Zero Hora
Exibir por:

Armarinho

Sobre o divórcio dos os antigos dons femininos

Não sei corte e costura, mas prego botão, faço bainha e cerzidos, também posso bordar pontos simples e até tricotar algo que lembra um cachecol. Essas pequenas habilidades dão um mínimo de autonomia para não contratar costureira para coisas banais. Mantenho um pequeno costureiro para essas tarefas, o que se revela bastante complicado. Encontrar um armarinho na maior parte dos bairros é pior, perdoem o trocadilho infame, do que achar uma agulha num palheiro. Para quem não sabe (homens e mulheres), armarinho é uma loja especializada em aviamentos de costura, que são os apetrechos necessários para tal fim.

Perto de casa havia uma loja de 1,99 que fechou, onde funcionava uma espécie de armarinho clandestino. Entre flores de plástico e estatuetas de gesso, era possível comprar alguma linha (esqueça cores mais ousadas), talvez um fecho, mas não se esperava encontrar linhas de bordar e botões. O que foi que condenou esses lugares à extinção, ao ostracismo, à raridade?

Fiar, tecer e costurar historicamente sempre fizeram parte da condição feminina, tornando-se quase seu sinônimo. Porém, na conquista implacável de novos territórios a que nós mulheres nos lançamos, abandonamos com desprezo tudo aquilo que fazia parte do confinamento doméstico. Por milênios a metade fêmea da humanidade viveu exilada da vida pública, alienada de todas as decisões importantes, inclusive as que afetavam seu destino. Em sua gaiola, ela podia costurar e tecer, apenas na reta final do exílio feminino, algumas privilegiadas conquistaram o direito de dedicar-se a ler e escrever. Não admira tenhamos feito um divórcio litigioso das agulhas.

Temos assistido alguns resgates comerciais ou lúdicos das artes femininas: mulheres artistas têm ateliês de costura, assim como cozinheiras gourmets fazem das antigas ocupações um bom divertimento ou negócio. Mas reparem, aqui também elas estão avançando sobre o espaço dos homens: foram eles que fizeram da costura e da comida um comércio, pois o trabalho feminino sempre foi expediente interno.

Não seremos vistas entrando num armarinho, no máximo numa loja de Patchwork. Na realidade cotidiana, orgulha-nos a incapacidade de executar tarefas que seriam naturais às avós. Foi uma alienação necessária para criar uma nova identidade para a mulher. Mas talvez hoje possamos evitar a infantilidade adquirida: mulheres agora precisam de outros para vestir-se e alimentar-se, reproduzindo a impotência que os homens sempre tiveram no lar. A feminista Betty Friedan os chamava de “homens-criança”: no mundo eram importantes, em casa incapazes de cuidar da própria higiene. É triste copiar tanta inermidade. Uma boa meta para a cruzada feminina pela libertação talvez seja resgatar os dons e a sabedoria das nossas antepassadas. Incluindo a costura, entre tantos outros. Ou ao menos voltar a ser capazes de pregar os próprios botões.

PS: descobri um armarinho na minha própria rua. Dentro de um brechó!

Sede de vingança

Com o que mexe a ficção vingativa de Tarantino?

Sede de vingança

Não mais nos reunimos em praça pública para ver a cabeça dos culpados rolar ou pender. Mas, sempre que possível, fazemos isso no noticiário e, principalmente, nos cinemas. Nos antigos filmes de cowboy, um catártico tiroteio garantia a punição dos bandidos e a saída incólume do herói. Duros de matar, esses homens a cavalo foram logo substituídos por policiais igualmente solitários. Final feliz requer o chão coberto de corpos dos maus. Em “Django Livre”, como já fizera em “Bastardos Inglórios” e em “Kill Bill”, o diretor Quentin Tarantino arma seu roteiro a partir da nossa sede de vingança contra escravocratas, nazistas e machistas violentos.

