Zero Hora
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Mulheres assassinadas

Matar em nome do amor, uma epidemia.

Tem sempre o dia em que a casa cai. Elas perderam a esperança porque o perdão também cansa de perdoar. Uma sucessão de abusos, de surras causadas pelo ciúme delirante, finalmente encontrou um basta. Seus maridos e namorados ficam enfurecidos, não compreendem a rejeição. Quanto atrevimento! O que foi que mudou? Na lógica deles, vontade própria não existe nas mulheres, portanto a ruptura deve ser por causa de outro. Abstinentes da relação que lhes sustentava a virilidade, decidem lavar a honra ferida: elas não pertencerão a mais ninguém.

Léia, oito tiros; Eliene, marteladas; Caroline, degolada; Karla, 10 tiros; Bruna, grávida de 15 anos, facadas; Joyce, negou-se a ter relações sexuais com o marido bêbado, 16 facadas; Rosilene, 12 facadas; Elisângela, espancada até a morte; Tânia, esfaqueada, asfixiada e colocada na geladeira; Maria da Guia, pauladas; só para citar alguns dos muitos casos de outubro, recolhidos a esmo, espalhados por todo o Brasil.

Em todos eles os matadores eram ex-companheiros. É inevitável o choque com o montante de ódio expressado nesses assassinatos. Eles querem muito mais do que cessar aquela vida, precisam invadir, destruir-lhe o corpo. Não é nada rara a freqüência dos tiros no rosto, como forma de apagar aquele olhar que deixou de ser-lhes destinado.

O fim de um amor sempre causa desespero, sentimento de dissolução, perde-se parte de si. Há também a vergonha pública, pois amor e reputação têm seu destino enlaçados. Portanto, homens e mulheres deveriam equivaler-se nas manifestações de despeito, a dor é democrática. Não é o caso: elas se deprimem, podem praticar maldades, maledicência, partilhas litigiosas; já para muitos deles é uma questão de honra, de vida e morte.

Simone de Beauvoir lembrava que o prestígio social da guerra, território masculino, sempre foi maior que o do ato de dar a vida, atributo feminino. Assim, frente à impotência maior de ver-se privado daquela que se julgava possuir, decidir pela sua morte acaba sendo o exercício de um prática milenar.

Nos anos 80 usávamos a frase: “quem ama não mata”, lembrando que não é aceitável qualquer condescendência com os crimes passionais. Melhoramos um pouco na punição dos assassinos de mulheres, que já gozaram de maior prestígio, acredite. Porém, um dos graves obstáculos na prevenção dos assassinatos de mulheres é a resistência delas, assim como das pessoas ao seu redor, em levar a sério as ameaças que sofrem. Elas acreditam que faz parte do amor e conseguirão reverter a situação. Protegem o agressor como se fosse um filho travesso, são incrédulas frente à letalidade do seu homem. A mulher não tem intimidade com a morte enquanto argumento final, atribuem a eles a capacidade que elas têm de duelar com palavras.

Nossas leis são melhores na teoria do que a prática. O amor, em sua face possessiva e descontrolada, continua sendo um serial killer de mulheres. Isso é assim porque no fundo ainda se espera que a mulher se apegue à relação acima de tudo, que ela exerça seu poder através da entrega. São restos, ainda ativos, de um tempo em extinção. O segredo para a erradicação da violência está num trabalho com as potenciais vítimas: é preciso que elas acreditem que serão apoiadas, que maus tratos são inadmissíveis, que correm riscos desnecessários e não devem morrer. Nunca mais.

Machos X Poderosas

Anitta e a guerra dos sexos

Amor e sexo são intimidade e ternura, mas também confronto, duelo, perigo. Deles são aqueles momentos em que se pensa: “eu poderia morrer agora, não importa”, numa aventura radical, em que cada um dos parceiros precisa ultrapassar os limites do outro..

Bataille, em seus escritos sobre erotismo, diz que somos seres “descontínuos”, peculiares por sermos diferentes uns dos outros. Nessa especificidade reside tudo o que sabemos ser. Num movimento contrário a essa diferenciação, amar e desejar são a busca de uma “continuidade”: queremos ser um só em vez de dois.

