A juventude não dormirá!
Seria mais fácil entender o que está acontecendo, se a inveja que os adultos têm dos jovens não atrapalhasse tanto.
Em 1964, num pequeno texto com esse título, escrito para a revista New Society, o psicanalista Winnicott tentava dialogar com aqueles que se horrorizavam diante de manifestações juvenis: “é dada publicidade a cada ato de baderna juvenil porque o público não quer ouvir ou ler a respeito dessas façanhas adolescentes que estão isentas de qualquer desvio anti-social. Além disso, quando acontece um milagre, como os Beatles, existem aqueles adultos que franzem o cenho quando podiam soltar um suspiro de alívio – quer dizer, se estivessem livres da inveja que sentem do adolescente desta fase”. Veja bem, ele retrata a obsessão do público por uma minoria de vândalos, cego à verdadeira relevância dos acontecimentos. O título refere a uma personagem de Shakespeare, que odiava a juventude e desejava que se dormisse dos dezesseis aos vinte e três anos.
É interessante a menção aos vovôs do Rock, justamente para lembrar de que o tempo passa e crescemos como civilização assimilando e aprendendo com o que parecia dissonante e impossível de catalogar. O que mais alarma aos intérpretes de plantão, nos quais me incluo, é a ignorância do rumo que as insatisfações expressadas vão tomar. Não se sabe do resultado das próximas eleições, nem como as cidades receberão a copa, e principalmente está para se descobrir como funcionam a política e a informação na era da internet. Como tampouco se sabia da comunicação após o telégrafo e o telefone, do rumo da música depois do Rock, do destino da família após a revolução dos costumes, das mulheres após a pílula, do livro após o computador. Os adultos de diferentes épocas são reincidentes no medo do desconhecido, lembram seus tempos de interrogações e temem não ter feito as melhores escolhas. Os jovens representam esse processo, estão fadados a atravessá-lo, e acabam suportando melhor o que não controlam.
Nesse, e noutros textos, Winnicott lembra que a juventude passa nos indivíduos, que ficam velhos como os Beatles, mas nas sociedades a expressão juvenil chegou para ficar. Ele a chamou elogiosamente de “imaturidade adolescente”, que seria a fonte das dúvidas que movem revoluções e permitem invenções. Tudo o que nos tornamos como civilização tem uma dívida com aqueles que enxergaram as coisas de modo diferente.
Mudam os atores, mas a peça da juventude segue em cartaz. A vantagem da visão de mundo adolescente, ou juvenil, é justamente sua relação com o tempo, a capacidade de reconhecer, com tristeza, mas sem pânico, que o futuro é incerto. Ser jovem é conviver com as próprias indefinições: duvidar sobre a quem e como amar, no que acreditar, como trabalhar, a quem admirar e o que se quer aprender. Ficar velho é satisfazer-se com o senso comum, é alardear o fim do mundo a cada vez que alguém faz um barulho que nosso cérebro não consegue decodificar. Encerro com Winnicott, pedindo que sejamos capazes de interpretar e conter nossa “indignação moral causada por ciúme da juventude”. Corrompendo Quintana: a meninada passará, a juventude passarinho.
Prostitutas felizes
Ninguém transa com um corpo vazio de fantasias, nem que queira.
Você acredita que prostituir-se pode fazer alguém feliz? Em uma campanha governamental visando combater a discriminação às profissionais do sexo, aparecia a foto de uma mulher com o texto “eu sou feliz sendo prostituta”. Frente à reação negativa, principalmente por parte da bancada religiosa, a campanha foi suspensa e o diretor do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis exonerado. De fato, a profissão mais antiga do mundo sempre foi um enigma e um judas a ser malhado.
