Olhos nos olhos
Atravessando as barreiras dos gêneros e das idades.
Sábado de sol, o jovem pai empurra um carrinho de bebê. É aquele tradicional passeio antes do almoço cedo, seguido do primeiro soninho da manhã. Quem conviveu com bebês conhece a rotina. O carrinho está, como costuma, carregado com mamadeira, panos, bico e brinquedos, assim como as sacolas de compras que pegam carona. O bebê faz um comentário, o rapaz circunda o carrinho e, abaixando-se na sua frente, conversa com ele. O diálogo era inaudível, mas a resposta aparentemente satisfaz o pequeno interlocutor. Feito isso, retoma-se o passeio, não sem antes ajeitar qualquer coisa na roupa do filho.
Você percebe quantas novidades há nessa cena? Certamente evoluímos. Não creio que esse pai estivesse com seu filho por ter qualquer questão com sua virilidade. Tampouco estaria “tapando um furo” da mãe ocupada com outra tarefa. Pela naturalidade de suas reações, imagino que ele entendia sobre bebês, sabia trocar fraldas, dar banho, suportar noites de febre, compreender os diferentes choros. O leitor dirá que os homens não se transformaram tanto assim. É claro, não todos, mas já são em grande número e, lhe asseguro, são a imagem do futuro.
Além da postura “maternal” daquele homem há outra novidade na cena: é o diálogo com um bebê, uma criatura que ainda não tem linguagem clara. A maioria de suas palavras são de fabricação caseira, somente acessíveis aos iniciados. Juntam-se em frases lacônicas, compreensíveis mediante a observação da mímica corporal. Por isso a comunicação com os bebês torna-se possível somente quando fazemos o gesto daquele homem: nos colocamos na altura deles, atentos ao que dizem com voz e gestos. Não faz muito tempo que falamos com as crianças e faz muito menos que o fazemos com os lactentes.
Sigo com minhas suposições sobre a dupla encontrada na rua: acredito que ao lado desse pai, haja uma mãe menos sobrecarregada e que soube repartir velhos privilégios. O conhecimento das lides maternas era reserva de mercado feminino – ele não leva jeito para isso, eu é que sei – diziam as antigas.
Ceder espaço libertou as mulheres, mas também democratizou conhecimento: permitiu que os homens saíssem da alienação doméstica em que viviam. Eles podiam ter até poder, mas na intimidade eram dependentes e ignorantes do essencial. Os dons parentais agora podem circular, há pais muito capacitados para oferecer aconchego e mães que se revelam mais destras do que eles em colocar limites. São novidades bem vindas, porque o resultado é uma criança que conta com dois adultos que a escutam e olham nos olhos.
Nemesis
O lado lúdico (e útil) da rivalidade.
No esporte, o Jogo Limpo, mais conhecido como Fair Play, garante uma bela disputa, vitórias justas, derrotas vividas com dignidade. A vida seria bem mais fácil se isso vigorasse sempre. Mas nem sempre conseguimos ser tão construtivos. Na contramão disso, infelizmente, identifico em mim ideias que não trajam essa elegância esportiva. Costumo sentir inveja por rivais imaginários, em geral escritores com quem travo disputas dentro do meu pensamento. Estes, superiores em todos os sentidos, sequer sabem da minha existência.
Quando encontro textos publicados por eles, almejo-lhes o fracasso ou a mediocridade. Se o escrito for incriticável fico mordida, reconheço a derrota e conduzo-os, de mau grado, ao merecido pódio. Caso haja qualquer brecha para pensar que eu faria melhor, ou mesmo, suprema glória, que já escrevi de forma mais interessante sobre isso, eis a vitória esperada.
Em língua inglesa essa rivalidade tem um nome: é Nemesis. Originalmente esse é o nome da personagem mitológica responsável pelo controle da soberba, e a personificação da vingança. Em inglês, diz-se que um herói tem sua Nemesis quando possui um inimigo admirável, como o professor Moriarty é o contraponto à altura de Sherlock Holmes.
Não passa de uma inveja recreativa. Tanto que ela praticamente não surge em minha atividade profissional, a psicanálise. Os baixos pensamentos se confinam à escrita, meu trabalho das horas vagas. Meus Nemesis-escritores servem para escoar minhas rivalidades. São como o time adversário para um torcedor fanático.