A entrega amorosa, principalmente em sua versão aguda que é a paixão, viola as muralhas da fortaleza em que habitamos. É um estado de obsessão exigente, pede de ambos que a consciência de si e do mundo se apaguem. Por isso ela anda de mãos dadas com a fantasia de morte, já que significa que só haja vida para essa entrega, todo outro interesse será traição. É por isso que o erotismo brinca nas fronteiras do masoquismo e do incesto. Brinca, como se brinca com monstros: com excitação, cautela e muito medo. Que fique bem claro, isso é totalmente diferente de exercer e atuar qualquer tipo de ato abusivo. Brinca, porque ao amar ou desejar muito, lembramos da violência, na qual perdemos a soberania, ou da infância, em que se depende do outro para quase tudo. Trocando em miúdos, sexo é vertigem.

Para proteger-se desses riscos, homens e mulheres têm construído barreiras, diques, legislado e normatizado o sexo, os relacionamentos e as identidades de gênero. Os homens, que sem exceção começam a vida nos braços de uma mulher, a mãe, deram-se ao direito de por isso mesmo desprezar seu gênero por séculos. Infelizmente muitas mulheres os seguiram.

Nesse sentido, o machismo é a fortaleza construída pelo filho crescido, onde ele se tranquiliza falsamente de que jamais cairá novamente nos braços de outra “dominatrix”, fora a mamãe. Disfarçado de vingança, o machismo também está presente nas mulheres. Embora às avessas, elas não desmontam esse esquema. Mulheres “Poderosas”, como descritas pela jovem cantora Anitta, sucesso viral do momento, entram nesse jogo, mesmo que no outro lado do campo: “Vem, se deixa render
/ Vou como sereia naufragar você / Satisfaço o meu prazer/ Te provocar e deixar você querer / Agora eu vou me vingar: menina má”.

O jogo em questão é a guerra dos sexos: frente ao perigo de desaparecer um no outro, os amantes alardeiam a própria supremacia, como as cornetas e bravatas antes das batalhas. As mulheres querem defender-se com as mesmas armas deles, protagonizando um motim, a revolta dos objetos sexuais contra seus donos. Faz parte dessa guerra a recorrente violência contra mulheres e filhas, como nos abusos e nos incessantes crimes passionais que nunca faltam ao noticiário.

O desafio é aprender a amar sem defender-se nos clichês de gênero. Sem as regras defensivas do macho dominante e da fêmea submissa, ou mesmo da simples inversão desses papéis. É preciso muita coragem para enfrentar a entrega amorosa e sexual. Principalmente para fazê-lo desarmado.

Balão Mágico

O balão roxo fez sua aparição em um debate da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Cheio de gás, voava a meio metro do chão, a gana de subir domada pelo peso do cordão. Surgiu detrás do palco e fez uma entrada triunfal sob os holofotes, chamando a atenção do público. Satisfeito com o […]

O balão roxo fez sua aparição em um debate da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Cheio de gás, voava a meio metro do chão, a gana de subir domada pelo peso do cordão. Surgiu detrás do palco e fez uma entrada triunfal sob os holofotes, chamando a atenção do público. Satisfeito com o efeito perfilou-se, ladeando a primeira cadeira.

O lugar era do tradicional mediador de evento, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que gostou da surpresa. Espirituoso, primeiro olhou de lado, depois sorriu para o recém chegado e tocou-o como se fosse a cabeça de uma criança. Seguindo seu percurso exibicionista, o balão roxo postou-se na frente da jornalista Luciana Savaget, também apresentadora do evento, que o tomou nas mãos e lhe desenhou um rosto. Agora mais expressivo, ele foi encarando cada um dos palestrantes, causando graça até nos mais concentrados. Num grand finale, por conta própria, voltou para junto de Loyola, era seu lugar. Ficou ali parado, mudo mais saliente.