Sou uma vingativa confessa, quero ver sangue. Mas fique tranquilo, no sentido figurado. Nada de pena de morte e torturas. Sei que a civilização começou quando alguém abriu mão da retaliação. Na vida real, a morte só deve ocorrer quando inevitável. Porém exorcizo minhas pendências na ficção. Da segunda guerra, onde meus antepassados e parentes foram assassinados, gosto de lembrar que existiu o Levante do Gueto de Varsóvia. Como eles, se fosse para morrer gostaria de levar pelo menos um nazista comigo. Na fantasia sempre somos mais corajosos.

A vingança, seja histórica ou pessoal, funciona de forma parecida com o fim litigioso de um relacionamento amoroso. Sejamos sinceros, não queremos que o outro seja feliz, lhe desejamos a morte lenta e o ostracismo. Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença, que o melhor troco é ignorar, genuinamente. Mas isso leva muito tempo para ser possível e mesmo assim sofremos recaídas. A dor deixa cicatrizes e elas são lembretes lavrados na pele, para sempre.

Os protagonistas dos filmes de Tarantino carregam essa insígnia, assim como os judeus tatuados, os escravos marcados, o mesmo ocorre com o maior vilão nazista em “Bastardos”. Há coisas que não são passíveis de um desfecho elegante, como seria a superação. Nem tudo se consegue esquecer, mesmo porque precisamos garantir que nunca se repita.

Questiona-se a cantilena de afro-descendentes e judeus que estão sempre na defesa e não perdoam os maltratos sofridos. Em parte, ela é necessária: preconceitos estão sempre ressurgindo, é preciso ficar em guarda. Porém, nem os descendentes de alemães nem os brancos da atualidade têm culpa pelos absurdos cometidos pelos seus antepassados. O que fazer, então, com os restos desse ódio vingativo? Tratá-los com o mesmo preconceito que se sofreu seria indigno, igualmente vergonhoso. Mas como conviver com as cicatrizes que latejam, a mágoa que espreita pronta para pular sobre nós, a autocomiseração, que pode não orgulhar-nos, mas compõe nosso lado sombrio?

Depurá-lo no cinema é uma forma de eliminar o excesso. É uma sangria do despeito, da tristeza, que permite manter o fluxo da civilidade. Não somos, nem nunca seremos, totalmente civilizados. Potencialmente, somos tanto algozes, quanto vítimas vingativas. Haja matinê!

Como se não houvesse amanhã

Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.

É fácil evocar o que pensamos em momentos de agradável intensidade: “azar, não posso deixar de viver por medo, é tão legal que podia acabar agora”. Já pensei isso. Quantas vezes nos colocamos em situações de risco ou, pelo menos, naquelas em que o bom senso não impera? Não negue, mesmo que você seja o rei da precaução, todos nós já fomos apresentados à cara do perigo. Sair à noite em nossa sociedade violenta, beber mais do que gostaríamos, estar em um lugar confinado, fazer uma aventura arriscada de carro, escaladas, voar de asa delta, tomar banho em cachoeira, dirigir bêbado, subir no carro do amigo destemido ou alcoolizado, ficar íntimo de alguém que não se conhece, frequentar ruelas escuras. A lista é longa.

Essa leveza beirando a irresponsabilidade é coisa típica da juventude, mas também, com sorte, reencontramos esse sentimento mais adiante. Os jovens vivem momentos festivos de euforia coletiva, atravessam juntos uma noite que faz o tempo parecer infinito. A festa é nossa desde o início dos tempos e costumava ser um momento sagrado, onde os excessos e descontroles eram prescritos. Hoje celebra-se a alegria, a força vital, o direito de dançar de qualquer jeito, só pelo prazer de partilhar o ritmo com os amigos e contemporâneos.