Quem tem irmãos praticou essa competição saudavelmente ao longo da vida sem dar-se conta. A disputa fraterna é construtiva, graças a ela ninguém pode almejar a perfeição, os rivais nos ressaltam as fraquezas. Sem isso, qualquer um se acha a cereja do bolo, o queridinho da mamãe, mas o nascimento de um irmãozinho costuma lembrar que o reinado é passageiro. Quando se tem irmãos mais velhos, serão um parâmetro, um ideal instigante. Como eles, meus escritores-rivais certamente ajudam a aperfeiçoar a escrita.
Sei que muitos dirão que há lugar para todos, pregarão um coração pacifista. Concordo com estes pensadores na prioridade da vida interior que leva ao constante questionamento de conceitos e valores, sem medir-se com ninguém. Porém, não há como negar que fazemos parte de um e vários grupos.
Na sociedade individualista nossa condição de seres sociais não tem muito prestígio. Ignoramos com prazer os laços que nos atam aos semelhantes e aos ancestrais. Cada um de nós gosta se imaginar um lobo solitário, um self made man, figura adorada do capitalismo, que não depende nem deve nada a ninguém. Quanto a mim, deixem-me com meus Moriartys, graças a eles posso pretender ser uma espécie de Sherlock.
Médico & monstro
Esperamos que eles derrotem a morte, por isso a humanidade dos médicos acaba parecendo imperdoável.
Dizem que o filho de Deus teria resolvido voltar à terra para sentir de perto a realidade de seu rebanho. Em busca de uma identidade secreta, a de médico do SUS pareceu-lhe conveniente, pois curar já era um de seus atributos. Num posto, recebeu um paralítico a quem ordenou – “levanta-te e anda”, e o paciente saiu do atendimento livre da cadeira de rodas. O pessoal na sala de espera o indagou-o sobre o que achara do novo doutor. Ele respondeu que era como os outros: – “imagina, nem me examinou, só olhou e já me mandou embora”.
Essa piada ilustra o papel de deuses que atribuímos aos médicos, assim como da eterna insatisfação dos pacientes. Afinal, entre nós e a morte sempre há um deles. Ao fardo de situar-se no limite da existência, os profissionais têm reagido de diversas formas, muitos com seriedade e humildade, outros com soberba.
Só que há algo que está acima da condição individual, que diz respeito ao papel social superdimensionado da categoria. Depositamos neles uma expectativa quase delirante: imaginar a imensidão do seu poder convém, nos protege do medo da doença e da morte. Veneramos seu saber e os desprezamos e odiamos quando nos sentimos por eles desamparados. Infelizmente, alguns médicos e pacientes esquecem-se de que trata-se apenas de trabalhadores da saúde, fundamentais, mas de forma alguma divinos.
Entregamos enorme poder imaginário aos médicos pelo tanto que deles dependemos, mas principalmente pelas fantasias que temos a seu respeito. Eles fazem o que podem, usam sua ciência e competência a nosso favor, mas são gente como nós. Quantas vezes os odiamos justamente porque os endeusamos?
O médico que deixou seu filho Bernardo Boldrini em estado de indigência emocional, a ponto de ser assassinado pela madrasta, deixa-nos estarrecidos. Certamente porque espera-se de um pai o oposto do que ele fez. Porém, o constrangimento em torno deste caso provém de que o menino pediu ajuda à justiça, mas a casa de um doutor provavelmente parecia um lugar improvável para tanto mal.
Daqueles de quem esperamos, apenas, que nos livrem da morte, não seria perdoável que fossem perversos, omissos, corruptos. Foi o caso do nazista Josef Mengele, cuja monstruosidade se multiplica aos nossos olhos quando associada à sua profissão. Na fantasia, coube ao Dr. Frankenstein, imbuído do desejo da divindade, conceber a criatura horripilante feita de cadáveres. Na mesma linhagem fantástica, Dr. Jekill, também um médico, teve que ser o alter-ego destinado a encobrir a sanha assassina de Mr. Hide, o monstro.
Dos médicos, tão sobrecarregados pelo nosso imaginário de doentes apavorados, espera-se que tenham preparo para lidar com essa massa de sentimentos e expectativas. Por sorte, apesar dos que se iludem e acreditam na própria divindade, há muitíssimos outros, tão humanos como você e eu. Quanto a nós, pacientes, precisamos ter a coragem de livrar os doutores da onipotência que atribuímos a seu ofício.
O ano da procrastinação
O que ganhamos adiando as tarefas?