A jornada enfrentou seu primeiro ano sem o escritor Alcione Araújo, um dos seus mais tradicionais mediadores, morto faz um ano. Era naquele palco que, junto a seus colegas, ele imprimia uma condução que dava ritmo, tempero e coesão aos debates, numa parceria que durava desde 2001. Luciana cochichou ao ouvido de Loyola, que partilhou sua observação com o público: – “o balão é o Alcione”. A comoção, óbvio, foi geral. Estávamos frente a uma aparição, uma alusão lúdica, que naquele momento fazia o papel de fantasma.

Uma ausência só se torna compreensível quando ela contrasta com uma presença. Se há algo indigesto na morte é seu caráter definitivo: como assim, alguém passa a não estar em lugar algum? Como é que não há data prevista de reencontro, de volta? O nunca, o jamais, o para sempre carecem de registro, o pensamento colapsa. O buraco deixado pela morte é puro nada, mas através de pequenos encontros, detalhes, evocações do ser perdido, bordamos seus contornos, cerzimos uma cicatriz que, essa sim, jamais desaparece. O morto se eterniza nos que ficam. Encontrando restos deixados dentro de nós por aquela vida, andamos um tempo como bêbados, trôpegos de lembranças, enquanto a falta física ainda lateja. Para alguns, muitos desses achados são manifestações de um espírito que nos observa e pode se comunicar. Para mim são conjugações do luto, momentos em que a dor se materializa, fica visível. Fizemos do fortuito, como no caso do balão roxo, o solene embaixador da ausência de Alcione.

O luto só se encaminha para o território do suportável quando finalmente conseguirmos nos apropriar das memórias do ser perdido. O alívio só vem quando elas passam a ser nossas, tesouros internos, heranças resignadas à inexistência do seu protagonista. Porém, isso demora, arrasta suas correntes barulhentas pelos corredores da nossa mente. Enquanto o morto está ainda partindo em nós, fica pairando, à meia altura, encarando os envolvidos. Ele encarna nosso incômodo: queremos saber como é que a vida pode seguir, mesmo depois de se provar tão frágil.

Livro e circo

Escrever é vingar-se do desejo que nos coloniza.

A quem ocorreria montar um circo onde um povo se reunisse para falar de um ato íntimo, individual, tranquilo e reflexivo como a leitura? Pois há 32 anos pareceu plausível à professora Tânia Rösing organizar um grande evento de literatura, no interior do Rio Grande do Sul. Ela contou com o apoio de um grupo muito especial de malucos, dispostos a viajar até Passo Fundo em época de vestir poncho. Capitaneados por Josué Guimarães que comprou essa idéia aparentemente inviável, escritores importantes de todo o país se engajaram no projeto, que foi crescendo, crescendo, até ocupar uma lona de circo! Abaixo dela discute-se sobre livros, tendências literárias, mas principalmente escuta-se os escritores falando de suas obras e processos criativos.

Se escrevermos qualquer coisa que torne necessário perguntar o que se quis dizer ali, provavelmente está mal redigido. Um bom texto prescinde da tradução oral. As letras precisam mostrar plena autonomia, abandonar seu autor como filhos que crescem, como um animal ferido do qual se cuidou e é devolvido à natureza, precisam partir sem olhar para trás. Para que então escutar os escritores, se suas obras já dão conta do que havia para ser dito?

Certamente não é para esclarecer sobre o que ele realmente “quis dizer”. Talvez ele nem saiba. Provavelmente nem se importe com isso. A fantasia não obedece às intenções do autor, é ele que se submete a ela. Mas depois que a idéia surge, o trabalho da escrita é uma lapidação suada, em busca da forma. O escritor constrói sua própria voz, um jeito peculiar de contá-la inserindo sua marca, sua assinatura. É assim que ele tenta se vingar da fantasia que o colonizou anteriormente, o estilo vira o jogo.

Curiosamente é também assim que acontece com nossos desejos, essas vontades ou tendências que mandam na nossa vida. Uma idéia se impõe, por vezes de forma explícita, por outras de maneira subliminar. Pensamos estar fazendo escolhas, enquanto as escolhas estão nos fazendo. Sucessos, falências, desvios de rumo, a trama da nossa vida por vezes parece ter sido escrita por um autor secreto que nos submete aos seus caprichos, que move os fios daquilo que queremos ter e ser.