Jovens se arriscam, mas desta vez o culpado é outro. A tragédia de Santa Maria, causada por irresponsáveis que, espero, serão descobertos e punidos, não foi culpa deles, que estavam divertindo-se, nem da permissividade das famílias que não os acorrentaram em casa. Eles acorreram ao evento sem conferir se havia saídas de emergência, portas corta-fogo. Mas isso não era tarefa deles. A alegria pressupõe a confiança de que vai dar tudo certo. A felicidade é otimista, por isso muitas vezes envolve riscos, que devem ser sanados por aqueles que têm a diversão alheia como forma de trabalho. Vale para uma festa, um parque de diversões ou um programa de mergulho.

Investigações e punições são uma dívida com as vítimas. Mas as famílias e os amigos sobreviventes não terão nada devolvido com isso, já perderam o essencial: aquela mínima isenção do medo e da culpa que nos ajuda a viver. A morte, principalmente em sua face trágica e quando se perde um jovem, é a maior experiência de impotência. Nada porta o sem-sentido da vida como a inclemência do fim, principalmente o de quem teve reduzido o tempo de dizer a que veio.

Perder um filho é a pior das mortes, é um assassinato da esperança, impossível de assimilar. Cuidamos zelosamente nossos descendentes, pois seguirão nossos passos quando cessarmos. Sua morte é um milhão de vezes mais insuportável que a nossa, restamos sem sua transcendência. Um filho morto diminui a chance nos tornarmos lembrança. Apesar disso, não podemos ser egoístas e guardá-lo numa redoma, esperando que viva para nos cultuar.

Sou mãe de duas jovens da idade da maior parte das vítimas da boate Kiss. Tanto quanto elas, estivemos muitas vezes em muitos lugares assim. Se meus pais tivessem me impedido, se eu proibisse minhas filhas de viver seu tempo, certamente sua segurança estaria melhor garantida. Porém, um filho cerceado em sua liberdade é alguém cujo corpo é confinado para que sua mente só se ocupe de amar aos pais. Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.

Às pessoas queridas dessa mais de duas centenas de jovens mortos gostaria de transmitir muito mais do que a solidariedade, também a identificação. E principalmente dizer: não, vocês não poderiam ter impedido seu filho, sua irmã, sobrinho ou amigo de estar lá. Ele exerceu o direito de ser livre e feliz, você tinha o dever de respeitá-lo. Desta vez, não houve amanhã, mas se um jovem é proibido de conviver com seus pares ele também acaba privado de conhecer-se, do seu futuro. A dor é inevitável, mas gostaria de aliviá-la da culpa. Correr riscos faz parte de ensinar a viver, embora, repito, essa dor é tão imensa que certamente não estou, no momento, servindo de consolo.

Desgarrados do guarda-sol

Desgarrados do guarda-sol Os Meninos Perdidos da história de Peter Pan são originalmente crianças que as babás deixaram cair do carrinho sem dar-se conta. Se após sete dias ninguém os reivindica, as fadas os recolhem para a Terra do Nunca. Não há meninas lá, pois, conforme Peter, elas seriam muito espertas e não cairiam do […]

Desgarrados do guarda-sol

Os Meninos Perdidos da história de Peter Pan são originalmente crianças que as babás deixaram cair do carrinho sem dar-se conta. Se após sete dias ninguém os reivindica, as fadas os recolhem para a Terra do Nunca. Não há meninas lá, pois, conforme Peter, elas seriam muito espertas e não cairiam do carrinho, no que devo concordar que ele tem razão.

Outro tipo comum de meninos perdidos são os desgarrados do guarda-sol: os pequenos que aproveitam que a vigilância familiar relaxa para explorar o mundo sem bússola nem mapa. Quando percebem a ausência dos seus adultos, apesar de que foram eles mesmos que se afastaram, sentem-se abandonados e abrem o berreiro. Neste veraneio, até inventaram umas pulseirinhas eletrônicas, que permitem a localização da família quando a sirene do mini aventureiro começa a tocar.