O verão é uma época em que nada se resolve, nada se entrega, nada termina. Não adianta crescer, para sempre ficaremos esperando uma espécie de volta às aulas. Só que este ano, o Carnaval adentrado em março, prorrogou o início do ano para meados do terceiro mês. A complicação do calendário atrapalha negócios, prazos e tarefas, mas vem a calhar para nossa mente procrastinadora. Procrastinar é uma palavra empolada e útil, quer dizer postergar, adiar, evitar a realização de uma tarefa. Vou tentar explicar nossa familiaridade com esse funcionamento.
Imagine que tenho que visitar uma tia idosa gravemente doente, uma parente dessas a quem deveríamos, mas não conseguimos, nos sentir ligados. Sinto que devo ir ao hospital, mas não vou. Graças a esse comportamento omisso, a cada coisa que faço fico pensando que em vez disso deveria visitar a tia doente. Se tivesse ido, a esqueceria e só voltaria a evocá-la quando alguém me avisasse do fim do sua agonia.
A cena que fabulei acima serve para todas as pendências às quais nos apegamos. Há tantas tarefas marginalizadas que acabam ocupando nosso centro, de tal modo que fica difícil fazer outra coisa. Ruminações e pensamentos obsessivos são uma cachaça: culpamo-nos, ficamos pensando compulsivamente em que estamos em falta, nos distraímos do essencial obcecados por tarefas que só se tornam relevantes se não as fizermos.
Pode parecer estranho, mas há certa conveniência no sofrimento pelo fracasso antecipado. Não cumprir com a obrigação vem a calhar para cultivar a culpa e fazer-se inúmeras auto-acusações. Afinal, isso acaba sendo mais cômodo, pois se já estamos condenados mesmo, nem adianta tentar, deixa assim! A tia nunca será visitada, o trabalho não será escrito, o relatório não ficará pronto, a encomenda nunca chegará ao destino, a arrumação pode esperar e assim por diante.
Para que servem essas situações desagradáveis? No caso da tia doente, por exemplo, provavelmente não passa de covardia, medo de pensar no fim, no próprio envelhecimento, ou dos pais. Se for um trabalho que não se realiza, ou nunca se termina, podemos sempre imaginar que sairá perfeito. Enquanto não começamos ele é potencialmente uma obra prima. Na prática somos falhos, enquanto em hipótese somos geniais.
Há uma personagem de Melville, o escrivão Bartelby, que representa caricaturalmente a recusa a tudo que se pede a alguém. O sujeito empregou-se numa repartição mas esquivava-se a qualquer tarefa. Frente a qualquer mínima solicitação, ele invariavelmente respondia: “acho melhor não”. Às vezes nos parecemos a ele.
A procrastinação e a culpa andam juntas. A paralisia que elas nos impõem é uma cilada, achamos melhor não fazer algo vida real para ficar cultivando alguma preciosa fantasia inconsciente. Azar da titia, e principalmente nosso. Já estamos em abril e pesa sobre as costas tudo o que nos determinamos a resolver no mês passado, um início postergado do qual esperávamos tanto. Falar nisso, acho melhor não terminar nada antes de julho, este ano só vai começar depois da Copa.
Noites no Aqueronte
Há utilidade e até poesia sutil em certas bagunças renitentes.
Ao lado da cama, sem perceber, eu havia ancorado um minúsculo barco de metal. Dentro dele uma moeda esquecida. Um dos tantos objetos sem sentido que preenchem uma casa. Já reparou que sempre há algumas quinquilharias que nunca vão para seu lugar? Sabe por quê? Porque aquele é o seu lugar. Foi assim com meu barquinho despropositado.
O enfeite herdei do meu pai, na verdade o recolhi entre seus objetos, depois que ele se foi. Ele não o teria dado, estava usando. Como eu, tinha-o parado ali em seu porto, pronto para levá-lo de volta para casa. Eu não tinha entendido essa missão.
Meu pai veio de barco para a América, fugindo do nazismo. No porto foi a última vez que viu seu pai e seu irmão, mas na ocasião ele não sabia disso. Quem sabe se pudesse navegar de volta àquele momento pudesse evitar, ou mesmo despedir-se com um verdadeiro adeus. Ele partiu com um até logo, que sempre lhe pareceu insuficiente.
Quer sejamos religiosos ou não, imaginamos que nossos mortos sempre estão em algum lugar, no mínimo aquele onde nossos pensamentos os visitam. Talvez para esse fim, ou mesmo para o seu fim, meu pai tenha guardado sua pequena embarcação de metal.
