O privilégio do azar
Um pessimismo de bolso que é um tributo ao otimismo
Na fila do caixa do supermercado, por várias vezes, disputei pelo privilégio do azar. Estabelecimento lotado, filas grandes e lentas, escolhemos uma: obviamente será aquela em que vai dar algo errado, o cartão que não funciona, um produto sem preço ou estragado. A fila que não escolhemos sempre anda mais rápido. Quando finalmente nossa vez chegou, a fita da caixa registradora acaba e é preciso parar tudo para trocar. Certa feita, frente a essa situação, declarei em voz alta que só podia ser comigo, é sempre assim! Uma senhora que estava atrás de mim insistia em que o motivo do percalço era a presença dela. Assim, meio rindo, meio falando sério, ficamos discutindo o protagonismo daquele pequeno azar.
Essa demonstração pública de pessimismo, na qual reivindicamos ser a causa do que dá errado, é no mínimo intrigante. Afinal, qual seria a vantagem a ser alardeada de ser o escolhido para coisas ruins, mesmo que de pequena monta? Justamente porque trata-se de vantagem: a idéia de que os pequenos azares substituem os grandes.
É comum ficamos temerosos de que alguma catástrofe virá para acabar com a festa quando algo bacana está para acontecer. Para mim não há viagem de férias em que não tenha pressentimento de que alguma desgraça vai me impedir de partir. É uma espécie de culpa, como se o prazer antecipado devesse ser punido. No fundo me espreita o pânico de que o destino tome providências para impedir a realização desse desejo. Estaria certo usufruir desse prazer? Por que seríamos merecedores de um passeio, de um encontro muito esperado, uma refeição cuidadosamente planejada, uma homenagem recebida? Alguém vai aparecer para impedir, revelar nossos defeitos, nossos pecadilhos, vai levantar a mão como num casamento quando se pergunta se há alguém que se oponha à união. Ficamos culpados, pensando que talvez estejamos cometendo alguma injustiça, será que não haveria outra pessoa que teria mais direito a esse privilégio?
É aqui que entra a utilidade dos revezes insignificantes: não serviriam para aplacar a ira do azar? Como se fossem oferendas, sacrifícios: manda-se para a fogueira da culpa uma bobagem, esperando que ela queime no lugar de uma verdadeira desgraça. Depois disso, o que tinha para dar errado já foi, tudo transcorrerá maravilhosamente.
Esse pessimismo de bolso acaba sendo um tributo ao otimismo. Somos mesmo muito paradoxais. Com esses pensamentos estranhos acreditamos estar controlando o destino, garantindo que será favorável, já que sacrificamos à desgraça alguma cota de tempo, paciência ou dinheiro. É bom saber que, apesar de resmungões, somos otimistas incorrigíveis e perseverantes. Nesse sentido, concordo com Valter Hugo Mãe que escreveu: “Pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende”.
Mulheres assassinadas
Matar em nome do amor, uma epidemia.
Tem sempre o dia em que a casa cai. Elas perderam a esperança porque o perdão também cansa de perdoar. Uma sucessão de abusos, de surras causadas pelo ciúme delirante, finalmente encontrou um basta. Seus maridos e namorados ficam enfurecidos, não compreendem a rejeição. Quanto atrevimento! O que foi que mudou? Na lógica deles, vontade própria não existe nas mulheres, portanto a ruptura deve ser por causa de outro. Abstinentes da relação que lhes sustentava a virilidade, decidem lavar a honra ferida: elas não pertencerão a mais ninguém.
Léia, oito tiros; Eliene, marteladas; Caroline, degolada; Karla, 10 tiros; Bruna, grávida de 15 anos, facadas; Joyce, negou-se a ter relações sexuais com o marido bêbado, 16 facadas; Rosilene, 12 facadas; Elisângela, espancada até a morte; Tânia, esfaqueada, asfixiada e colocada na geladeira; Maria da Guia, pauladas; só para citar alguns dos muitos casos de outubro, recolhidos a esmo, espalhados por todo o Brasil.
Em todos eles os matadores eram ex-companheiros. É inevitável o choque com o montante de ódio expressado nesses assassinatos. Eles querem muito mais do que cessar aquela vida, precisam invadir, destruir-lhe o corpo. Não é nada rara a freqüência dos tiros no rosto, como forma de apagar aquele olhar que deixou de ser-lhes destinado.