Paradoxalmente, é mais fácil ser curioso e correr o risco de perder-se quando nos sentimos cuidados. Geralmente acontece com pequenos que desenvolveram a “capacidade de estar só”. Ela pressupõe o seguinte: uma criança vive em conexão direta com uma figura materna, fonte máxima de segurança; como ninguém pode estar presente o tempo todo, a duras penas ela acaba descobrindo que a mãe não some, nem ele, e que é bom que isso aconteça. Mas também há uma forma menos dramática de aprender a autonomia, que é distrair-se, tornar-se capaz de ficar só. Acontece quando o bebê fica absorto em seus assuntos, cantarolando e brincando, esquecido de chamar a atenção da mãe ou de controlar seus movimentos. Eis uma pequena pessoa crescida, que tem em si mesma uma boa companhia. O fugitivo das areias é alguém que sai consigo mesmo a passear. Carrega dentro de si, por um tempo, seus adultos.

Os pais, nem que seja por instantes, também se permitem desligar na presença do pequeno. Distraem-se porque precisam tirar um pouco do pensamento essa obsessão de fraldas. Mas há os pesadelos, como os bebês que morrem esquecidos em carros, afogados ou são seqüestrados. São ameaças que dificultam esse jogo benéfico de mútua desatenção, já que um vacilo pode ser fatal. Somos todos ousados sobreviventes dessas incursões perigosas nos momentos de desatenção que em alguma ocasião vivemos. Não nos foi necessário o resgate mágico, mas alguma fada madrinha olhou por nós. Tristemente, isso não ocorreu com os pais e filhos que a fatalidade castigou. É bom lembrar que eles não são monstros. Pais e filhos precisam desligar-se mutuamente, nestes casos extremos algo falhou.

Até hoje me emociono nas praias em que há o hábito de colocar a criança perdida nos ombros e sair batendo palmas, com o coro dos banhistas, até encontrar a família da criança apavorada. A cena me leva às lágrimas, porque sinto que fora do guarda-sol familiar, há um mundo de gente disposta a zelar por nós. Quando dá certo, é bom perder-se do território conhecido para descobrir que há incursões seguras por terras estranhas. Faz parte da aventura interminável de crescer e, com sorte, baterão palmas por nós quando o medo chegar.

Mudança

Narrativas, recriações da verdade, ajudam a elaborar grandes e pequenos traumas, não perca “A vida de Pi”!

Desconfiada, fui assistir ao filme sobre um menino e um tigre náufragos. Não fossem as recomendações de pessoas próximas que me garantiram ser imperdível não teria ousado. Isso dito por uma incorrigível fã de filmes de aventura, fantasia e ficção infanto-juvenil. Com a mesma confiança dos apreciadores que me deram esse presente, recomendo ao leitor: se já não viu, não perca!

A magia da jornada marítima do garoto indiano funciona porque Ang Lee, diretor de A vida de Pi, administra o improvável, as cenas malucas, com boas doses de humor sutil. O filme é mais do que uma aventura, é uma pulga atrás da orelha sobre como ver e narrar a própria vida. A organização da informação, que devemos a jornalistas e historiadores, é imprescindível, mas insuficiente para fazer-nos compreender quem somos, onde estamos e o que diabos aconteceu. Precisamos mais que isso. Para isso servem a ficção, a fantasia, a beleza dos diversos tipos de vozes e olhares.

São essas recriações da verdade que nos tornam capazes de elaborar um trauma qualquer. Não precisa ser uma guerra, uma catástrofe, um abuso, também ficamos marcados pela morte de um avô, pela ocasião em que esqueceram de nos buscar na escola, pela perda do primeiro amor.

Contado com arte, o vivido transforma-se em algo que pode ser visto e compreendido de vários jeitos. Por isso, longe de ser supérflua, a arte é um instrumento de crescimento e equilíbrio emocional eficaz para todas as idades. Artigo de primeira necessidade!

