O Facebook e o cérebro

Talvez o Facebook e sua sociabilidade hiperativa não sejam mais do que tentativas de resgate de formas tradicionais de relacionamento!

Esses tempos escutava as aventuras de um jovem médico voluntário no Xingu. A barreira da língua era um empecilho, a lógica das queixas, e as formas inusuais de expressar o sofrimento físico também. Mas o que realmente o desafiava era como manter uma ficha médica, como aproveitar as informações dos colegas que já haviam passado por lá. Por exemplo: a ficha indicava um senhor de aproximadamente 60 anos, mas lhe traziam uma criança. Como? Simples, lhe disse o intérprete, o avô tinha um nome muito respeitado, e como gosta muito do neto, deu o seu nome a ele. Logo, agora o fulano é essa criança. O avô tomou outro nome. Como que o intérprete sabe? Ora, todos sabem, responde o intérprete. Essa troca não era um caso isolado, portanto quem quiser fazer uma ficha médica dessa população vai ter que pensar numa outra lógica, e esqueça as referências espaciais, eles são nômades.

Para nós, a troca de nome beira o inconcebível pois acreditamos que devemos, de alguma forma, nos manter iguais a nós mesmos vida afora e nosso nome faz parte disso. Aliás, mudamos tanto durante a vida que é difícil saber qual é o núcleo que responde pela nossa identidade. Em outras palavras: o que é que muda e o que permanece inalterado em nós é uma pergunta sem resposta fácil.

O exemplo acima não é único, na maior parte das sociedades tradicionais os nomes variam ao longo da vida. Geralmente nos ritos de passagem o indivíduo ganha um novo nome, mas nem só: nascimentos e mortes também costumam também suscitar novas denominações nos parentes. Ou seja, um indivíduo pode se chamar de diferentes formas durante a vida. Quem vive entre eles sabe a lógica que preside a troca e acompanha as mudanças. Essas alterações constantes, aliadas às complicadas (em comparação às nossas) relações que regem os casamentos, de quem pode casar com quem e de quem não pode nem se aproximar, ou ainda quem pertence a cada clã ou sub-clã e a que linhagem o recém-nascido pertencerá, constituem um complexo enredo social que exige bastante do cérebro.

Mas lembro essa questão a propósito duma recente pesquisa: os cientistas da University College de Londres divulgaram os resultados de uma investigação mostrando uma correlação entre certas áreas do cérebro e o número de amigos que as pessoas possuem nas redes de relacionamento virtuais. As pessoas com maior número de amigos possuem certas áreas cerebrais mais desenvolvidas. Certo, mas o que determina o que? Eles tem mais amigos por ter essa área mais desenvolvida, ou possuem essa área mais desenvolvida pelo exercício da amizade? Os pesquisadores pararam por aqui. Certamente uma nova pesquisa partirá dessa pergunta. Dada a plasticidade adaptativa do cérebro, apostaria no uso, mas isso é um palpite, teremos que esperar um outro estudo.

O que sim poderia ser considerado é um outro dado dessa questão. Do ponto de vista histórico o número de pessoas que conhecemos durante a vida mudou muito. Vivemos numa sociedade individualista, em contato com muita gente, mas com poucos deles temos laços significativos. Sabemos e temos informações sobre nossa família, que é cada vez menor, e de alguns amigos eleitos. Freqüentamos muitas pessoas, mas de poucas retemos informações como o nome, filiação e um trecho de sua vida. Já não gastamos muita energia arquivando nomes de pessoas aleatórias, suas qualidades, seus defeitos, sua história. Num passado não tão distante isso era ao avesso. As sociedades tradicionais tinham a vida social em grande conta e as informações sobre os indivíduos que delas faziam parte eram cruciais.

Acredita-se que, do ponto de vista evolutivo, a forma de funcionar em relação aos parentes, às amizades, às pessoas que conhecíamos e à importância que damos a elas, certamente sofreu mais influência desse momento histórico anterior ao nosso, pois somos – a sociedade moderna individualista – uma exceção recente no longo percurso do homem.