Para os gregos, era um barco que levava para o Hades, terra subterrânea dos mortos, sua última morada. Não era céu nem inferno, apenas um outro lugar. Porém, o acesso não era gratuito: custava uma moeda, entregue a Caronte, o soturno barqueiro incumbido da travessia do rio Aqueronte. Para tanto, na cerimônia de despedida dos mortos, uma moeda era colocada na boca ou nos olhos do defunto, que partia com o pagamento necessário. Precavida, jamais vou dormir sem uma moeda em meu barquinho. Pelo jeito, tomei precauções sem notar, pois não quero ficar navegando a esmo para sempre.
Cada noite de sono é uma visita às margens do Aqueronte. O abandono do corpo, indispensável para dormir, requer também abrir mão da consciência de si. Ficar inconsciente, nem que seja pelas horas que separam um dia do outro, pode dar medo, é como morrer temporariamente. Meu barquinho representa tudo isso, tão pequeno e tão carregado. A morte de cada noite, o extermínio do qual meu pai fugiu, outros não, sua espera pela viagem final e a minha.
Repare nas suas pequenas bagunças, elas encerram em si muito mais verdades do que os enfeites de nossas casas. Os objetos decorativos são como a cara que apresentamos ao espelho, nossa versão editada. Já os aparentes desleixos, principalmente aqueles objetos que se abancam num lugar como se tivessem vontade própria, esses contém muitas verdades. A minha, é que vivo a cada dia consciente de que estou nesta margem apenas por um tempo. Grata pela sua duração, mas quando for a travessia, quero estar preparada.
Sou cisgênero
Muito além da visão binária, escolha entre cinqüenta opções de gênero!
O garoto, lápis na mão, pergunta à mãe: – o que é sexo? Ela larga o que fazia e começa uma delicada explicação, que envolve amor, sementinhas, talvez algum detalhe anatômico. Entre divertido e surpreso ele acrescenta: – mas o que devo marcar aqui, masculino ou feminino? É quando ela percebe que ele só queria ajuda para preencher um formulário… Essa piada é clássica, revela que sempre pensamos além do que se diz e em geral sobre sexo. Só que hoje ela está deixando de fazer sentido.
Num formulário tradicional, provavelmente as opções seriam Masculino, Feminino ou, adicionado mais recentemente, Outro. Isso se não for o Facebook americano, onde a partir de agora serão possíveis cinquenta opções para você designar sua identidade de gênero. Entre as possibilidades de denominação hoje disponíveis é possível designar-se lésbica, gay, travesti, transexual, andrógino, bigênero, intersexual, pangênero, entre outros, se nos ativermos à identidade de gênero. Quanto à orientação sexual, ou seja, a definição de a quem é que desejamos e amamos, podemos ser não somente ser homo, hetero ou bissexuais; você poderá ser assexual, pansexual, ou mesmo declarar-se predominantemente homossexual, basicamente heterossexual ou vice versa.
O termo “gênero” surgiu na esteira das pesquisas da antropóloga Margareth Mead, que fez o levantamento de impressionantes diferenças culturais na construção dos papéis feminino e masculino. Elas tornaram inquestionável a posição de Simone de Beauvoir de que ser mulher é algo que não se nasce, torna-se. O que ambas queriam ressaltar é que a resposta para o formulário do garoto é mais complexa e ainda mais complicada do que sua mãe supunha. Diante desses novos debates, as sementinhas ficaram obsoletas.
Se um formulário tivesse que se ater a dois campos, hoje seriam talvez assim: ( ) Cisgênero – que você deve assinalar caso sua identidade esteja em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer – ou ( ) Transgênero – assinalando uma discordância entre o sexo biológico e a sua forma de ser.
Na verdade, a divulgação e até mesmo a oficialização dessas múltiplas alternativas levanta um dos maiores tabus da nossa cultura: a falsidade da dualidade e oposição entre masculinidade e feminilidade. Estas identidades estão a léguas de qualquer obviedade, tampouco representam tudo o que somos e sentimos. Por que temos tanto medo da queda da máscara dos dois sexos opostos? Porque é uma das raras certezas que temos cultivado sobre como se deve ser, fora delas, a liberdade de opções apavora. A mediocridade se alimenta de parâmetros binários.