Recomendo a leitura de um livro: “Pagando por sexo” (Ed. Martins Fontes, 2012), que está longe de ser um tratado erudito sobre o assunto. É uma novela gráfica, escrita e desenhada pelo quadrinista canadense Chester Brown. Explicitamente autobiográfica, a obra conta como, após levar um fora da namorada, o autor tornou-se avesso ao romantismo e decidido a não mais sofrer por amor. Para viabilizar isso, sua vida sexual resumiu-se à profissionais do sexo. Em defesa de sua escolha, duramente criticada pelos amigos, argumentava que “as pessoas que precisam de relacionamentos românticos são inseguras, elas precisam que alguém lhes diga que são dignas de amor”. Chester teria se libertado dessa necessidade. Ao longo do livro expõe sua posição de viver alheio ao amor, embora visivelmente dedique-se carinhosamente às prostitutas. Curioso, quis saber sobre cada uma delas, mas em sua peregrinação descobriu muito mais verdades sobre a própria sexualidade. Foi seu jeito.
Nos prostíbulos a clientela é diferente da horda de safados que se imagina. Entre o público das profissionais há muita gente como Chester, em busca de paz ou de respostas, todo tipo de confusos, fóbicos, tímidos, inseguros, enfim, neuróticos em geral. Para estes e para todos nós o interesse pela profissão transcende os detalhes pornográficos, disponíveis em qualquer filme barato. O enigma está no sexo sem amor. Mais do que posições e orgasmos, esperamos que o desejo sexual contenha a essência do amor. Ali haveria uma espécie de verdade da carne, das palavras desconfiamos, sabemos que podem mentir. Porém, quando sexo e amor se dissociam, o que ocorre com surpreendente facilidade, já não sabemos em que acreditar. Todas as formas de sexualidade que abalem os clichês românticos nos deixam desamparados.
Na verdade, cada um transa com a própria fantasia. Em vez da idealizada fusão dos corpos, na melhor das hipóteses ocorre o balé das fantasias. Sem elas não há sexo, ao mesmo tempo em que dá certo medo a idéia de tornar-se objeto da imaginação alheia. Na prostituição se supõe que estaria em jogo apenas a fantasia do pagante, o outro seria um corpo vazio de conteúdo. Mas quando é dito que alguém pode ser feliz nessa profissão, isso deixa de ser assim: que fantasias estariam realizando as prostitutas que dizem estar satisfeitas com seu trabalho? Então, a clientela, que contrata uma marionete para encenar suas pequenas taras (quem não as tem?), estaria à mercê de profissionais que podem também estar satisfazendo as delas? Isso é inadmissível! Queimem-se os cartazes.
Afeto embrulhado
Quando os presentes expressam afeto, as aparências não enganam.
O convidado chega a um aniversário infantil. O aniversariante recebe desconfiado o volume colorido, ainda é pequeno e não entende direito o que está acontecendo. Com exclamações, a mãe tenta atrair o interesse dele para o brinquedo que mora dentro do embrulho. Uma vez focado no presente, o pequeno fica hipnotizado pelo papel, ou mesmo pela caixa, deixando o objeto mais importante de lado. A mãe se desculpa, constrangida.
Cena dois: esquecer aniversário de namoro ou casamento é crime capital, mas ele lembrou e comprou um presente! Desta vez foi ousado, arriscou uma roupa. Eis uma opção exigente, é preciso conhecer o mapa do corpo da amada como um cego lê braile para acertar. É um gesto de amor indiscutível. Ela abre, prova, ficou perfeito.
Mas não havia cartão, nem um bilhete. Indignada, ela entristece por não ser merecedora de uma linha sequer. Será que ele não é capaz de um singelo “para minha amada”? Como a criança, ela também se fixou na embalagem. Cegada por seus argumentos, não notou que o objeto em si era uma declaração de amor.