O fim de um amor sempre causa desespero, sentimento de dissolução, perde-se parte de si. Há também a vergonha pública, pois amor e reputação têm seu destino enlaçados. Portanto, homens e mulheres deveriam equivaler-se nas manifestações de despeito, a dor é democrática. Não é o caso: elas se deprimem, podem praticar maldades, maledicência, partilhas litigiosas; já para muitos deles é uma questão de honra, de vida e morte.
Simone de Beauvoir lembrava que o prestígio social da guerra, território masculino, sempre foi maior que o do ato de dar a vida, atributo feminino. Assim, frente à impotência maior de ver-se privado daquela que se julgava possuir, decidir pela sua morte acaba sendo o exercício de um prática milenar.
Nos anos 80 usávamos a frase: “quem ama não mata”, lembrando que não é aceitável qualquer condescendência com os crimes passionais. Melhoramos um pouco na punição dos assassinos de mulheres, que já gozaram de maior prestígio, acredite. Porém, um dos graves obstáculos na prevenção dos assassinatos de mulheres é a resistência delas, assim como das pessoas ao seu redor, em levar a sério as ameaças que sofrem. Elas acreditam que faz parte do amor e conseguirão reverter a situação. Protegem o agressor como se fosse um filho travesso, são incrédulas frente à letalidade do seu homem. A mulher não tem intimidade com a morte enquanto argumento final, atribuem a eles a capacidade que elas têm de duelar com palavras.
Nossas leis são melhores na teoria do que a prática. O amor, em sua face possessiva e descontrolada, continua sendo um serial killer de mulheres. Isso é assim porque no fundo ainda se espera que a mulher se apegue à relação acima de tudo, que ela exerça seu poder através da entrega. São restos, ainda ativos, de um tempo em extinção. O segredo para a erradicação da violência está num trabalho com as potenciais vítimas: é preciso que elas acreditem que serão apoiadas, que maus tratos são inadmissíveis, que correm riscos desnecessários e não devem morrer. Nunca mais.
Flocos de solidão
Solidão é uma forma peculiar de silêncio
Dizem que em 1984 nevou em Porto Alegre. Dizem, porque não vi. Não foi daquela vez que conheci a neve, na ocasião minha descoberta foi a solidão. Era o primeiro dia de estágio obrigatório em uma área na qual eu não tinha interesse. Fui admitida de favor em uma empresa que aceitou a estagiária mais desmotivada do mundo. Sem saber o que fazer com a recém chegada, puseram-me em um cubículo sem janelas com uma enorme pilha de folhetos para classificar. Bateram a porta depois de informar o horário do fim do expediente. Na hora da libertação, no elevador da firma, todos falavam excitados sobre a neve que viram das janelas e alguns desceram para tocá-la. Minha desolação não podia ser maior. Na época não havia celular, muito menos rede social, e ninguém na empresa lembrou ou sabia que eu estava lá. Não havia um colega para avisar a reclusa do fenômeno.
As facilidades tecnológicas de comunicação que temos são frequentemente acusadas de promover exibicionismo e certa falsidade afetiva. Super-conectados, não faríamos mais do que mascarar o isolamento. Discordo: a verdadeira solidão consiste na inexistência de comunicação, ainda que virtual, exígua. Mesmo que no cubículo estivesse a pessoa pior relacionada do mundo, certamente teria sido informada dos flocos rarefeitos, esparsos, mas festejados pelo surpreendente.
Solidão é ausência absoluta de diálogo, nem que seja imaginário. Não basta ver a neve, para entendê-la é preciso poder contar isso para alguém. Seria suficiente uma frase, enviada a míseros dois contatos virtuais.
Certa vez, sobre um cenário que a impressionou em uma viagem, a escritora Virginia Woolf escreveu que a beleza era tanta que se tornou indescritível. Isso lhe parecia insuportável “como se a natureza tivesse me dado seis pequenas navalhas para fatiar uma baleia”. Em viagens, às vezes fotografamos um cenário assombroso, esperando que a imagem nos balbucie algumas palavras. Na dor a solidão é uma crueldade, mas também nos momentos belos é preciso dizer para crer. Ao ver a neve ou a paisagem inusitadas, carece dividir isso com alguém para entendê-las. Naquele dia ninguém partilhou sua neve comigo.