Longe de temer essas inovações, deveríamos entender que elas carregam uma utopia, um sonho: o de que a identidade sexual não seja uma sina, um peso insuportável de ser carregado. Crescemos inquietos, envergonhados e sempre inseguros de estar à altura de ser verdadeiramente homens ou mulheres. Já está na hora de mudar esse desafio. A certeza nunca virá, mas a violência contra aqueles que abalam as estruturas jamais falta.
Nus e pelados
nudez não é uma questão de roupa
Nus e pelados
Lembro do dia em que descobri o que era a nudez. Era carnaval e não havia baile infantil de clube ou de rua naquela cidade uruguaia, a folia era simples e sem graça: circular pelas ruas mais povoadas do balneário, esperando e temendo ser atingida por uma bombinha d’agua ou um jato. Era isso que os garotos faziam, e eram eles que me interessavam. Com sorte, o banho seria de confetes ou serpentinas, mas eu não conseguia decidir se isso era um mérito em relação à ser atingida pela água, mais incômoda, ou um descaso.
Não sei que idade tinha, mas acho que não havia atingido os dois dígitos. Minha fantasia era composta de um sarongue e um colar daqueles de flores de plástico, usados sobre a parte de baixo do biquini. A parte de cima, naqueles tempos mais ingênuos, sequer era usada na praia. Sarongue, colar e flores para a cabeça, saí toda primaveril para a rua, disposta a brincar de temer ser molhada.
Foi quando notei a presença dos meus seios. Não me refiro aos reais, que nem sugeridos estavam naquela ocasião, mas sim àqueles que um dia apareceriam. Foi naquele dia em que pela primeira vez me senti nua. O fim da infância chegou, sem anunciar- se, em pleno Carnaval.
Meia quadra depois corri para casa de volta, completei a fantasia com o resto do biquíni, mas já era tarde: mesmo oculto meu corpo de criança já tinha o que mostrar. A nudez é um sentimento que pode atingir a pessoa mesmo quando não há nada para ser visto, assim como pode estar ausente quando tudo está explícito. O que me expôs a um olhar cuja existência eu ignorava até aquele Carnaval foi o desejo que senti de ser alvo das brincadeiras dos meninos.
O Carnaval está aí para que a sensualidade possa se exibida, enfeitada, fantasiada, desnudada ou travestida, numa festa civilizada. A exposição dos corpos de passistas e destaques carnavalescos é, no fim das contas, tão educada como uma praia de nudismo, onde pode-se andar sem roupas sem ser incomodado.
Já o desejo que a nudez revela é diferente do direito de andar pelado e rebolar em público, ele se alimenta daquilo que quando visto produz algum efeito, algum rubor, algum frisson nos envolvidos. Pode e costuma ser controlado, mas move montanhas. No começo da vida de todos há esse divisor de águas: aquele momento do surgimento da nudez, no qual o corpo se torna desejável. A partir daí a intimidade é necessária e a porta do banheiro se fecha para os olhos da família.
O momento carnavalesco dessa história de infância foi dado pela oportunidade de parecer uma havaiana. A diversão estava garantida se tivesse continuado o passeio sem ficar envergonhada, mas fui atropelada por um desejo que ainda desconhecia e toda nudez tem algo a ver com ele: a ideia de que o que pode ser visto denunciará as mais recônditas fantasias do portador. Essas fantasias não desfilam, elas costumam sair na calada do sexo, na intimidade dos casais. Os pelados da avenida são lindos, exuberantes, vistosos e sejam bem vindos. Mas nudez, meus amigos, essa é outra coisa e, por sorte, não ocorre somente no Carnaval.
O prazo do luto
Luto: a hora de deixar os fantasmas tornarem-se lembranças (a propósito de um ano do incêndio da boate Kiss, amanhã)
Abandonamos quase todos os rituais. Hoje eles são uma caricatura do que foram em um passado recente. Se vivêssemos décadas atrás, agora, no aniversário de um ano das mortes da boate Kiss, estaríamos levantando o luto, o período previsto para sofrer estaria cumprido. Voltaríamos a usar roupas normais e estaríamos liberados para as alegrias da vida. Podemos objetar, e com toda razão, que um prazo assim é arbitrário, um luto dura enquanto dura, é um tempo subjetivo, pessoal. Cada um sabe quanto precisa para juntar seus cacos e seguir em frente, qual é a hora de dar-se conta de que há outros que contam com sua presença. Talvez fosse mais fácil fazer um luto quando ele era tabelado, cercado de prescrições que só nos cabia seguir. Mas os tempos de hoje são de uma maior solidão para esse processo, não existem parâmetros, cada um tem que inventar sua maneira de lidar com a dor.