Do mesmo jeito que os escritores, tentamos um ato de rebeldia sobre esses sonhos que se realizam em nós: vamos suar para lhes imprimir nosso estilo, nossa voz. Escutar os escritores serve para descobrir como esses bruxos das letras lidam com suas histórias, das quais são igualmente autores e protagonistas. Aprendemos como eles as subjugam, como um flautista faz dançar uma serpente. Eles submetem as fantasias às suas palavras, lhes imprimem a cadência da pontuação, torcem, recortam, as assinam. Escutá-los é aprender a fazer da vida uma arte. Parece pouco? Pelo jeito tem sido o suficiente para levar milhares de pessoas ao mesmo evento. É o respeitável público da mui espetacular Jornada Nacional de Literatura, que se inicia na próxima terça-feira.

25/08/13 |
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Meu padrasto favorito

Por que dá tanto medo de ser pai?

Véspera de mais um, comercialmente exaltado, dia dos pais, estréia a sequência de “Meu Malvado Favorito”, filme de animação lançado em 2010. Trata-se da história de um vilão que encontra a redenção e o sentido da vida através da paternidade.

Como parte de um plano delirantemente maligno de sequestrar a lua em troca de resgate, Gru adota três meninas órfãs, que planeja usar para invadir a fortaleza de um vilão rival. Só que ele está mais para desprezível do que para mau, como sugere o título original: “Despicable me”. Na verdade é um tipo mal-humorado, um fracasso até mesmo entre os vilões. Somente um exército de Minions, pequenos e engraçados seres amarelos que trabalham para ele, o endeusa.

O convívio com as meninas o amolece e lhe faz viver experiências de felicidade inéditas. A menorzinha delas, pouco mais do que um bebê falante, é inocente a ponto de não ter medo dele e assim derrete o gelo do padrasto contrariado. Ele pretendia devolvê-las ao orfanato, o que obviamente não consegue fazer. O papel da pequena Agnes é similar ao de Boo, de “Monstros S.A.”, que transforma tipos assustadores em protetores dedicados. O mesmo vale para o bebê extraviado de “A era do Gelo”. Essas histórias são todas herdeiras da versão Disney de Mogli, de 1967, onde o garoto conta com a proteção paternal de dois animais machos e supostamente ferozes, uma pantera e um urso.

São tão recorrentes as histórias de pais vacilantes que precisamos perguntar-nos o que é tão assustador na experiência da paternidade, a ponto de que seja uma aventura chamar os homens ao papel. A resposta não é difícil: ser pai antigamente era simples e direto, hoje é tarefa de extrema complexidade e êxito duvidoso.

Em primeiro lugar, desapareceu a senhora do castelo montado em torno da figura do patriarca. A mãe está muito ocupada para intermediar a relação de pai e filhos. Ele que estabeleça um vínculo por conta própria. Quanto ao prestígio e poder do questionável chefe de família, bom, ele que o conquiste, se tiver cacife para tanto. Ela não o promoverá com nenhum tipo de submissão servil. Já os filhos, outrora súditos por excelência, hoje são um exército rebelde, anarquista, cujo respeito deverá ser obtido com muita lábia. Nenhum poder na família se estabelece sem uma ferrenha oposição. Deveríamos nos estranhar de que a ficção infantil relate o trabalho e a sedução necessários para convencer um homem a ser pai?

Em defesa da categoria dos pais, faço eco com o filme: aquele que aceitar o encargo tenderá a sentir-se muito menos desprezível aos próprios olhos. Antes de ajudar os filhos a crescer, será preciso aumentar a própria envergadura, necessária para prometer uma proteção na qual só se acredita sendo pai. Pouco podemos contra os tantos perigos e contratempos que ameaçam nossos filhos, mas faremos nosso melhor e com isso também nos tornamos maiores. Por isso, aqui vai minha homenagem a todos, pais, padrastos, padrinhos, homens e por vezes também mulheres que aceitam essa missão quase impossível.

