Uma nova sensibilidade se apresenta

Sobre especismo e o amor aos animais

Encontraram o Pinpoo. Terminou a novela do cãozinho desaparecido. Quem minimamente acompanha notícias, em qualquer meio, acompanhou o sofrimento do seu desaparecimento por relapso duma companhia aérea. Mas quem já tem certa idade nota que algo mudou por estas paragens. Anos atrás isso seria apenas um drama infantil, nenhum adulto gastaria seu tempo com cães sumidos, e jamais um fato desses ganharia manchetes. Estaríamos todos infantilizados? A nossa geração não cresceu? Difícil dizer, mas isso é mais um dos casos para demonstrar uma sensibilidade diferente em relação aos animais.

Os defensores e amantes dos animais estão ganhando visibilidade a cada dia. Porto Alegre é uma espectadora privilegiada desse processo, a campanha pelo fim das carroças (pensando nos cavalos), o estudante que se negou a aprender com vivisseção, recentemente o mini-zoológico da Redenção foi fechado para não estressar os animais e, como em outros lugares, por aqui existem muitos ativistas que pedem o fim de experiências com animais, e ainda os vegetarianos sempre denunciando a indústria da carne com seus inevitáveis maus tratos. Por outro lado, os animais amados, os domésticos, estão ainda mais amados, e sempre numa suspeita, para quem assiste a cena de fora, de um exagero na consideração que recebem. De qualquer forma, não é difícil perceber que uma nova sensibilidade para com a vida animal vem mostrando seu rosto. Embora essa tendência esteja em crescimento, os militantes da causa animal ainda são poucos, mas por sorte são bem barulhentos. Digo sorte porque nos põe a pensar, subvertem as certezas e isso sempre é bom.

Essa visão generosa para com os animais não é exatamente uma novidade, os Jainistas já defendem essas idéias há séculos. Essa antiga religião indiana, pelo menos desde 600 a.C., aparentada ao hinduísmo, mas que rejeita as castas e especialmente os sacrifícios, crê que toda forma de vida é sagrada (vegetais idem). Obviamente são vegetarianos, mas alimentam-se de frutos já caídos. Filtram a água para não beber algo vivo, usam um pano na boca para não engolir involuntariamente um inseto e, pela mesma razão, espanam previamente qualquer lugar onde sentam, para assegurar-se não destruir nenhuma pequena forma de vida.

Mas nem precisaríamos ir tão longe, a idéia dos nossos índios sobre a vida animal vira nossa lógica de ponta cabeça. Para eles no começo só existia a humanidade e por escolhas e descaminhos, os animais tomaram outro rumo, decaíram, mas eles seguem “humanos” de certa forma, são nossos parentes distantes. Enquanto no raciocínio ocidental nós viemos dos animais e evoluímos, para eles os animais vieram de nós. Por isso que os casamentos com animais nas mitologias indígenas não nos fazem sentido, mas para eles sim, pois seria outro povo, não outra espécie.

Essa tendência gerou um novo termo: “especismo”, para designar aqueles que tratam os animais como objetos. Especista seria quem se julga pertencer a uma espécie superior (no caso nós os humanos) e por isso se arvoraria o direito de dominar as outras espécies. Para seguir matando, criando animais para abate ou deleite (não esqueçam os caçadores, as touradas, as rinhas…), ou ainda usando-os como cobaias, não seria possível sem essa dita arrogância especista. Esse novo termo vem acompanhado de um raciocínio onde se diz que o especismo estaria, para nós e os animais, assim como o racismo está para as raças humanas (para quem acredita que elas existam, pois biologicamente elas não fazem sentido) e o sexismo para a dominação de gênero. Ou seja, eles buscam uma filiação que os vincularia ao lado, e de uma certa forma como um aprofundamento ético, dos que lutam contra o racismo e o sexismo.