Enquanto vivemos possuídos pelos efeitos da perda, nossos mortos sobrevivem nos sentidos: são vistos e escutados. Aliás, não é à toa que na ficção há tantas casas assombradas: é na intimidade que as lembranças ganham corpo, as casas são os cemitérios preferidos dos nossos sentimentos. Juramos ter visto uma sombra, que se favorece dos jogos de luz, os ouvidos detectam os passos, a chave na porta, o quarto vazio guarda ecos de ruídos ausentes. A imagem preservada pelo amor substitui o corpo que fomos obrigados a nunca mais ver.
Com o tempo os fantasmas se transformam em lembranças. Estas têm uma característica inquietante, que é sua aparente arbitrariedade, pois nunca temos certeza de que são verídicas. Sua natureza é contrária à realidade, só existem porque algo deixou de existir. Lutamos contra essa transformação com todas as forças, agarramo-nos aos fantasmas, única presença possível de alguém que se tornou ausência. O maior apoio dessas aparicões são seus objetos, seus cômodos se tornam mausoléu onde celebrar a perda irreparável. O que ontem era deixar de usar as vestes negras, sinal de um luto oficialmente encerrado, hoje passa a ser o momento de desfazer-se de objetos, roupas, ninharias, de reconhecer que já não há sequer um fantasma que reclama um lugar para morar.
Nesse processo de abrir mão dos restos materiais daqueles que perdemos, há algo que reencontramos: voltamos a notar a presença daqueles que restam vivos ao nosso redor. São pais, irmãos, filhos, netos, sobrinhos, maridos, esposas e amigos que precisam sentir-se importantes, fazer diferença. Entregues à dor demonstramos que só nos importava aquele que partiu. Infelizmente, no sofrimento somos egoístas, negando qualquer valor aos outros vínculos que não foram perdidos. Por amor aos que não morreram é preciso deixar o morto tornar-se lembrança, tirar da alma os trajes negros, resignar-se a viver.
Um certo exagero da mídia em falar do assunto é também uma resposta coletiva para ajudar em problemas individuais. Como já não temos regras do que vestir, como portar-se, como sofrer, o compartilhamento social ajuda a cada um dos familiares e amigos. Acaba sendo uma forma nova para um problema velho, uma ajuda para seguir em frente depois de enterrar pessoas amadas.
O que é bom dura pouco
Pobre felicidade, a mais incompreendida e maltratada dos sentimentos.
Minha amiga fez uma reforma dentro de casa. Deviam incluir reformas, principalmente aquelas nas quais se permanece habitando um lar semi-destruído, nos testes psicológicos. Se o morador do imóvel em escombros não enlouquecer, dificilmente perderá o equilíbrio em situações extremas: seria um caso de saúde mental comprovada. Um casal que sobrevive a uma reforma será feliz para sempre. Pois minha amiga, sua família e os dois gatos superaram isso e passam bem. Ninguém pediu a opinião felina do Quincas e da Frida, mas tenho certeza de que eles discordam da necessidade de ter feito tudo aquilo.
Quando fui visitá-la para ver as melhorias prontas, a casa estava tão bonita e agradável que imediatamente instalou-se o sentimento de que sempre fora assim. Comentamos que é uma pena, mas o período em que comemoramos as novidades boas passa demasiado rápido.Também quando algo piora, estraga ou deteriora, aos poucos adotamos naturalmente os caminhos necessários para contornar o problema: a luminária queimada será evitada, a janela emperrada será menos utilizada, o liqüidificador estragado decorrerá na eliminação das receitas que o necessitem.
A vida é movimento e somos muito plásticos, adaptamo-nos às circunstâncias, expediente que permite a sobrevivência até em condições extremas. Mudamos o tempo todo, nem que seja pelo fato de que a cada dia vamos ficando mais velhos e carregamos a experiência, os temores e sucessos armazenados dos momentos anteriores. Por vezes, mudamos para muito melhor, por outras enfrentamos perdas ou mesmo a triste constatação de um esforço inútil, como diriam o Quincas e a Frida sobre as novidades na casa da minha amiga.