A juventude não dormirá!

Seria mais fácil entender o que está acontecendo, se a inveja que os adultos têm dos jovens não atrapalhasse tanto.

Em 1964, num pequeno texto com esse título, escrito para a revista New Society, o psicanalista Winnicott tentava dialogar com aqueles que se horrorizavam diante de manifestações juvenis: “é dada publicidade a cada ato de baderna juvenil porque o público não quer ouvir ou ler a respeito dessas façanhas adolescentes que estão isentas de qualquer desvio anti-social. Além disso, quando acontece um milagre, como os Beatles, existem aqueles adultos que franzem o cenho quando podiam soltar um suspiro de alívio – quer dizer, se estivessem livres da inveja que sentem do adolescente desta fase”. Veja bem, ele retrata a obsessão do público por uma minoria de vândalos, cego à verdadeira relevância dos acontecimentos. O título refere a uma personagem de Shakespeare, que odiava a juventude e desejava que se dormisse dos dezesseis aos vinte e três anos.

É interessante a menção aos vovôs do Rock, justamente para lembrar de que o tempo passa e crescemos como civilização assimilando e aprendendo com o que parecia dissonante e impossível de catalogar. O que mais alarma aos intérpretes de plantão, nos quais me incluo, é a ignorância do rumo que as insatisfações expressadas vão tomar. Não se sabe do resultado das próximas eleições, nem como as cidades receberão a copa, e principalmente está para se descobrir como funcionam a política e a informação na era da internet. Como tampouco se sabia da comunicação após o telégrafo e o telefone, do rumo da música depois do Rock, do destino da família após a revolução dos costumes, das mulheres após a pílula, do livro após o computador. Os adultos de diferentes épocas são reincidentes no medo do desconhecido, lembram seus tempos de interrogações e temem não ter feito as melhores escolhas. Os jovens representam esse processo, estão fadados a atravessá-lo, e acabam suportando melhor o que não controlam.

Nesse, e noutros textos, Winnicott lembra que a juventude passa nos indivíduos, que ficam velhos como os Beatles, mas nas sociedades a expressão juvenil chegou para ficar. Ele a chamou elogiosamente de “imaturidade adolescente”, que seria a fonte das dúvidas que movem revoluções e permitem invenções. Tudo o que nos tornamos como civilização tem uma dívida com aqueles que enxergaram as coisas de modo diferente.

Mudam os atores, mas a peça da juventude segue em cartaz. A vantagem da visão de mundo adolescente, ou juvenil, é justamente sua relação com o tempo, a capacidade de reconhecer, com tristeza, mas sem pânico, que o futuro é incerto. Ser jovem é conviver com as próprias indefinições: duvidar sobre a quem e como amar, no que acreditar, como trabalhar, a quem admirar e o que se quer aprender. Ficar velho é satisfazer-se com o senso comum, é alardear o fim do mundo a cada vez que alguém faz um barulho que nosso cérebro não consegue decodificar. Encerro com Winnicott, pedindo que sejamos capazes de interpretar e conter nossa “indignação moral causada por ciúme da juventude”. Corrompendo Quintana: a meninada passará, a juventude passarinho.

Prostitutas felizes

Ninguém transa com um corpo vazio de fantasias, nem que queira.

Você acredita que prostituir-se pode fazer alguém feliz? Em uma campanha governamental visando combater a discriminação às profissionais do sexo, aparecia a foto de uma mulher com o texto “eu sou feliz sendo prostituta”. Frente à reação negativa, principalmente por parte da bancada religiosa, a campanha foi suspensa e o diretor do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis exonerado. De fato, a profissão mais antiga do mundo sempre foi um enigma e um judas a ser malhado.