Nosso cérebro foi moldado, e assim funcionou durante a maior parte do tempo, em sociedades tradicionais, ou seja, conectado a uma extensa rede social, onde sabíamos tudo de todos. Mais ainda, se considerarmos que essas sociedades têm um funcionamento distinto em relação aos mortos, pois eles não são esquecidos, são honrados e lembrados em rituais, somam-se essas referências além do carrossel de nomes dos vivos. No passado, as gerações mortas também contavam no acervo da memória, das relações que precisavam manter-se articuladas, constantemente evocadas. Logo, nosso cérebro evoluiu guardando um grande número de nomes, agregados ao lugar social e à origem de cada indivíduo, pois as sociedades anteriores à nossa davam à trama da vida social suma importância.

Talvez possamos lembrar aos pesquisadores, que “escanearam” o cérebro para essa investigação, que do ponto de vista evolutivo nossa mente pode ser anômala em relação ao que fez a aventura humana. Nesse sentido, nossas capacidades sociais pareceriam atrofiadas se comparadas às sociedades anteriores. Somos introspectivos e solitários, dependemos menos do olhar coletivo, no sentido presencial, do convívio de fato, enfim, do que era a aprovação da aldeia. Esperamos nosso reconhecimento de determinados indivíduos particularmente valorizados, com quem desejamos nos identificar, raramente de todo um grupo.

As redes sociais geralmente despertam um temor difuso em pais e educadores, eles ficam sem saber se aprovam ou não ver seus jovens consumir tanto tempo conectados a ela. Queria contribuir a essa questão colocando um ingrediente: talvez o motivo pelo qual os jovens possuam uma extensa rede social nas comunidades virtuais, seja menos uma novidade, e mais um retorno a uma forma antiga de funcionamento, para a qual nosso cérebro sempre foi apto. Claro, não da mesma forma, mas usando uma capacidade de se situar e sentir-se à vontade numa ampla rede de pessoas com diferentes pesos de significação. Isso se considerarmos do ponto de vista evolutivo. Já do ponto de vista histórico, poderíamos ver algo semelhante: as redes sociais simulam a aldeia, uma comunidade onde todos se conhecem e partilham informações.

O fato de vivermos numa sociedade individualista não quer dizer que não tenhamos saudades das antigas formas de convívio. Quem sabe as redes sociais nos apontem o esgotamento, a pobreza, ou uma insuficiência das formas contemporâneas de estarmos (ou não estarmos) uns com os outros. Seria uma crítica espontânea e ingênua ao individualismo. Enquanto julgamos mal os jovens pelas suposta superficialidade da conexão com seus amigos virtuais, deixamos de ver a profundidade da intenção de criar algo novo, algo vivo, em termos de laço social.

Talvez a minha geração deva deixar a arrogância de lado e perceber que pode aprender com o que os jovens apontam, e que até mesmo possa haver uma sabedoria que nos escapa na troca de nomes dos índios do Xingu. A rapidez dos diálogos e fragilidade da imagem mutante daqueles que se expõem uns aos outros, deixando-se influenciar pelos pares e figuras de referência, reflete indivíduos em processo de transformação, permeáveis aos desafios sociais. Poderíamos supor que nossos jovens hiperconectados estejam buscando caminhos para o resgate dessa herança social, uma retomada da vida em comunidade. Com sorte e muita prática, talvez possamos ver triunfar o exercício da solidariedade e da interlocução que o convívio propicia.

17/10/12 |
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3 Comentários
  1. Andréia permalink

    Sou educadora, “migrante digital, e, junto com alguns colegas, temos realizado alguns debates a fim de refletir sobre as redes sociais e o universo adolescente. Tenho lido algumas coisas, crônicas, pesquisas, e confesso que fiquei surpresa porque tu apresentas um panorama menos demoníaco do que o geral. Interessante a tua abordagem. Vou levar para o grupo.

    • Diana permalink

      gracias por partilhar, tento ser mais integrada que apocalíptica!

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