Cena número três: buscamos presentear um amigo com referências culturais diferentes, de outra geração, ou estrangeiro a nossos costumes. Queremos muito agradar, dar algo relevante, nosso investimento amoroso ou financeiro deve ser visível. No começo das buscas já percebemos a dificuldade, pois muitos objetos possuem um valor perceptível somente aos iniciados. A significação do objeto para nossas referências culturais, a etiqueta, o pacote da loja também revelam a importância da oferenda. Para alguém estranho a esses códigos, deve ser o objeto em si o mensageiro do gesto, mas fica mais difícil. No fundo, o bebê da primeira cena não está errado, o atrativo da oferenda começa, e muitas vezes fica aí, na embalagem.
Representados por inúmeros objetos que possuímos e vestimos, somos o que temos, mas também o que recebermos e o que conseguirmos oferecer aos outros. Até quando nos auto-presenteamos, a mensagem é “eu mereço”. Por vezes trata-se de recompensa mensurável, outra de um consolo ou até de revanche. Já comprei um par de botas caríssimo porque fiquei com raiva duma desfeita recebida. É a famosa “sapatoterapia” feminina. Para os homens fica mais caro, pois costumam praticar a “carroterapia”.
Nosso sistema de trocas, quer seja de presentes, olhares ou palavras, é uma forma de construção de identidade. Até ao olhar-nos no espelho interrogamos o que os outros vêm em nós, quanto valemos aos seus olhos. Nesse transito de amores e valores, todo objeto é, primordialmente, uma mensagem.
Às vezes o encontro se dá e nos fazemos entender, afinal através dos objetos também se dialoga. Para tanto, presenteado e presenteador têm que estar dispostos a escutar o sentido do gesto, devem calar a voz interior que assopra insatisfações, ressentimentos e auto-críticas. Quando isso se torna possível, nos alegramos quando o bebê celebra o envoltório vistoso, contente de estar recebendo um presente. A mãe não precisa ficar envergonhada, também sabemos brincar de fazer uma bola com o papel colorido, rasgar é um prazer, revelar o conteúdo da embalagem um desafio. Bebês brincam de esconde esconde com tudo, inclusive com presentes. Quanto à amada, livre da premissa da mágoa, consegue perceber na roupa entregue sem palavras o toque do desejo que a recobre.
Presentear é adivinhar o outro, dar provas de que o escutamos tanto quanto ele nos acolhe. Presente maravilhoso é aquele em que alguém revela saber-nos bem. É tranqüilizador quando os outros, de fora, acham que somos parecidos com o que pensávamos ser. Quando erram, ao contrário, sentimo-nos mais sós. Objetos a parte, é sempre uma questão do afeto que encerram.
Latindo para os pneus
Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, difícil é saber o que fazer quando um desejo se realiza!
Quem anda por estradas poeirentas do interior está acostumado com o assédio da cachorrada sobre carros e motos. Sozinhos ou em bandos, eles saem latindo atrás do veículo. Um inimigo que deve ser custodiado pelos batedores de quatro patas, em clima ameaçador, até sair do território deles. As rodas, por estar na altura dos vigias e movimentar-se visivelmente, polarizam a atenção e são alvo dos latidos.
Evocando esse cenário, uma amiga alcunhou uma frase que julga representar seu estilo de lidar com os próprios desejos: “sou como cachorro com pneu, quando o carro pára não sei o que fazer com ele”. É uma boa imagem, em vários sentidos.
Conseguir parar o veículo é sinal de poder por parte do animal guardião. É como se, “assustado”, o invasor tivesse ficado paralisado. As cobiçadas rodas ficam à disposição, poderiam ser mordidas. Porém, imóveis elas deixam de fazer sentido. É difícil morder uma roda, dura e grande para sua boca. Mal ou bem, o interesse pela roda era somente um mero representante do jogo de forças: o objetivo era uma disputa de território e prestígio. Claro, estamos aqui cometendo liberdades poéticas, metáforas caninas.
Tentamos ser menos bobos do que os cães, latir para as coisas certas, ser menos irracionais, não avaliar mal a ameaça e gastar energia à toa. Mas volta e meia nos parecemos a eles. Quando escolhemos um objeto de cobiça, pode ser algo ou alguém que queremos, agimos tão convencidos da tarefa como o exemplo acima. No momento de alcançar a graça pela qual tanto lutamos, em geral não sabemos o que fazer, ficamos olhando para nosso pneu, confusos.