A solidão é algo muito maior do que a ausência de amigos, família, colegas. Quando ela se apresenta em toda sua dimensão, absoluta como ocorre em certas vidas ou momentos, ela é principalmente uma forma peculiar de silêncio. Precisamos dizer para pensar. As diversas formas virtuais de comunicação funcionam como interlocutores imaginários. São antídotos contra a impessoalidade das cidades, onde é fácil sentir-se invisível, transparente. Nesse sentido, as redes sociais, tão amadas quanto criticadas, acabam sendo imprescindíveis. Todo encontro é válido, sempre é muito melhor que nada.
Machos X Poderosas
Anitta e a guerra dos sexos
Amor e sexo são intimidade e ternura, mas também confronto, duelo, perigo. Deles são aqueles momentos em que se pensa: “eu poderia morrer agora, não importa”, numa aventura radical, em que cada um dos parceiros precisa ultrapassar os limites do outro..
Bataille, em seus escritos sobre erotismo, diz que somos seres “descontínuos”, peculiares por sermos diferentes uns dos outros. Nessa especificidade reside tudo o que sabemos ser. Num movimento contrário a essa diferenciação, amar e desejar são a busca de uma “continuidade”: queremos ser um só em vez de dois.
A entrega amorosa, principalmente em sua versão aguda que é a paixão, viola as muralhas da fortaleza em que habitamos. É um estado de obsessão exigente, pede de ambos que a consciência de si e do mundo se apaguem. Por isso ela anda de mãos dadas com a fantasia de morte, já que significa que só haja vida para essa entrega, todo outro interesse será traição. É por isso que o erotismo brinca nas fronteiras do masoquismo e do incesto. Brinca, como se brinca com monstros: com excitação, cautela e muito medo. Que fique bem claro, isso é totalmente diferente de exercer e atuar qualquer tipo de ato abusivo. Brinca, porque ao amar ou desejar muito, lembramos da violência, na qual perdemos a soberania, ou da infância, em que se depende do outro para quase tudo. Trocando em miúdos, sexo é vertigem.
Para proteger-se desses riscos, homens e mulheres têm construído barreiras, diques, legislado e normatizado o sexo, os relacionamentos e as identidades de gênero. Os homens, que sem exceção começam a vida nos braços de uma mulher, a mãe, deram-se ao direito de por isso mesmo desprezar seu gênero por séculos. Infelizmente muitas mulheres os seguiram.
Nesse sentido, o machismo é a fortaleza construída pelo filho crescido, onde ele se tranquiliza falsamente de que jamais cairá novamente nos braços de outra “dominatrix”, fora a mamãe. Disfarçado de vingança, o machismo também está presente nas mulheres. Embora às avessas, elas não desmontam esse esquema. Mulheres “Poderosas”, como descritas pela jovem cantora Anitta, sucesso viral do momento, entram nesse jogo, mesmo que no outro lado do campo: “Vem, se deixa render / Vou como sereia naufragar você / Satisfaço o meu prazer/ Te provocar e deixar você querer / Agora eu vou me vingar: menina má”.
O jogo em questão é a guerra dos sexos: frente ao perigo de desaparecer um no outro, os amantes alardeiam a própria supremacia, como as cornetas e bravatas antes das batalhas. As mulheres querem defender-se com as mesmas armas deles, protagonizando um motim, a revolta dos objetos sexuais contra seus donos. Faz parte dessa guerra a recorrente violência contra mulheres e filhas, como nos abusos e nos incessantes crimes passionais que nunca faltam ao noticiário.
O desafio é aprender a amar sem defender-se nos clichês de gênero. Sem as regras defensivas do macho dominante e da fêmea submissa, ou mesmo da simples inversão desses papéis. É preciso muita coragem para enfrentar a entrega amorosa e sexual. Principalmente para fazê-lo desarmado.
Amor é incompreensão
Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo.
Quando se ama, o pior inimigo não é, como dizem por aí, o costume. Ele pode ser traduzido em intimidade, à guisa de elogio. A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma, lugar onde ancorar a salvo do medo. A mesmice do outro não é chatice, é repouso. A repetição de seu ser nos envolve e acolhe como o café fumegante depois do almoço, ou o banido cigarro depois do sexo.