Passaram-se quase 12 anos, desde setembro de 2001, quando recebi um telefonema da Claudia Laitano, convidando-me a uma contribuição quinzenal neste espaço do Segundo Caderno. Tenho escrito estas colunas, misto de crônica e mini-ensaios, sobre fatos reais e imaginários. Esta é a última vez que sou publicada aqui. Migro para o espaço de Opinião da Zero Hora, mensalmente aos domingos, além de outras escritas esporádicas.

A duras penas aprendi que as histórias que pedem para ser contadas pelo colunista, por vezes são fatos, outras ficção. Seguirei falando sobre produtos culturais, que não passam de ilusões, exatamente como os sonhos: tramas inverídicas onde os psicanalistas garimpamos as maiores verdades!

A realidade por vezes é grande demais, é como um alimento cru que necessita preparo para ser absorvido por nossos estômagos frágeis. Nos jornais e revistas, o artigo, o ensaio, a crônica, a coluna tentam dar forma ao que vivemos sem entender. (Nos divãs também.) Loucos, pretensiosos, esses jornalistas e escritores. Gracias, Claudia, por ter me convidado a ser como eles!

(publicado no jornal Zero Hora, dia 16.01.2013)

Nostalgia da matiné

O épico visita nossa vida banal, sobre o filme O Hobbit

Minha infância careceu de matinê. Nunca soube o que era programação dupla: bang-bang, seguido de filme de aventuras, capa e espada ou comédia. Estive ausente do cinema da tarde, onde crianças e jovens emergiam do escuro de alma lavada. Em contrapartida, vi surgir os filmes-catástrofe, como Terremoto, quando sentimos pela primeira vez o cinema tremer com os efeitos especiais. Sem falar do, inesquecível, pânico e nojo do O exorcista. Além da diversão da tela, havia o prazer de partilhar em silêncio do mesmo sonho. O cinema é uma escuridão acompanhada, pesadelos não causam ansiedade, desejos não geram culpa. Por isso, não podia ser maior minha gratidão com Peter Jackson, que levou às telas as histórias de Tolkien.

Fui apresentada à literatura do filólogo inglês durante a infância das minhas filhas. O padrinho da mais velha presenteou-a com um exemplar de O Hobbit, livro introdutório da saga, a história que acaba de tornar-se filme. Laura tinha seis anos quando seu pai começou a lhe ler aquelas intrincadas aventuras. Ela escutava com a respiração suspensa. A operação se repetiu anos mais tarde com Júlia, a caçula, mas àquela altura eu mesma já havia entrado no livro. Lembro de ter ido trabalhar sem dormir, incapaz de deixar meus heróis em meio de uma batalha contra Trolls ou nas garras de um dragão.

“Todas as histórias precisam de polimento”! Diz o mago Gandalf num diálogo dessa adaptação de Jackson. Ele tomou liberdades, sim, mas em nome do direito de re-apresentar a saga ao público de outro tempo, quase quatro décadas após sua publicação. As histórias da Terra Média nunca deixaram de ser o lar imaginário de sucessivas gerações de jovens iniciados, no cinema se tornaram acessíveis a todos.

O mago Gandalf é uma espécie de guru da masculinidade e, como está difícil saber como tornar-se homem atualmente, seus ensinamentos vem a calhar. Quando li o livro, as músicas cantadas pelas personagens, cujas letras Tolkien inseria na trama, me matavam de tédio. Na recente versão filmada, se ouvisse aquele canto dos anões convocando para resgatar sua terra natal eu teria me alistado! Assim fez o pacato Bilbo, que abandonou a rotina doméstica rumo ao desconforto e, pior, o perigo. Suas aventuras resultaram numa história para contar e foram justamente essas narrativas que levaram seu descendente Frodo à jornada com a Sociedade do Anel. Os humanos fazem-se a partir de histórias e elas sempre podem ser mais e melhor contadas: no escurinho do cinema, nas páginas de um livro, tanto faz, desde que traga o épico para nossa vida banal.

Phone home!

Entrando em 2013 com esperança de caderno novo e olhos de criança cansada!