Recomendo a leitura de um livro: “Pagando por sexo” (Ed. Martins Fontes, 2012), que está longe de ser um tratado erudito sobre o assunto. É uma novela gráfica, escrita e desenhada pelo quadrinista canadense Chester Brown. Explicitamente autobiográfica, a obra conta como, após levar um fora da namorada, o autor tornou-se avesso ao romantismo e decidido a não mais sofrer por amor. Para viabilizar isso, sua vida sexual resumiu-se à profissionais do sexo. Em defesa de sua escolha, duramente criticada pelos amigos, argumentava que “as pessoas que precisam de relacionamentos românticos são inseguras, elas precisam que alguém lhes diga que são dignas de amor”. Chester teria se libertado dessa necessidade. Ao longo do livro expõe sua posição de viver alheio ao amor, embora visivelmente dedique-se carinhosamente às prostitutas. Curioso, quis saber sobre cada uma delas, mas em sua peregrinação descobriu muito mais verdades sobre a própria sexualidade. Foi seu jeito.

Nos prostíbulos a clientela é diferente da horda de safados que se imagina. Entre o público das profissionais há muita gente como Chester, em busca de paz ou de respostas, todo tipo de confusos, fóbicos, tímidos, inseguros, enfim, neuróticos em geral. Para estes e para todos nós o interesse pela profissão transcende os detalhes pornográficos, disponíveis em qualquer filme barato. O enigma está no sexo sem amor. Mais do que posições e orgasmos, esperamos que o desejo sexual contenha a essência do amor. Ali haveria uma espécie de verdade da carne, das palavras desconfiamos, sabemos que podem mentir. Porém, quando sexo e amor se dissociam, o que ocorre com surpreendente facilidade, já não sabemos em que acreditar. Todas as formas de sexualidade que abalem os clichês românticos nos deixam desamparados.

Na verdade, cada um transa com a própria fantasia. Em vez da idealizada fusão dos corpos, na melhor das hipóteses ocorre o balé das fantasias. Sem elas não há sexo, ao mesmo tempo em que dá certo medo a idéia de tornar-se objeto da imaginação alheia. Na prostituição se supõe que estaria em jogo apenas a fantasia do pagante, o outro seria um corpo vazio de conteúdo. Mas quando é dito que alguém pode ser feliz nessa profissão, isso deixa de ser assim: que fantasias estariam realizando as prostitutas que dizem estar satisfeitas com seu trabalho? Então, a clientela, que contrata uma marionete para encenar suas pequenas taras (quem não as tem?), estaria à mercê de profissionais que podem também estar satisfazendo as delas? Isso é inadmissível! Queimem-se os cartazes.

Latindo para os pneus

Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, difícil é saber o que fazer quando um desejo se realiza!

Quem anda por estradas poeirentas do interior está acostumado com o assédio da cachorrada sobre carros e motos. Sozinhos ou em bandos, eles saem latindo atrás do veículo. Um inimigo que deve ser custodiado pelos batedores de quatro patas, em clima ameaçador, até sair do território deles. As rodas, por estar na altura dos vigias e movimentar-se visivelmente, polarizam a atenção e são alvo dos latidos.

Evocando esse cenário, uma amiga alcunhou uma frase que julga representar seu estilo de lidar com os próprios desejos: “sou como cachorro com pneu, quando o carro pára não sei o que fazer com ele”. É uma boa imagem, em vários sentidos.

Conseguir parar o veículo é sinal de poder por parte do animal guardião. É como se, “assustado”, o invasor tivesse ficado paralisado. As cobiçadas rodas ficam à disposição, poderiam ser mordidas. Porém, imóveis elas deixam de fazer sentido. É difícil morder uma roda, dura e grande para sua boca. Mal ou bem, o interesse pela roda era somente um mero representante do jogo de forças: o objetivo era uma disputa de território e prestígio. Claro, estamos aqui cometendo liberdades poéticas, metáforas caninas.

Tentamos ser menos bobos do que os cães, latir para as coisas certas, ser menos irracionais, não avaliar mal a ameaça e gastar energia à toa. Mas volta e meia nos parecemos a eles. Quando escolhemos um objeto de cobiça, pode ser algo ou alguém que queremos, agimos tão convencidos da tarefa como o exemplo acima. No momento de alcançar a graça pela qual tanto lutamos, em geral não sabemos o que fazer, ficamos olhando para nosso pneu, confusos.