A duração de um amor não esbarra nisso, é a idealização das escolhas que a abala. Somos tolos como insetos em volta da lâmpada. Ficamos trocando de parceiro, renovando a expectativa de algo maior, relançando as apostas num encontro absoluto. Balela, amar é combater o desencontro a cada dia. Escute Clarice Lispector: “pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente”.
O convívio não destrói o mistério, pelo contrário. Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo. Não nos saciaremos um no outro. Ele nunca chegará a nos pertencer definitivamente. Um rio separa os amantes, travessias são possíveis, mas as margens não se fundirão.
Gulosos, consideramos que a felicidade seria fazer-se um: queremos mais do que encaixe, o objetivo é zerar a distância, anular a diferença, virar uma só laranja. Nesse caso, melhor casar com o espelho ou seguir em busca desse par perfeito, pulando de promessa em promessa, procurando no amor o tesouro escondido da felicidade.
O problema é que Amor e Felicidade sofrem da mesma sina. São inflacionados, acima de tudo incompreendidos e costumam não ser reconhecidos quando estão presentes. Por natureza, eles são discretos, deixam-se estar, suaves, dispostos a um bom papo, uma tacinha de vinho. Mas em geral são ignorados. Depois de um tempo, partem incógnitos. Os que não souberam reconhece-los sequer têm motivo para lamentar por isso, a ignorância protege.
Já a a Paixão e a Euforia nunca passam despercebidas, causam furor quando chegam e todos querem ser vistos e fotografados a seu lado. São barulhentas, jogam confetes em si mesmas e somem sem que se saiba quando foi que a Ressaca tomou seu lugar.
Os amantes ingênuos são mais afeitos ao estilo destas últimas. Como num parque de diversões eterno, esses insensatos ficam em longas filas, por dias, meses, anos, na chatice da espera, para viver aqueles instantes de furor, vertigem. Não gosto de vertigem. Prefiro gastar meu prazo tomando um vinho com a Intimidade. Essa, vos asseguro, é mais próxima da Felicidade. Acho que nunca terminarei de comemorar a permanência do amor como um presente que recebo a cada dia. Um pacote de presente que nunca abro. O mistério de seu conteúdo faz parte da felicidade de tê-lo em mãos.
Balão Mágico
O balão roxo fez sua aparição em um debate da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Cheio de gás, voava a meio metro do chão, a gana de subir domada pelo peso do cordão. Surgiu detrás do palco e fez uma entrada triunfal sob os holofotes, chamando a atenção do público. Satisfeito com o […]
O balão roxo fez sua aparição em um debate da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Cheio de gás, voava a meio metro do chão, a gana de subir domada pelo peso do cordão. Surgiu detrás do palco e fez uma entrada triunfal sob os holofotes, chamando a atenção do público. Satisfeito com o efeito perfilou-se, ladeando a primeira cadeira.
O lugar era do tradicional mediador de evento, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que gostou da surpresa. Espirituoso, primeiro olhou de lado, depois sorriu para o recém chegado e tocou-o como se fosse a cabeça de uma criança. Seguindo seu percurso exibicionista, o balão roxo postou-se na frente da jornalista Luciana Savaget, também apresentadora do evento, que o tomou nas mãos e lhe desenhou um rosto. Agora mais expressivo, ele foi encarando cada um dos palestrantes, causando graça até nos mais concentrados. Num grand finale, por conta própria, voltou para junto de Loyola, era seu lugar. Ficou ali parado, mudo mais saliente.
A jornada enfrentou seu primeiro ano sem o escritor Alcione Araújo, um dos seus mais tradicionais mediadores, morto faz um ano. Era naquele palco que, junto a seus colegas, ele imprimia uma condução que dava ritmo, tempero e coesão aos debates, numa parceria que durava desde 2001. Luciana cochichou ao ouvido de Loyola, que partilhou sua observação com o público: – “o balão é o Alcione”. A comoção, óbvio, foi geral. Estávamos frente a uma aparição, uma alusão lúdica, que naquele momento fazia o papel de fantasma.
