bobo. Homer, em contrapartida, pode divertir-se com a mulher, fazer disputas viris com seu filho, ter seus amigos igualmente abrutalhados para aproveitar a vida. Para os criadores dos Simpsons não há muitas saídas, as incertezas devem ser afastadas ou abafadas com algum tipo de anestesia mental. Serve credulidade religiosa, hedonismo, egoísmo ou infantilidade. Os adultos dessas histórias abusam desses recursos.
São variações sobre o tema da crítica aos pais, nossa geração de adultos os criticou pela sua rigidez de valores e pelo culto hipócrita a uma moralidade de aparência, que jogava para baixo do tapete as contradições, o sexo e as fraquezas. Hoje os temas são outros, os pais, vistos como frágeis e imaturos por crianças e adolescentes contemporâneos, tentam preencher com afeto e camaradagem fraterna suas diferenças com os papéis tradicionais. Tentam também fugir da raia, mas não há escapatória, cada geração precisa confrontar-se com o olhar crítico da seguinte. Se ficar o filho come, se correr o filho pega.
Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, no sábado 18 de agosto de 2007
_Quero importar isso=>…além disso se alimentam como porcos, bebem demais e estão poluindo ‘descaradamente’ o Planeta!