Os sem noção
Há os “sem noção”, os “meio sem noção”e os “sem senso de noção”.
Um amigo teve uma ideia que lhe parecia brilhante. Queria criar um curso para os “sem noção”. Afinal, segundo ele, o que mais campeia solto neste vasto mundo sem porteira é gente sem noção. E vamos combinar, ser sem noção atrapalha muitíssimo, a si e aos viventes em volta. A vida pessoal e a laboral podem virar tragédias por causa dessa incapacidade de perceber a verdadeira noção das coisas. Fortunas são dilapidadas, negócios vão pro brejo, famílias se separam, tudo pela falta de noção. Imagina, dizia ele, quanto economizaríamos se todos fizessem meu curso. – Se recuperássemos os sem noção para o bom senso, este mundo seria outro!
Meu amigo desistiu do curso. Mas não pelas dificuldades que eu antevia: afinal, como seria um curso desses? O que explicar e vivenciar para apreender o que seria a verdadeira noção das coisas? E o mais difícil: quem ensinaria? Percebem o desafio? Ele reconsiderou quando, após anunciar sua empreitada didática, apareceram muitos sem noção, mas não para matricular-se, e sim oferecendo-se para dar aula. Ele deu-se conta de que o sem noção não sabe nem admite que é sem noção, logo não procuraria o curso.
Na sua autocrítica, admite que ele mesmo era meio sem noção por não perceber isso antes. Mas, assegurou-me, aprendeu com essa experiência que existe uma grande diferença entre os “meio sem noção”, categoria em que se incluía, e os “sem noção”, gênero básico, que são a maioria. Porém existiria um terceiro caso, o mais alto grau nesse aspecto da inconsciência da noção, que seriam os “sem senso de noção”. Neste último caso, dos quais devemos perder a esperança, entram, entre outros, aqueles que se ofereceram para dar aula. Eles são mais do que sem noção, esses não sabem sequer que a noção existe.
Seu afã classificatório não parou por aqui, tinha tabelas sobre as correlações entre a noção e o barulho. O sábio seria quieto e, quanto mais sem noção, mais ruidoso, mais professor de todas as coisas, doutor em todos os assuntos. Esse especialista universal, que não recua a qualquer tema, também é reconhecido pelo local da docência: discursa em supermercado, elevador, portaria, reunião de família e mesa de bar. Além disso, reconheceu uma forte tendência a quanto mais tempo alguém dominar sonoramente o ambiente, menos as suas palavras fazerem sentido. O sem noção não conhece a dúvida, por isso abusa das palavras, chicoteia com a língua todos os temas, e é um missionário fervoroso das suas crenças. O sem noção é um profeta decaído, e o impulso pedagógico intempestivo e gratuito, sua marca.
Mas fiquei curioso sobre como ele me classificava. Começou bem a avaliação, elogio aqui, ali, mas a nota final baixou muito porque, segundo ele, escrevo umas coisas muito sem noção no jornal. Então tá.
Muito bom texto. Bastante espirituoso ao perceber algo que está diante de nosso nariz diariamente: a capacidade que alguns (ou será a maioria) têm de perderem a noção. Aliás, tenho usado teus textos em sala de aula. Rende boas discussões.