Minha amiga tem razão, e está mais acompanhada do que pensa. Um amor conquistado parece muito menos atraente, emocionante ou interessante. As vezes não acreditamos e rejeitamos por antecipação aquele que julgamos vai se desiludir de nós. Uma posição de prestígio, atingida por méritos, pode ser mal utilizada ou mesmo recusada, porque imaginamos que aquele lugar idealizado só poderia ser ocupado por alguém melhor do que nós. Levante a mão aquele que não se julgar uma fraude. Algo adquirido com esforço parece menor do que no catálogo. Uma viagem muito planejada sempre tem aquele momento “o que estou fazendo aqui”. Enfim, é mais fácil lidar com o fracasso do que com o sucesso, pois, pelo jeito, a melhor parte é continuar querendo. A satisfação de um desejo nos obriga a renegociar nossos objetivos e auto-imagem. Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, podemos imaginar um mundo idealizado dos ricos e famosos, colocá-los no altar de nossos ideais e ficar cultuando, rezando lamúrias.
Como esses cachorros, na verdade esperamos que o pneu continue rodando para além da nossa jurisdição. Assim podemos seguir vivendo, embalados pelo que queríamos, o que seríamos, empanturrados de “se”. A maior tarefa, porém, consiste em descobrir o que fazer com o pneu. E em nome do que continuar correndo depois disso. Eis a verdadeira valentia.
@ Laerte
na arte e na vida, autor@ de imagens intrigantes, sou fã
Tenho várias tiras do Laerte Coutinho coladas numa parede em meu consultório, são como enigmas que seguem me interrogando. Mais do que um cartunista, ele escreve poesia e filosofia com imagens. Suas tiras são abismos de múltiplos significados nos quais me perco. Todas as recomendações são poucas para que o leitor conheça sua obra. Ele é certamente um dos artistas mais importantes do Brasil.
Quando já o admirava, ele passou a dedicar sua vida a um tema nada prosaico: a identidade sexual. Começou a vestir-se de mulher, frequentava o “Brazilian Crossdresser Club”, discretamente, sob o nome de Sônia. Aos poucos, o prazer de usar a indumentária do sexo oposto deixou a clandestinidade. A Revista Piauí de abril (n. 79) dedica-lhe várias páginas, numa reportagem na qual é tratado por vezes com pronomes femininos, por outras masculinos. Sua coragem desnuda a todos, quer usemos cuecas ou calcinhas. Na vida, como na arte, ele produz uma imagem intrigante.
A formação da identidade sexual é pura incerteza. Apesar disso, ao crescer cruzamos com duas perguntas: o queremos e o que seremos, ou seja, a quem desejamos e como nos pareceremos. Além da questão de gênero, o desejo aponta muitas variações, preferiremos velhos ou moços, miúdos ou graúdos, humildes ou opulentos, pessoas vistosas ou alguém cuja beleza brilha somente aos nossos olhos, e assim por diante. Porém, uma definição bifurca os tipos de objetos de desejo: do nosso sexo ou do oposto. Não falta quem lembre ingenuamente que a anatomia nos condena à complementaridade fecunda do macho e da fêmea. Quanto ao que nos parecemos, há roupas para deixar isso bem claro, convém que as usemos conforme o corpo com que chegamos ao mundo. Os militantes dessas certezas fecham a questão.
Os jovens contemporâneos a abrem e têm praticado a ambiguidade com uma liberdade inédita. A androginia das roupas e adereços, assim como a bissexualidade das escolhas amorosas, inquietam as gerações anteriores e as almas frágeis. Mas eles não fazem mais do que externar incertezas que todos guardamos no armário. Nunca seremos suficientemente convincentes como homens ou como mulheres aos nossos próprios olhos, da mesma forma, tampouco somos imunes à atração por pessoas de ambos os sexos. Forjamos em nós certezas, as gritamos para acalmar as dúvidas que nos sussurram aos ouvidos. Criamos mitos religiosos e até científicos para dizer que existe uma definição clara dessa fronteira.