Para entender as crianças, pense como você se sente em viagem a um país novo, uma cultura exótica, diferente, onde cada minuto é desconcertante. Ao final de um único dia parece que transcorreu uma semana e só o que você quer é um banho e o quarto de hotel, sua casa nesse planeta distante. Quanto menores, mais estrangeiras ao nosso mundo elas são. Os pais terão que ser guias pacientes, saber a hora de recolher seus turistas confusos e estressados à bem-vinda rotina familiar.

Conviver com os pequenos exige atenção, sensibilidade de funcionar dentro de um ritmo que eles possam acompanhar, algo que poucos adultos e pais estão dispostos a fazer. É preciso manter-se falando com eles, diagnosticar seu desconforto. Crianças demandam tradução. Tudo lhes soa incompreensível, cansam fácil, precisam refugiar-se em seu mundo lúdico privado, em geral na hora em que o adulto gostaria de continuar na festa. São de tiro curto e se forem forçadas a ir além de suas forças vão acabar criando algum tipo de birra, litígio ou bagunça.

Crescemos, mas seguimos para sempre alienígenas às novidades do destino. Pelo resto da vida, as mudanças fascinam e assustam. Ao chegar, juventude, adultez e velhice sempre nos encontram contrariados, recalcitrantes e confusos. Somos como um computador superado, ficamos sobrecarregados e damos tilt a cada desafio. Nossa visão de mundo é como um sistema operacional condenado à defasagem.

Um bom exemplo disso está no filme E.T., de Spielberg, que completou três décadas este ano que finda. Nessa história, só as crianças entendem o desamparo e o desterro do simpático extra-terrestre, embora esse seja um sentimento universal. Todos temos nossa criança interior, essa que nos assombra para sempre. Ela também se confunde com o desconhecido e quer ligar para casa, precisa contato com a Nave Mãe.

Ano novo é como lugar novo. A sensação de caderno virgem é a expressão otimista dos balanços de fim de ano. Prometemos que desta vez não haverá folhas incompletas, amassadas, em branco! Fazemos listas de boas intenções, votos depositários da insaciável cobiça de perfeição. Graças a isso, o primeiro dia do ano marca o início de uma jornada fadada à frustração. Meus cadernos continuam caóticos, em sentido figurado, mas, como todo mundo, tenho fé na renovação, ela abre a porta da esperança. Reincidentes, voltamos a acreditar na aposta em que “desta vez vou fazer tudo certo”, mas e se não? A cada recomeço reencontro a criança acuada que nunca me deixou. “Phone home, phone home!”, pedia o E.T..

Para o ano que entra e tantos outros, lembre-se de que dependemos de encontrar um equilíbrio instável entre o conhecido e o estranho. Precisamos seguir em frente, mas de tanto em tanto, repousar em território conhecido, mesmo que ele pareça um caderno rabiscado, com orelhas. Seja um adulto compreensivo consigo mesmo. Ao longo do trajeto, se agache, olhe sua criança interior nos olhos e a conforte. Seja um bom pai para você mesmo e feliz ano novo!

Publicado em Zero Hora, dia 30/12/2012

Fale com elas

Falar com as crianças é o melhor presente!

Já viveu mais de meio século, mas meu marido ainda lembra do cuidado que tinha na hora de pendurar a lancheira para não se enganar. No jardim de infância, antes de conhecer as letras, cada criança tinha uma figura no cabide, a dele era um elefante, aquele era seu lugar. A creche é o primeiro espaço de existência pública, onde se pode ser alguém fora da família. Os adultos da família nos nomeiam, definem, rotulam, e com isso vão nos modulando, mas quando saímos “por conta”, quanto se tem um cabide de elefante para chamar de seu, é que passamos a ser alguém.

