Machismo na cozinha
Essas condutas incivilizadas não conseguirão reconduzir as mulheres a escravas de cama e mesa, nem as crianças a seres amedrontados e passivos!
Valentina é uma menina que ganhou notoriedade pelo programa MasterChef Júnior. Ela tem a aparência de sua idade, 12 anos. Veste-se de forma adequada, sua fala e expressões são as de uma púbere comum. É graciosa, como muitas meninas nessa fase. Mas o protagonismo que ganhou deve-se a manifestações agressivas de cunho sexual de que foi vítima na internet. A questão é: o que a fez uma garota, participante de um programa de culinária, ser alvo dessas agressões? Se alguém conseguiu ver nela qualquer tipo de insinuação, essa pessoa é um prodígio de desconhecimento de si, afinal, toma como de fora o que lhe brota de dentro.
Certos homens, por uma insegurança básica de sua masculinidade, acreditam que toda e qualquer exposição feminina que existe, ou que eles supõem que exista, como nesse caso, é para lhes provocar. Como se elas estivessem apenas esperando o seu olhar. Uma vez que se acreditaram provocados, devem agir, demostrar sua macheza, mostrar de que falta de fibra são feitos. É uma típica atitude erotomaníaca, no sentido de projetar seu desejo e suas fantasias no outro. Frente a esse tipo de atitude, de sentirem-se convocados a uma cena que não lhes diz respeito, temos duas possibilidades: os primeiros não necessariamente são abusadores reais, ficam fantasiando e agindo nas sombras, na internet, por exemplo. As redes sociais são o paraíso para os covardes, desse e de todos os tipos, lá não há uma responsabilização direta sobre as agressões. E no espaço virtual começa e termina sua ação constrangedora. Seu dano não é pequeno porque cria uma atmosfera de violência sexual, uma cultura do abuso.
Mas vamos aos piores, o abusadores, os pedófilos. Eles não fazem proselitismo, não latem, eles mordem, por isso são quietos. O que apreciam é a ingenuidade da vítima. Seu gozo necessita dessa assimetria de posições, não é só de força física e de idade, mas principalmente de experiência. Eles querem sentir-se como mestres, iniciadores, a inocência e a surpresa da vítima aumentam-lhes o efeito prazeroso: quanto mais frágil seu objeto, maior o gozo. Arriscam, em termos legais, para não arriscar-se onde sentem-se realmente frágeis: na entrega erótica, não têm peito de enfrentar alguém em pé de igualdade. A escolha de objeto diz muito de nós, pois há uma certa identificação com o parceiro. Por isso pode-se dizer que o abusador procura parceiros onde parou sua maturidade sexual. A sexualidade adulta põem a maioria dos pedófilos a correr, sem um poder tão grande, como ele consegue com uma criança, eles ficam sendo os fracos e impotentes que sua equação sexual particular requer.
A lógica da proteção de que se Valentina não estivesse na TV nada disso aconteceria é a lógica da burca. Esse tipo de cerceamento da circulação social de meninas e mulheres pressupõe que sua presença produz uma inevitável e incontrolável mobilização do desejo masculino. Na sua selvageria auto-complacente, eles exigem que as mulheres fiquem presas para não serem perturbados. Promovem o exibicionismo da macheza por temor dos efeitos impactantes que o corpo feminino lhes produz. Esse tipo de agressor tem medo das mulheres e reage com a violência das feras acuadas.
Talvez a televisão, assim como a internet, sejam uma forma de exposição forte para alguém pequeno, porém, as crianças gostam de ver-se protagonistas de suas atrações. Seria triste se a televisão só mostrasse adultos. É claro que os critérios têm que ser rigorosos, mas já tivemos muitas experiências de exposição erótica de adolescentes no passado da TV e MasterChef Júnior está longe de ser uma delas.
O programa de que Valentina participa não é como os realities shows da versão adulta, onde a humilhação e a concorrência ao estilo dedo no olho parece ser parte integrante do show. A versão mirim é adequada à infância, com mais carinho e elogios do que outras coisas. Não classificaria o programa como educativo, mas que ele coloca questões sobre como criamos nossos filhos. A ideia de proteção da infância é correta, mas muitas vezes exageramos na dose, deixando as crianças fora das experiências da vida, meros espectadores do mundo adulto.
Crianças na cozinha, sempre que supervisionados, me parece uma grande ideia. A comida deixa de ser mágica, elas descobrem o trabalho que qualquer coisa dá, o esforço requerido. A arte culinária pede uma boa dose de concentração, uma sincronização da inteligência motora com a intuição, com a percepção sensorial, é preciso pensar quantidades e tempos de preparo, enfim, não é uma ciência fácil. E deve ser bem mais fácil ensinar química, física e biologia para quem já pilotou um laboratório simples, que é uma cozinha, do que para quem nunca entrou nela.
A culinária entrou na moda quando a classe média, incluindo os homens, tiveram que cozinhar. Enquanto isso era coisa de empregados e mulheres era algo menor. Só que agora as mulheres abandonaram a vocação unívoca para as panelas e, por causa das legislações trabalhistas, este ofício tornou-se oneroso. A consequência, ótima aliás, é que a alienação culinária é menor até entre os adultos mais abastados, como todos têm que se virar um pouco no fogão, cozinhar tornou-se chique.
Na ocupação da cozinha por homens e crianças encontramos a inversa do machismo que confina a feminilidade à vida privada. Elas saíram, eles entraram. As crianças, por sua vez, conscientizadas de que a alimentação é algo no qual se pode ser ativo, deixam de comer como quem mama, o que se lhe puser na boca. Assim a obesidade e as doenças decorrentes da alienação do ato de comer certamente diminuirão. Essas condutas incivilizadas não conseguirão reconduzir as mulheres a serem uma escrava de cama e mesa, nem as crianças a seres amedrontados e passivos. Vivemos um momento de reação a essas conquistas, mas elas são irreversíveis.
Muito obrigada por suas palavras Mário. Estar atento é fundamental. Procuro ao lado da minha filha de 13 anos deixar cozinhar, brincando, experimentando, fazendo cursos profissionalizantes de atendimento ao público, maquiagem e estética, porque ela procura, tem boas habilidades com o artesanato e com a criatividade de um modo geral. Percebe que poucas meninas podem viver e também ser protegidas. Mas não impedidas de crescerem. Abraço
Muito bom! Parabéns, Mário, agradeço a reflexão. Ontem mesmo estive lendo um artigo da Diana, publicado na revista da APPOA, cujo tema era a puberdade com tudo que a acompanha.
gracias Guilherme! lembro que esse texto sobre puberdade me deu muito trabalho e muito prazer, foi um enorme desafio! que bom que ainda encontra seus leitores! Abraços !
Diana, tenho lido o que escreves com frequencia e me interessou o texto mencionado sobre a Puberdade, o de consigo?????
aqui mesmo no site, digita na busca a palavra “puberdade” e voilá! Abraços