Antigamente, quando queríamos dirigir uma mensagem a homens e mulheres dizíamos assim: “prezado (a)”, ou seja, se você for mulher, também será contemplada, em segunda opção. A luta feminista está tirando as mulheres desse segundo plano, hoje diríamos assim: “prezad@”. Com o fim da divisão dos mundos que acompanhava a separação dos sexos, a identidade sexual entrou em questão. Estamos banindo mais do que a opressão das mulheres, trata-se agora da derrocada dos clichês sobre as características definidas de cada gênero. Laerte, diz ser “uma mulher em caráter experimental”, eu te compreendo querida, eu também sou.
Estranho na minha alma
Separações com e como finais felizes, por que não?
Fim do dia, das forças. O amigo liga chamando para um chope. Chegando lá, agradável surpresa: na mesa estava sua ex-mulher! Inevitável não fantasiar uma retomada, a separação sempre deixa uma ferida mal fechada, uma vontade de colar o que quebrou. Sempre gostei dela, do casal que eles faziam, mas eu sabia que aquele amor acabou. Havia escutado meu amigo o suficiente para saber que seu coração tomara outros rumos. Quere-los juntos novamente era egoísmo. Apesar disso, a conversa foi deliciosa como costumava ser no passado, estávamos relaxados, contentes. Depois, cada um foi pacificamente para seu lado, sem ressentimentos visíveis.
Amigos também ficam sequelados com os divórcios, sofre-se junto. A pior partilha, quando um amor acaba ou colapsa, é a dos afetos. Os que estão de fora do relacionamento descobrem-se desagradavelmente dentro: são disputados, junto com livros discos e algum patrimônio. Os amigos raras vezes conseguem transitar igualmente entre ambos, sem ter que escolher. A posição é similar, embora menos grave, à dos filhos. Estes, no entanto, não podem, nem devem, nem querem se posicionar, precisam manter o equilíbrio.
Quando a separação é tinta fresca, os ex-amantes estão loucos. Afogados em ressentimentos, reprisam incessantemente as mesmas histórias. Exigem paciência budista. Descontam a perda em tudo o que passar pela frente, seja filho, amigo, parente ou mascote. O filhos, com o coração sem lar, precisam acolher a dupla de desequilibrados que substituiu seus pais. Os amigos sofrem mal menor, mas a costumeira intimidade agradável transforma-se no muro das lamentações.
Fico triste, mas não desaprovo separações. Já entendi que vínculos terminais devem ser eutanasiados. Relações destruídas ou destrutivas podem consumir os envolvidos até o fim. Vi muita gente florescer após um recomeço, por vezes em um novo amor, outras em importante romance consigo mesmo. Mas sei o alto preço disso. Das separações que vivi, minhas ou alheias, impossível esquecer o desgarramento, a devastação, o vazio, o sem sentido que restou. Dói, destrói. Conviver com um amigo separado é reviver esse luto, essa perda. Nessa hora, o amor fraterno é imprescindível, mas impotente, nossa presença não tapa o furo.
Aquele entardecer, na presença de uma ferida cicatrizada, me encheu de energia. “Estranha no meu peito. Estranha na minha alma. Agora eu tenho calma. Não te desejo mais. Podemos ser amigos simplesmente. Amigos, simplesmente. E nada mais.” A letra de Fernando Lobo, na música “Chuvas de verão” traduzia o encontro. O final feliz, por vezes, não é o dos contos de fadas, o casamento, pode ser também uma separação que finalmente aconteceu. Por que não?
O cachorro do vidente
As ninharias que preocupam são a chave para conhecer nossos temas de extrema importância.
“Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo.” Clarice Lispector segue: “No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias. (…) Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas.”
Entendo semelhantes inquietudes: muitos dos nossos sentimentos são pateticamente dedicados a esquisitas ninharias. Dá até vergonha de confessar. Conscientes da desproporção, sabemos estar vivendo um afeto deslocado. Lutamos contra tais pensamentos que atestam nossa futilidade. Pedimos a nossa mente perturbada: diga logo, o que na verdade está produzindo tanto ruído? Não adianta…
Quando estou às vésperas de viajar para minha cidade natal, como faço todo ano, sei que vou sentir uma pontada de angústia se não reencontrar o cachorro de um vidente que sequer consulto. Chego e vou ver se o homem está em seu posto, onde instala sua banquinha de búzios. Ele veste roupas surradas de velho hippie e usa longa cabeleira branca. Ao seu lado, instalado em uma almofada vistosa, repousa seu cão, grisalho como ele. Certa vez constatei a falta do cachorro e senti um aperto no coração: um havia perdido o outro. Agora o vidente parecia patético, sozinho, miserável. Para minha satisfação, no dia seguinte o parceiro estava de volta. Com tantas preocupações dignas de nota, por que essa?
A cidade em questão é para mim lugar de muitas perdas, de lutos, mas também de férias felizes, da minha infância e das minhas meninas. O pequeno drama imaginário, no qual faço do cachorro e do vidente protagonistas de uma grande amizade é uma metáfora forte. Eles representam os vínculos que fazem de alguém um ricaço e as perdas que nos depauperam. Por isso temos que aceitar a incumbência de se ocupar das ninharias, elas são a chave os para temas de suma importância.
Clarice tinha a tarefa de olhar as plantas do Jardim Botânico, de cuidar da integridade da fila de formigas. Ela certamente sabia que nossa presença no mundo faz diferença, mas está longe de ser imprescindível. A minha com certeza mais prescindível do que a dela. Esse texto, chamado “Eu tomo conta do mundo”, termina com a frase: “só não encontrei a quem prestar contas”.
Mentirosa essa Clarice, ela contou para nós. Na crônica e na ficção, soube ser embaixadora da vida mínima, onde pulsam máximas emoções. Fazemos parte da fila de formigas de que ela tomou conta. Nos alinhamos menos solitários, graças à sua generosa sinceridade. É isso que faz um grande cronista, revelar a grandeza de nossas bobagens, sem cometer a descortesia de reduzi-las à razão. Eis meu sonho de consumo ao escrever e analisar nossa vida, que nem sempre sabe ser simples. Continuarei tentando.
Você é um político
Política é a soma dos SEUS pequenos atos
Em catástrofes evitáveis, como o incêndio da boate que matou 241 jovens em Santa Maria, a punição dos culpados é uma necessidade para os enlutados. Julgamentos exemplares e de grande repercussão revelam uma eficiência da justiça que gostaríamos de ver mais frequentemente. Faço votos de que sejam efetivos, além da pirotecnia. Mas há uma questão polêmica relativa ao episódio: o indiciamento de pessoas ligadas à administração pública, as quais não foram responsáveis diretas pelos fatos.
Para minha surpresa, estes se declararam injustiçados, dizem ser objeto de perseguição política, sugerindo que sua responsabilização não passa de um lance no jogo partidário. Acredito que tais indiciamentos são corretos justamente por serem políticos, o que nos ajuda a lembrar o que é mesmo a aviltada política. Ela não é, ou não deveria ser, reduzida a um tabuleiro de jogo alheio à realidade. Os prefeitos assim como nossos demais representantes das várias câmaras, são eleitos para administrar nossa vida de acordo com um determinado plano de trabalho. É nisso que votamos. As barganhas eleitorais são uma perversão das nossas escolhas, conseqüência sintomática da nossa omissão.