Uma ausência só se torna compreensível quando ela contrasta com uma presença. Se há algo indigesto na morte é seu caráter definitivo: como assim, alguém passa a não estar em lugar algum? Como é que não há data prevista de reencontro, de volta? O nunca, o jamais, o para sempre carecem de registro, o pensamento colapsa. O buraco deixado pela morte é puro nada, mas através de pequenos encontros, detalhes, evocações do ser perdido, bordamos seus contornos, cerzimos uma cicatriz que, essa sim, jamais desaparece. O morto se eterniza nos que ficam. Encontrando restos deixados dentro de nós por aquela vida, andamos um tempo como bêbados, trôpegos de lembranças, enquanto a falta física ainda lateja. Para alguns, muitos desses achados são manifestações de um espírito que nos observa e pode se comunicar. Para mim são conjugações do luto, momentos em que a dor se materializa, fica visível. Fizemos do fortuito, como no caso do balão roxo, o solene embaixador da ausência de Alcione.
O luto só se encaminha para o território do suportável quando finalmente conseguirmos nos apropriar das memórias do ser perdido. O alívio só vem quando elas passam a ser nossas, tesouros internos, heranças resignadas à inexistência do seu protagonista. Porém, isso demora, arrasta suas correntes barulhentas pelos corredores da nossa mente. Enquanto o morto está ainda partindo em nós, fica pairando, à meia altura, encarando os envolvidos. Ele encarna nosso incômodo: queremos saber como é que a vida pode seguir, mesmo depois de se provar tão frágil.
Casulo de Tristeza
Casulo de tristeza: habitat das nossas transformações
Tristeza tem fim sim, mas é inevitável e, uma vez que ela chega, deve ser tratada como hóspede importante. Não adianta fingir que ela não está ali, no meio da sala com suas malas ao lado, pronta para passar uma temporada dentro nós. Melhor acomodá-la, fazer um café e ver o que ela tem para contar. Trata-se de visita que nunca aparece sem uma missão, se for levada em conta, mais cedo parte.
Ela surge bem cedo na vida, só que não é dado às crianças ficar suspirando por aí. É na puberdade, fase cheia de desânimo, que ela aprende a se instalar. A partir daí, volta e meia dá medo de viver e é preciso procurar abrigo. Há outros jeitos de desconversar a desesperança, mas não se cresce sem essas visitas. Carece construir um bom casulo de tristeza: ele é como um escudo protetor, um lugar onde se recolher para temer, questionar e olhar o mundo de fora. Entramos nessa espécie de abrigo em diferentes fases da vida, passa a ser o habitat das nossas transformações. Pensando assim, a tristeza parece algo bem menos pernicioso e assustador.
Quando perdemos um ser querido, certamente é hora de voltar para dentro. No luto, a morte espalha seu absurdo sobre cada detalhe da vida. Cada gesto, cada fato, cada idéia alardeiam ausência. Se conseguimos invocar uma presença hipotética daquele que partiu, supondo o que diria, do que gostaria, o que faria em tal ou qual situação, seu caráter imaginário de fantasma acaba se revelando e a tristeza nos engole. O mesmo ocorre com outros tipos de perda: o desemprego, uma separação amorosa, o exílio, só para citar alguns. São longos períodos de dor, nos quais continuamos nos surpreendendo com a falta da pessoa, do lugar, da ocupação. O trabalho do luto, ou seja, da tristeza, consiste em acreditar, aos poucos e a contragosto, no insuportável e incompreensível. A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim, como diz Caetano, e emenda: tudo demorando em ser tão ruim.
Recentemente, na nova edição do DSM, apelidado de “Bíblia da Psiquiatria”, incluiu o luto na patologia da depressão. A depressão é diversa do casulo de tristeza, de onde saímos superados e diferentes. Ela se parece mais com uma toca, da qual não se quer sair por nada e sequer se sabe bem como foi que se acabou lá. O manual tenta estabelecer prazos, no caso duas semanas, para diferenciar um luto necessário daquele que seria depressivo. Entendo esse esforço de compreensão do sofrimento, mas no que diz respeito à tristeza, as regras psiquiátricas parecem não falar sua língua. A música sim soube dizê-la: o samba é pai do prazer, o samba é o filho da dor, o grande poder transformador. Ao regulamentar a tristeza, ao suprimir seus aspectos positivos com remédios, ficaremos privados do casulo, da dor e de seu poder transformador.
Meu padrasto favorito
Por que dá tanto medo de ser pai?
Véspera de mais um, comercialmente exaltado, dia dos pais, estréia a sequência de “Meu Malvado Favorito”, filme de animação lançado em 2010. Trata-se da história de um vilão que encontra a redenção e o sentido da vida através da paternidade.
