o dia em que adotei minha avó

Quando meus amigos vinham com a choradeira por ter pais separados, eu tinha uma resposta. Eles punham na mesa seus três reis e eu sacava quatro ases dizendo: meus avós, de ambos os lados, são separados. Provocava um efeito de solidariedade garantida, comunicava que sabia bem o que era uma família partida, mal entendidos e […]

Quando meus amigos vinham com a choradeira por ter pais separados, eu tinha uma resposta. Eles punham na mesa seus três reis e eu sacava quatro ases dizendo: meus avós, de ambos os lados, são separados. Provocava um efeito de solidariedade garantida, comunicava que sabia bem o que era uma família partida, mal entendidos e ressentimentos. Hoje as separações são corriqueiras e, embora doídas, são assimiláveis. Na minha infância elas eram escassas, mal vistas e deixavam um rastro de destruição. Na geração dos meus avós eram uma raridade aberrante. Não foi fácil para meus pais.

Mas minha ligação com os avós pairava acima de tudo. Passava as férias em suas casas e cheguei a morar com eles. Essa proximidade me fez gostar da velhice. Não me importava com sua lentidão, com as repetições e manias. Os velhos têm a sabedoria de quem já apanhou bastante da vida e eu percebia isso. Cresci olhando para trás, talvez daí venha meu gosto por tempos que desapareceram.

Viver com os avós nos dá outra dimensão do mundo, saímos do eterno presente e apreciamos o peso do passado. Além disso, eles têm as provas de que nossos pais já foram pequenos, frágeis, logo, crescer é possível. Há nisso também uma cumplicidade em reduzir o papel e a força dos nossos pais. Se crescer é sair de casa, a casa dos avós é um bom estágio.

Mas até numa família dividida há um lado bom: as pessoas normais têm duas avós, eu tinha três. Um grande capital, mas trazia alguns problemas. Por exemplo, como que você chama a esposa do avô, a avó que não é sua avó, sem abalar a relação com a outra avó, a que se considerava legítima? Precavido contra o risco de desempenhar mal meu cargo de neto, eu a chamava pelo nome: dona Avlisa.

A casa dos meus avós era um paraíso para almas telúricas como a minha. Tinha jardim, horta e pomar. Aprendi com meus avós a paciência necessária para plantar. Numa dessas lidas, segurava um ramo de maracujá para guiar, e disse: – vó, me passa o barbante. Simplesmente saiu. Fiquei desconcertado, ficamos ambos. Ela me olhou de volta com um sorriso que nunca esqueci. Não foi preciso dizer mais nada. Ganhei uma avó e ela ganhou um neto.

Sem dramas posteriores, cada uma das três foi minha avó a seu modo. Durante anos segui assim milionário, com mais avós, primos e tios que os outros amigos. Mas o tempo é cruel, numa década conheci a miséria. Reequilibrei-me financeiramente só com a chegada das minhas filhas. Nossos velhos são guardiões da história, quando eles se vão suas memórias mudam de mão. Quando cuido do meu jardim, nunca sei se cultivo as plantas, ou elas sustentam as lembranças de quem me ensinou sua magia.

08/11/13 |
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3 Comentários
  1. Ler Mário Corso logo cedo é ter sustentação para o resto do dia: humano e – como diriam meus amigos de São Luiz Gonzaga – de fundamento.

  2. Vera Luzia Machado permalink

    Ola Mário Corso! Muito pertinente teu texto, lindo… ao ler me remeteu as lembranças com meus avós, e ao mesmo, que lembranças, meus netos terão quando já crescidos. Bem , isso fica para eles!!!! ( você participou da banca quando apresentei minha monografia na Uníjui-1995 – Parricídio-Uma visão Psicanalítica, a orientadora foi a Clarice Sampaio Roberto. Grande Abraço!!

  3. Mara Becker permalink

    Maravilhosas são estas tuas lembranças, parece que estou vendo a cena quando morei com eles. Muitas vezes , olhando a fumaça que sai das panelas, me pego pensando nela. Muito lindo.

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