O que acontece numa gestão onde os bombeiros não zelam pela segurança, onde os fiscais são no mínimo omissos e centenas de jovens morrem é política sim. Política é o exercício da procuração que passamos a um cidadão para cuidar de nós e do nosso patrimônio comum. Político não é um produto que adquirimos se a propaganda for boa. Compreendendo a vida pública como território privado dos políticos de carreira, agimos como se não fossemos também, todos nós, figuras públicas.
Pensava nisso, numa espécie de balanço moral, questionando qual é o maior valor que nos cabe seguir e legar: o concernimento, que, trocando em miúdos, é o envolvimento com o que transcende nosso umbigo. Sempre que possível, nos voltamos para dentro, alheios, alienígenas, alienados da conexão com o que nos revolta. Contamos com o alívio da indignação, esse barulhento instrumento da paralisia: “não me acuse de nada, não fiz nada, sou uma alma pura”. Igual a uma das máximas de Homer Simpson: “quando cheguei aqui já estava assim”.
Gostaríamos de gerar vencedores, criar filhos capazes de ser colocados no páreo da competição. Mas filhos, como políticos, não são um produto a ser bem colocado no mercado. Precisamos ajudar os mais jovens a entrar no mérito das conseqüência sociais de suas escolhas e atitudes, do contrário serão autômatos ególatras, como muitos políticos de carreira, predadores na sua relação com a realidade.
Convém lembrar e ensinar que cada gesto que fazemos, mesmo os mais banais, fazem diferença para todos. São pequenos atos, feitos por cidadãos políticos, profissionais ou não, desde a designação de um subordinado, até atitudes privadas de reciclagem, de responsabilidade social. O modo como vivemos não é um irrelevante grão de areia na praia, é parte de uma rede, de uma reação em cadeia. Talvez esse possa ser o maior valor moral contemporâneo a ser cultivado: a consciência de que somos responsáveis pelo todo, saber-nos coletivos, políticos. Cada um de nós recebe do próximo a procuração que responsabiliza pela gestão do destino comum. Honremos esse compromisso.
Exuberância enrustida
Almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação.
Com seu inconfundível sotaque argentino, no intervalo do cafezinho da clínica, ela me disse: “tu te achas muito bonita”. Eu, uma psicóloga desalinhada, na casa dos vinte, ela uma psicanalista quarentona e cheia de charme. Em eterno litígio com minha imagem, custei a entender a alfinetada. Complementou: “é que não te pintas, porque achas que não precisas…”
Minha colega, de fato, não saía de casa sem delineador. Como se seus enormes olhos azuis necessitassem de algo a mais. Sempre precisamos de algo a mais, era o subtexto. É pretensão pensar-nos suficientes com o que temos. No fundo, todo discreto se acha grande coisa. Paradoxal, mas verdadeiro.
Discreto não é displicente, não é largado, não boicota a sua imagem. Ninguém é tão bonito a ponto de sobreviver ao esculacho. A Top Model não acorda com cara de Top nem de Model. Passei da idade que ela tinha na época, hoje não saio de casa sem delineador, mas costurei uma versão pessoal do conselho recebido.
O investimento na própria imagem pode ser óbvio, como no caso das pessoas chamativas, enfeitadas, ou mesmo uma aposta no detalhe, no que é invisível a olho nu. Professo o segundo tipo, daqueles que fazem o gênero da discrição presumida, da falsa humildade, da exuberância enrustida, chame como quiser. O cuidado com a lingerie, por exemplo, traduz esse espírito. Embora fique oculta a maior parte do tempo, é meticulosamente escolhida conforme o que revela, comprime, marca, sugere. Temos a depilação, que tenta fabricar uma superfície impecável, a tatuagem, enfeite perene da pele. Nunca cessa o combate à topografia da celulite e das estrias, acidentes geográficos a serem reparados. São preocupações obsessivas, parte de um complicado processo que termina com o arremate da maquiagem, reta de chegada de um labirinto de incertezas. Os homens não cansam de afirmar que não reparam nem na metade dessas providências, mas as mulheres insistem num cuidado, incapaz de calar a profunda inquietação, o pânico do erro. No fundo, almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação. Como sempre, a insegurança gera sede de poder.