A Casa dos Cataventos, nome emprestado da poesia de Quintana, não é creche, nem escola, é um lugar para brincar e conversar. Lá também cada criança marca sua chegada de um jeito. Em vez do cabide, pois muitas não trazem uma mochila, ao chegar seu nome é registrado no quadro, num livro de presenças, no copinho que vai usar para tomar água. Ela é anunciada por escrito, mesmo que ainda não saiba ler. Os adultos desse lugar estranho estão lá para falar com ela e não sobre ela. Eles se interessam sinceramente por suas fantasias, que ali são grande coisa. É bom que seja assim, a infância é incompatível com a hipocrisia. Crianças farejam a mentira, brincam de faz de conta, nunca fazem de conta que brincam.

Situada na Vila São Pedro, a casa é um projeto comum de psicanalistas e universitários, mas ali os pequenos membros da comunidade é que são as estrelas. Inspirado na Casa Verde, criada na França por Françoise Dolto, e nas Casas da Árvore, instaladas nas favelas cariocas, esse trabalho provou-se uma importante ferramenta de saúde mental. Os profissionais se alternam: eles também devem colocar seu nome, brincar e conversar. As crianças entram e saem quando querem, seguem as regras combinadas entre todos, e brincam com dedicação. Por que adultos fazem das tripas coração para criar e manter um lugar aparentemente tão despretensioso?

A maior parte das crianças em situação de extrema pobreza cresce órfã de atenção. Em geral passam a vida sem jamais ter conversado com um adulto sobre seus sonhos e pesadelos. Ninguém fica sabendo do que cada uma tinha medo e raiva, e isso tudo elas compreendem e expressam brincando!

O que não vira brincadeira tende a entrar em confronto com a sociedade. Dar espaço à fantasia evita a marginalização de sentimentos, pensamentos e atos, simples assim. Por isso, no Natal que se aproxima, convém lembrar que o importante não é o brinquedo, o presente. Brinque, converse com seu filho, seu neto, seu sobrinho. Acolha sua imaginação e ele lhe dirá quem é!

Luto negado

Os efeitos psicológicos de um desaparecimento, a descoberta de documentos sobre o assassinato de Rubens Paiva.

Júlio Miguel Molina, coronel da reserva do exército, foi assassinado em Porto Alegre. Num lance surpreendente, a investigação desse crime abriu as portas para a elucidação de outro: o assassinato do deputado cassado Rubens Paiva, torturado até a morte e desaparecido durante a ditadura. Na casa do militar foram encontrados documentos, restos de arquivos do DOI-Codi. Nunca mais se teve notícia de Paiva depois do dia 20 de janeiro de 1971, embora sua tortura houvesse sido testemunhada por outras vítimas. Os cinco filhos e a esposa estavam em casa quando ele foi levado por militares da aeronáutica. Posteriormente, foram informados de que o preso havia fugido. Essa família conviveu por décadas com um desaparecimento, que é diferente de uma morte. Sem poder se despedir, tiveram que dizer adeus por dedução.

Os papéis encontrados devolvem simbolicamente partes do corpo de Paiva. Atestam sua prisão e arrolam os objetos recolhidos na ocasião: vestimentas, um lenço branco, um chaveiro com cinco chaves, papéis e documentos. Até agora não havia como provar a presença do deputado nas dependências do exército. Agora há. Além de anistiado, o crime estaria prescrito. Porém, ocultação de cadáver é um crime que não prescreve. Nem o luto.

O luto é um processo lento, no qual vamos acreditando, a contra-gosto, que perdemos alguém para sempre. Inutilmente aguardamos sua volta, tecemos comentários que lhe interessariam, esperamos sua opinião, e a cada reiterado silêncio, nos convencemos um pouco. Mortes aniversariam por muito tempo, revemos repetidas vezes suas cenas. Por ser inexorável, a morte é sempre traumática. O trabalho do luto é a tentativa de lhe emprestar algum sentido.