Minha amiga tem razão, e está mais acompanhada do que pensa. Um amor conquistado parece muito menos atraente, emocionante ou interessante. As vezes não acreditamos e rejeitamos por antecipação aquele que julgamos vai se desiludir de nós. Uma posição de prestígio, atingida por méritos, pode ser mal utilizada ou mesmo recusada, porque imaginamos que aquele lugar idealizado só poderia ser ocupado por alguém melhor do que nós. Levante a mão aquele que não se julgar uma fraude. Algo adquirido com esforço parece menor do que no catálogo. Uma viagem muito planejada sempre tem aquele momento “o que estou fazendo aqui”. Enfim, é mais fácil lidar com o fracasso do que com o sucesso, pois, pelo jeito, a melhor parte é continuar querendo. A satisfação de um desejo nos obriga a renegociar nossos objetivos e auto-imagem. Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, podemos imaginar um mundo idealizado dos ricos e famosos, colocá-los no altar de nossos ideais e ficar cultuando, rezando lamúrias.

Como esses cachorros, na verdade esperamos que o pneu continue rodando para além da nossa jurisdição. Assim podemos seguir vivendo, embalados pelo que queríamos, o que seríamos, empanturrados de “se”. A maior tarefa, porém, consiste em descobrir o que fazer com o pneu. E em nome do que continuar correndo depois disso. Eis a verdadeira valentia.

@ Laerte

na arte e na vida, autor@ de imagens intrigantes, sou fã

Tenho várias tiras do Laerte Coutinho coladas numa parede em meu consultório, são como enigmas que seguem me interrogando. Mais do que um cartunista, ele escreve poesia e filosofia com imagens. Suas tiras são abismos de múltiplos significados nos quais me perco. Todas as recomendações são poucas para que o leitor conheça sua obra. Ele é certamente um dos artistas mais importantes do Brasil.

Quando já o admirava, ele passou a dedicar sua vida a um tema nada prosaico: a identidade sexual. Começou a vestir-se de mulher, frequentava o “Brazilian Crossdresser Club”, discretamente, sob o nome de Sônia. Aos poucos, o prazer de usar a indumentária do sexo oposto deixou a clandestinidade. A Revista Piauí de abril (n. 79) dedica-lhe várias páginas, numa reportagem na qual é tratado por vezes com pronomes femininos, por outras masculinos. Sua coragem desnuda a todos, quer usemos cuecas ou calcinhas. Na vida, como na arte, ele produz uma imagem intrigante.

A formação da identidade sexual é pura incerteza. Apesar disso, ao crescer cruzamos com duas perguntas: o queremos e o que seremos, ou seja, a quem desejamos e como nos pareceremos. Além da questão de gênero, o desejo aponta muitas variações, preferiremos velhos ou moços, miúdos ou graúdos, humildes ou opulentos, pessoas vistosas ou alguém cuja beleza brilha somente aos nossos olhos, e assim por diante. Porém, uma definição bifurca os tipos de objetos de desejo: do nosso sexo ou do oposto. Não falta quem lembre ingenuamente que a anatomia nos condena à complementaridade fecunda do macho e da fêmea. Quanto ao que nos parecemos, há roupas para deixar isso bem claro, convém que as usemos conforme o corpo com que chegamos ao mundo. Os militantes dessas certezas fecham a questão.

Os jovens contemporâneos a abrem e têm praticado a ambiguidade com uma liberdade inédita. A androginia das roupas e adereços, assim como a bissexualidade das escolhas amorosas, inquietam as gerações anteriores e as almas frágeis. Mas eles não fazem mais do que externar incertezas que todos guardamos no armário. Nunca seremos suficientemente convincentes como homens ou como mulheres aos nossos próprios olhos, da mesma forma, tampouco somos imunes à atração por pessoas de ambos os sexos. Forjamos em nós certezas, as gritamos para acalmar as dúvidas que nos sussurram aos ouvidos. Criamos mitos religiosos e até científicos para dizer que existe uma definição clara dessa fronteira.