Minha avó insistia em que uma mulher deve estar sempre impecável por baixo das roupas, “nunca se sabe quando vamos parar no hospital”, dizia. Sua intimidade era meticulosa no aguardo da síncope, do atropelamento. Eu prefiro cultivar a fantasia de que meus caprichos não se destinem ao encontro com o azar, que se enderecem ao escolhido para apreciar meus detalhes. Mas aprendi algo com minha amiga experiente: não há lugar para o pecado da soberba, reparei que até seus lindos olhos se beneficiavam do arremate.
Sede de vingança
Com o que mexe a ficção vingativa de Tarantino?
Sede de vingança
Não mais nos reunimos em praça pública para ver a cabeça dos culpados rolar ou pender. Mas, sempre que possível, fazemos isso no noticiário e, principalmente, nos cinemas. Nos antigos filmes de cowboy, um catártico tiroteio garantia a punição dos bandidos e a saída incólume do herói. Duros de matar, esses homens a cavalo foram logo substituídos por policiais igualmente solitários. Final feliz requer o chão coberto de corpos dos maus. Em “Django Livre”, como já fizera em “Bastardos Inglórios” e em “Kill Bill”, o diretor Quentin Tarantino arma seu roteiro a partir da nossa sede de vingança contra escravocratas, nazistas e machistas violentos.
Sou uma vingativa confessa, quero ver sangue. Mas fique tranquilo, no sentido figurado. Nada de pena de morte e torturas. Sei que a civilização começou quando alguém abriu mão da retaliação. Na vida real, a morte só deve ocorrer quando inevitável. Porém exorcizo minhas pendências na ficção. Da segunda guerra, onde meus antepassados e parentes foram assassinados, gosto de lembrar que existiu o Levante do Gueto de Varsóvia. Como eles, se fosse para morrer gostaria de levar pelo menos um nazista comigo. Na fantasia sempre somos mais corajosos.
A vingança, seja histórica ou pessoal, funciona de forma parecida com o fim litigioso de um relacionamento amoroso. Sejamos sinceros, não queremos que o outro seja feliz, lhe desejamos a morte lenta e o ostracismo. Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença, que o melhor troco é ignorar, genuinamente. Mas isso leva muito tempo para ser possível e mesmo assim sofremos recaídas. A dor deixa cicatrizes e elas são lembretes lavrados na pele, para sempre.
Os protagonistas dos filmes de Tarantino carregam essa insígnia, assim como os judeus tatuados, os escravos marcados, o mesmo ocorre com o maior vilão nazista em “Bastardos”. Há coisas que não são passíveis de um desfecho elegante, como seria a superação. Nem tudo se consegue esquecer, mesmo porque precisamos garantir que nunca se repita.
Questiona-se a cantilena de afro-descendentes e judeus que estão sempre na defesa e não perdoam os maltratos sofridos. Em parte, ela é necessária: preconceitos estão sempre ressurgindo, é preciso ficar em guarda. Porém, nem os descendentes de alemães nem os brancos da atualidade têm culpa pelos absurdos cometidos pelos seus antepassados. O que fazer, então, com os restos desse ódio vingativo? Tratá-los com o mesmo preconceito que se sofreu seria indigno, igualmente vergonhoso. Mas como conviver com as cicatrizes que latejam, a mágoa que espreita pronta para pular sobre nós, a autocomiseração, que pode não orgulhar-nos, mas compõe nosso lado sombrio?
Depurá-lo no cinema é uma forma de eliminar o excesso. É uma sangria do despeito, da tristeza, que permite manter o fluxo da civilidade. Não somos, nem nunca seremos, totalmente civilizados. Potencialmente, somos tanto algozes, quanto vítimas vingativas. Haja matinê!