Mas nada é à toa, devo discordar dos gatos. Eles são uns ranzinzas e prefeririam que nada se alterasse nunca, tanto que existe a expressão “mais nervoso que gato em dia de faxina”. Queria lembrar àqueles dois gorduchos peludos que agora eles têm mais luz e espaço em vários cômodos da casa, mas eles vivem um eterno presente, assim como costuma acontecer conosco.
No fim do ano fazemos balanços. Até os que alardeiam que isso é ridículo, pois o primeiro de janeiro é exatamente igual ao trinta e um de dezembro, que nada recomeça, são atropelados pelas retrospectivas do ano na mídia, pelo ambiente de promessas e esperança.
O resultado dessa avaliação anual sempre é prejudicado pela dificuldade de perceber as mudanças e, principalmente, de comemorar as boas novas. Reagimos como um bebê: quando está com fome berra como se nunca tivesse sido alimentado e ao ser bem cuidado ronrona um prazer que parece contínuo. Quando a felicidade chega, olhamos para ela como certos pais que recebem as boas notas dos filhos e, em vez de elogiar, dizem que ele não fez mais do que a obrigação. Pobre felicidade, a mais incompreendida e maltratada dos sentimentos. Depois de amanhã, último dia do ano, pode dispensar a lentilha, os fogos, mas não abra mão da gratidão pelo que melhorou. Por outro lado, se algo piorou, acredite, de algum modo vai passar.
Escutando os fogos
Abaixo a euforia imposta no grito nas festas do fim do ano!
Sou filha e neta única. Minha família de origem é minúscula, talvez por isso tenha desenvolvido a vocação para transformar amigos em parentes. Meus melhores amigos são como irmãos ou cunhados, seus filhos são meus sobrinhos. Entre os parentes, cultivo alguns laços que transcendem as obrigações familiares, tenho prazer em vê-los.
Lembro que meus pais tinham sobre a estante da sala uma caneca com a seguinte inscrição: o acaso faz os parentes, a escolha os amigos. Leitora recente quando encontrei a frase, ela nunca deixou de ecoar. Pouco valorizamos a força das primeiras palavras que decodificamos por conta própria, saboreadas com paladar virgem. A leitura das primeiras frases, então, impõe verdadeiras jornadas filosóficas aos iniciantes.
A frase da caneca, enigma que morava na estante, tomei-a como promessa. Era como se me fosse dito: não importava ter tão poucos parentes, melhores são os amigos que a gente escolhe. Apesar desse consolo, meu marido me presenteou com uma grande família, que faz festas natalinas com tudo a que se tem direito, nas quais esta judia que vos fala passou a ser incluída. Ele brinca que dei o “golpe da árvore de Natal”, ou seja, que o escolhi só para poder montar uma. Ele está enganado, eu também tinha interesse nos ovos de páscoa e nos parentes-amigos com quem festejar. Somadas as tradições de ambos, temos um calendário atribulado.
Quando pequena passava as festas de fim de ano somente em companhia de minha avó. Meus pais ficavam no Brasil trabalhando e eu veraneava na praia uruguaia onde ela vivia. Após o jantar sentávamos no pátio e nas noites festivas também ficávamos ali, em silêncio, escutando e assistindo os fogos. Era melancólico, mas é uma lembrança pacífica e aconchegante.
Nos anos seguintes, adolescência em diante, experimentei do que se considera devido no Natal e Ano Novo, todas as modalidades: entre amigos, com familião, romanticamente em casal. No fim, descobri que qualquer estilo pode ser bom, nem que seja uma avó e uma neta, caladas ao relento. Sentimo-nos em dívida com as imagens populares e publicitárias: muito vermelho e dourado, as ceias, crianças maravilhadas, a parentada bem vestida, música, amigos, sensualidade e a alegria dos brindes. Mas vamos e convenhamos, essas festas marcam o fim de um ciclo e concluir é sempre no mínimo complexo. São eventos que arrastam consigo algum balanço, e as contas da vida nunca fecham. As esperanças sempre ganham das realizações.
Festas, as que verdadeiramente ocorrem, em geral são meio melancólicas como aquelas da minha infância e isso não é necessariamente ruim. Só fica patético quando tentamos impor a euforia no grito. Queria mesmo poder contar à minha avó, que partiu há muito tempo, que sinto saudades. Depois de todas essas andanças, nossas noites de fogos e silêncio ainda ocupam um lugar de destaque em minha memória. Ela me ensinou que é preciso pouca parafernália para estar bem. Hoje isso não é um acaso, é uma escolha.