Antigamente, quando queríamos dirigir uma mensagem a homens e mulheres dizíamos assim: “prezado (a)”, ou seja, se você for mulher, também será contemplada, em segunda opção. A luta feminista está tirando as mulheres desse segundo plano, hoje diríamos assim: “prezad@”. Com o fim da divisão dos mundos que acompanhava a separação dos sexos, a identidade sexual entrou em questão. Estamos banindo mais do que a opressão das mulheres, trata-se agora da derrocada dos clichês sobre as características definidas de cada gênero. Laerte, diz ser “uma mulher em caráter experimental”, eu te compreendo querida, eu também sou.

Você é um político

Política é a soma dos SEUS pequenos atos

Em catástrofes evitáveis, como o incêndio da boate que matou 241 jovens em Santa Maria, a punição dos culpados é uma necessidade para os enlutados. Julgamentos exemplares e de grande repercussão revelam uma eficiência da justiça que gostaríamos de ver mais frequentemente. Faço votos de que sejam efetivos, além da pirotecnia. Mas há uma questão polêmica relativa ao episódio: o indiciamento de pessoas ligadas à administração pública, as quais não foram responsáveis diretas pelos fatos.

Para minha surpresa, estes se declararam injustiçados, dizem ser objeto de perseguição política, sugerindo que sua responsabilização não passa de um lance no jogo partidário. Acredito que tais indiciamentos são corretos justamente por serem políticos, o que nos ajuda a lembrar o que é mesmo a aviltada política. Ela não é, ou não deveria ser, reduzida a um tabuleiro de jogo alheio à realidade. Os prefeitos assim como nossos demais representantes das várias câmaras, são eleitos para administrar nossa vida de acordo com um determinado plano de trabalho. É nisso que votamos. As barganhas eleitorais são uma perversão das nossas escolhas, conseqüência sintomática da nossa omissão.

O que acontece numa gestão onde os bombeiros não zelam pela segurança, onde os fiscais são no mínimo omissos e centenas de jovens morrem é política sim. Política é o exercício da procuração que passamos a um cidadão para cuidar de nós e do nosso patrimônio comum. Político não é um produto que adquirimos se a propaganda for boa. Compreendendo a vida pública como território privado dos políticos de carreira, agimos como se não fossemos também, todos nós, figuras públicas.

Pensava nisso, numa espécie de balanço moral, questionando qual é o maior valor que nos cabe seguir e legar: o concernimento, que, trocando em miúdos, é o envolvimento com o que transcende nosso umbigo. Sempre que possível, nos voltamos para dentro, alheios, alienígenas, alienados da conexão com o que nos revolta. Contamos com o alívio da indignação, esse barulhento instrumento da paralisia: “não me acuse de nada, não fiz nada, sou uma alma pura”. Igual a uma das máximas de Homer Simpson: “quando cheguei aqui já estava assim”.

Gostaríamos de gerar vencedores, criar filhos capazes de ser colocados no páreo da competição. Mas filhos, como políticos, não são um produto a ser bem colocado no mercado. Precisamos ajudar os mais jovens a entrar no mérito das conseqüência sociais de suas escolhas e atitudes, do contrário serão autômatos ególatras, como muitos políticos de carreira, predadores na sua relação com a realidade.

Convém lembrar e ensinar que cada gesto que fazemos, mesmo os mais banais, fazem diferença para todos. São pequenos atos, feitos por cidadãos políticos, profissionais ou não, desde a designação de um subordinado, até atitudes privadas de reciclagem, de responsabilidade social. O modo como vivemos não é um irrelevante grão de areia na praia, é parte de uma rede, de uma reação em cadeia. Talvez esse possa ser o maior valor moral contemporâneo a ser cultivado: a consciência de que somos responsáveis pelo todo, saber-nos coletivos, políticos. Cada um de nós recebe do próximo a procuração que responsabiliza pela gestão do destino comum. Honremos esse compromisso.