Como parte de um plano delirantemente maligno de sequestrar a lua em troca de resgate, Gru adota três meninas órfãs, que planeja usar para invadir a fortaleza de um vilão rival. Só que ele está mais para desprezível do que para mau, como sugere o título original: “Despicable me”. Na verdade é um tipo mal-humorado, um fracasso até mesmo entre os vilões. Somente um exército de Minions, pequenos e engraçados seres amarelos que trabalham para ele, o endeusa.
O convívio com as meninas o amolece e lhe faz viver experiências de felicidade inéditas. A menorzinha delas, pouco mais do que um bebê falante, é inocente a ponto de não ter medo dele e assim derrete o gelo do padrasto contrariado. Ele pretendia devolvê-las ao orfanato, o que obviamente não consegue fazer. O papel da pequena Agnes é similar ao de Boo, de “Monstros S.A.”, que transforma tipos assustadores em protetores dedicados. O mesmo vale para o bebê extraviado de “A era do Gelo”. Essas histórias são todas herdeiras da versão Disney de Mogli, de 1967, onde o garoto conta com a proteção paternal de dois animais machos e supostamente ferozes, uma pantera e um urso.
São tão recorrentes as histórias de pais vacilantes que precisamos perguntar-nos o que é tão assustador na experiência da paternidade, a ponto de que seja uma aventura chamar os homens ao papel. A resposta não é difícil: ser pai antigamente era simples e direto, hoje é tarefa de extrema complexidade e êxito duvidoso.
Em primeiro lugar, desapareceu a senhora do castelo montado em torno da figura do patriarca. A mãe está muito ocupada para intermediar a relação de pai e filhos. Ele que estabeleça um vínculo por conta própria. Quanto ao prestígio e poder do questionável chefe de família, bom, ele que o conquiste, se tiver cacife para tanto. Ela não o promoverá com nenhum tipo de submissão servil. Já os filhos, outrora súditos por excelência, hoje são um exército rebelde, anarquista, cujo respeito deverá ser obtido com muita lábia. Nenhum poder na família se estabelece sem uma ferrenha oposição. Deveríamos nos estranhar de que a ficção infantil relate o trabalho e a sedução necessários para convencer um homem a ser pai?
Em defesa da categoria dos pais, faço eco com o filme: aquele que aceitar o encargo tenderá a sentir-se muito menos desprezível aos próprios olhos. Antes de ajudar os filhos a crescer, será preciso aumentar a própria envergadura, necessária para prometer uma proteção na qual só se acredita sendo pai. Pouco podemos contra os tantos perigos e contratempos que ameaçam nossos filhos, mas faremos nosso melhor e com isso também nos tornamos maiores. Por isso, aqui vai minha homenagem a todos, pais, padrastos, padrinhos, homens e por vezes também mulheres que aceitam essa missão quase impossível.
o precipício de cada um
A vertigem é o medo de pular.
Subi na montanha e nenhum deus falou comigo, não tive a sorte de Moisés e Maomé. Mas sem dúvida encontrei algo grande: o pânico. A paisagem altíssima era de tirar o fôlego. Para os outros turistas do meu grupo aquele era um momento de deleite, para mim uma cilada. No topo, enquanto os outros tiravam fotos e procuravam novos ângulos para contemplar a maravilha, fiquei encostada na parede de pedra, sem olhar para baixo, refém das golfadas de medo. O precipício me sussurrava ameaças de morte. Sem opção, tive que descer com a ajuda paciente de companheiros de caminhada. Desci sentada, vexada, prometendo nunca mais ignorar essa covardia.
O medo de cair afeta alguns e é irrelevante em outros. Muitos têm a tranquilidade de deixar os olhos passearem além do parapeito, da beira. Parece óbvio, qualquer um teria direito a esse prazer. Afinal, se você estiver apenas olhando e não mexer nenhum músculo obviamente não cairá. Meus sentidos negam-se a essa conclusão lógica.
Pelo menos os sonhos são democráticos: todo mundo alguma noite despencou no vazio, numa visita onírica ao pesadelo da vertigem. Por sorte, o despertar sempre ocorre no limite do encontro fatídico com o chão, mas acordamos suados, coração acelerado, os olhos em busca de âncora. A escuridão do quarto é macia quando emergimos de um pesadelo. Esse tipo de sonho ocorre porque a angústia, sentimento universal, se parece muito com a vertigem.