Um corpo desaparecido, insepulto, é o seqüestro do direito ao luto. Sem ritos funerários, a morte fica parecendo uma ilusão, de tal modo que a própria vida do morto vai tornando-se imaginária. A crueldade com Paiva estendeu-se, portanto, à família. Seu filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, perguntou-se sobre Molina: “Por que guardava o documento? Era uma espécie de souvenir da guerra suja?” A resposta talvez seja que os algozes (com quem o coronel teve algum vínculo) também precisam materializar a morte para acreditar nela, mesmo que seja dos seus inimigos. A tragédia grega de Antígona, impedida de realizar os ritos funerários de seu irmão, se atualiza para os parentes de presos políticos desaparecidos. No fim desta tragédia brasileira, espero que estejam escritas cenas de restituição da dignidade do luto.

Ruído Interno

O silêncio é um raro privilégio, nosso ruído interno o afoga em ruminações!

A imagem do descanso, que evocamos fervorosamente nesta época do ano, equivale a um lugar calmo, via de regra silencioso, onde se escutam, no máximo, os pássaros e o mar. Ao contrário, o pesadelo das praias têm sido a música alta, o barulho das festas, dos alto-falantes de propaganda, do trânsito. Tanta gente fazendo barulho num ambiente de repouso parece uma guerra aberta contra o silêncio, talvez porque ele saiba ser bem assustador.

Quando cessa o tumulto fora, inicia-se uma sinfonia dentro da nossa cabeça. São ruminacões, pequenas ou grandes paranóias, desejos difíceis de admitir, fantasias de grandeza, obsessões ou ressentimentos amorosos, pendências que se enfileiram para ocupar espaço na nossa mente. Esmagados pelo peso dos pensamentos indigestos que carregamos conosco, recorremos ao barulho externo, que cala essas vozes inoportunas. Por isso tantos “Magais” e seus asseclas. Mas há outra forma de livrar-se dessas vozes: projetando-as em outros sons.

Reportagem da Folha de São Paulo (13.10.2012) narra um problema comum a muitos síndicos profissionais: as queixas dos ruídos dos vizinhos. Conforme eles, é muito comum que os condôminos fiquem obcecados com sons provenientes da casa dos outros, que alegam tornar sua vida um inferno. Entre os vilões prediletos estão passos, relações sexuais, choro de bebê e a idéia de que alguém está batendo no chão ou fazendo tumulto de propósito para enlouquecer quem vive embaixo. O síndico é convocado a escutar o pesadelo do morador queixoso e alguns têm passado a noite no sofá do sofredor, em busca de provas do crime.

Com assustadora freqüência, o morador diz estar escutando os tais terríveis barulhos sem que o síndico possa se solidarizar, pois não está ouvindo nada, e estamos falando de gente hipoteticamente normal, do tipo que não ouve vozes. Neste caso, trata-se de alguém que está colocando, como se fossem fora de si, ruídos que na verdade são internos: o barulho assustador do sexo dos pais, o choro do irmãozinho indesejável, a festa à qual nunca somos convidados, os passos provocantes de mulheres arrumadas para noite.

Para as crianças que um dia fomos, o barulho dos adultos pode ser tranqüilizador, mas também inquietante. Quem não lembra do prazer de adormecer no meio de uma reunião social dos pais, com o ruído das conversas nos embalando, o tilintar de talheres e copos, a música, garantindo que não estamos sozinhos? Ao mesmo tempo, apavorados, escutávamos as discussões do casal, imaginando o mundo a ruir, os arrulhos de seus amores, sentindo-nos excluídos, à mercê do destino deles, aparentemente tão poderosos. Essa, a de crianças impotentes, é a imagem que me suscitam os vizinhos acuados pelos seus sons imaginários.

Quando crescemos carregamos conosco esse acervo, uma trilha sonora que toca em nossa cabeça mesmo quando não é convidada. Por isso, o silêncio é artigo de luxo, acessível a poucos. Usufruí-lo depende de calar essas vozes que se empenham em abafar o barulho do mar. Eis algo bom de se ouvir.