Para o angustiado não há nada nem ninguém que garanta sua segurança, muito menos ele próprio. Mesmo que pontuais, as crises de pânico, que são como grandes ondas de angústia, aparecem alguma vez na vida de todo mundo. Elas são experiências de desamparo, nas quais fica-se indefeso como um recém nascido. Tudo se apaga, ficamos à mercê de um perigo difuso mas intenso, reféns do próprio corpo. Só sabemos do medo de que o coração pare ou dispare, da pele sensível que crispa-se a qualquer toque. Cabelos eriçados, olhos cegos, ficamos tontos, nauseados, imobilizados, presas fáceis da morte. Nesse momento, o corpo é “ele” e o pensamento é “eu”, não somos a mesma coisa.
Nas alturas, em pânico não vejo a paisagem, o vazio parece ditar ordens ao meu corpo. E chama, pede que me entregue, balance, afrouxe as mãos que me prendem à rocha, coloque o pé num lugar errado. O perigo que ameaça os medrosos de altura é interior, não é terremoto nem deslizamento de terra. É o medo de ir ao encontro da morte movidos por uma força maior que não dominamos.
Invejo a sorte dos senhores do seu equilíbrio, a quem a vertigem não lembra quão sutil é elo o que nos liga à vida. Mas me consola acreditar que o medo de deixar-se cair é apenas uma das formas pelas quais a morte se insinua a cada um. A fragilidade é universal, cada um tem a sua. Você não?
Kryptonita
O passado sempre continua nos apedrejando
Tive todas as oportunidades de emburrecer com a babá eletrônica. Fui uma criança apaixonada pela telinha pequena e imprecisa, em preto e branco. Ansiava muito pela hora da tevê começar e me sentia miserável ao término da programação. Dessas extensas jornadas televisivas restam muitas memórias, mas uma evocação é insistente: a Kryptonita, proveniente dos desenhos animados do Superman.
Trata-se de uma arma que era usada contra seus super-poderes pelos inimigos, a única que o colocava fora de jogo. Aproximar dele um fragmento dessa pedra, um mineral verde luminoso, deixava-o fraco, indefeso. O mais enigmático é que a Kryptonita era uma das raras coisas provenientes do planeta natal do herói, Krypton. Do mesmo lugar de onde se originaram os poderes veio o calcanhar de Aquiles. O fragmento de ficção, e da pedra, sobreviveu na memória por portar uma verdade e um alerta: há um lugar, nossa origem, que determina o que somos, mas é também de onde nossa derrota pode se insinuar.
Não posso omitir a cilada do meu inconsciente: meus dois sobrenomes, tanto materno como paterno, contém a palavra “stein” (pedra, em alemão), ou seja, meu passado é uma “pedreira”. Mas não só o meu, também o seu, o de todos. A infância, quando os outros são grandes e nós pequenos, é lugar de proteção, mas também de submissão, passividade, medos. O mundo dos pequenos é uma massa escura que não enfrentamos sem uma mão para segurar. Não é fácil lembrar disso. Tornamo-nos fortes e grandes graças ao exílio desse planeta natal da fragilidade. Só ficamos “super” porque crescemos.
Ao voltar à casa dos pais, mesmo velhinhos, sentimos a sinistra sensação de que lá o tempo congelou. Perdemos os bons modos, catamos no prato, distraímo-nos ao som da voz da mãe, testamos a força do pai, ficamos irritadiços, por vezes irreconhecíveis. Os lugares do passado são magnéticos, atraem à superfície fragmentos, cacos sobreviventes de outras eras. Atravessar a porta familiar dessa casa é como a queda de Alice no assustador País das Maravilhas. Não é porta, é portal, do outro lado esperam memórias que nos tomam de assalto. Assombrados pelos nossos outros “eus” do passado, descobrimo-nos, como Alice, viajantes surpresos num país de pesadelos, dentro de um corpo que encolhe, espicha e nunca nos abriga direito.
Faz toda a diferença como encaramos e como nos contamos as experiências que vivemos, a mesma história pode ser enquadrada por diversas lentes. Diferentes visões produzem novos efeitos. Mas nem tudo pode ser posteriormente resgatado, sempre há restos, alguma pedrinha nociva que incomoda ou obstrui. O passado é esse planeta natal, fonte de nossa força e vulnerabilidade.