Creio que esse paralelo é abusivo, pois não penso que exista simetria entre racismo e sexismo e o especismo. No racismo e no sexismo temos algo que é em princípio igual – o valor ou capacidade das ditas diversas raças para algumas aptidões, e o mesmo para o gênero – e que são tratados como diferentes por motivos de dominação. Ou seja, nesses casos criou-se uma ideologia da dominação que funda uma diferença onde ela na origem não existe. Já no caso do especismo, trata-se de algo distinto, (e até de certa forma ao avesso), ou seja, nós e os animais não somos iguais, e os militantes da causa animal acreditam que devemos assim tratá-los. Ou seja, na denúncia do especismo, temos a determinação de uma vontade, que quer que tratemos os diferentes na origem como iguais em direitos.

E a questão tem mais uma volta, o racismo e o sexismo estão em declínio não por boa vontade e entendimento mais profundo dessa questão, mas por um jogo de forças sociais, onde as mulheres e os prejudicados lutaram, sofreram e não poucos morreram para chegar onde estamos. Por outro lado, se conseguirmos uma igualdade de estatutos de direitos com os animais, nós vamos ter que lutar por eles, pois eles não têm uma causa, a menos que seguir vivo seja uma. Ou seja, seria o estabelecimento de uma igualdade “tutorada” pelos que acreditam que isso assim deva ser. É bom lembrar que não existe um direito natural, os direitos são duramente conquistados no eterno jogo de poder e não generosamente outorgados e reconhecidos.

É auto evidente que somos diferentes dos animais, o que sim podemos dizer é que nós e eles teríamos os mesmos direitos de seguir nossa vida sem nos atrapalharmos mutuamente. Penso que em relação aos animais deveríamos é ter deveres e não atribuir-lhes direitos. De qualquer forma, escuto as reivindicações desses defensores num outro tom, no qual uma frase de Kundera é especialmente preciosa: “A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar em toda sua pureza e em toda liberdade em relação àqueles que não tem nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, que se situa em um nível tão profundo que fica fora do alcance do nosso olhar) são suas relações com aqueles que estão a sua mercê: os animais. E é aí que se deu a maior derrota do homem, fracasso fundamental de onde todos outros derivam”. Aliás, essa é a posição de Bauman também, embora ele fique no âmbito dos homens, ele que diz que a sua maneira de medir a humanidade de uma civilização é como ela trata os menos favorecidos, os fracos e desvalidos. O espírito é o mesmo, você só seria moralmente elevado se não se aproveitar da impotência alheia.

Mas o que sempre me pergunto frente a esses movimentos, aos quais geralmente, mas com reservas, tenho simpatias, é se estamos diante de um avanço da sensibilidade humana ou um de retrocesso? Em outras palavras: isso seria uma forma mais ampla de um humanismo revigorado? Ou estaríamos, apesar das boas intenções, frente a um sintoma de desencanto com a humanidade? Ou seja, buscamos na natureza, mais especificamente nos animais, uma causa, um equilíbrio e um valor, porque as bandeiras de sempre andam desbotadas? É fato que as tradicionais causas já não empolgam tanto nem tantos, de fato existe um cansaço delas. Paira a idéia de que a humanidade é uma paixão fútil e existe uma desesperança no humano e nas suas instituições e as religiões idem. Onde então buscar uma nova causa que oriente a aspiração ética que trazemos? É isso que mobilizaria essa nova sensibilidade para com os animais?

Não acredito que vivemos um retorno ao modo romântico de amor à natureza, e seus velhos paradigmas, pensamento que atribui nosso desequilíbrio a um afastamento dela. O certo é que a distância nos permite idealizá-la. Uma das questões que é facilmente esquecida é que a natureza é um eterno entredevorar-se, os vivos alimentam-se dos mortos. Em todos os níveis. Para Joseph Campbell uma das nossas contradições, da qual não conseguimos uma síntese, é que as criaturas vivas sempre se alimentam de outro ser vivo. O mundo biológico é um eterno entredevorar-se. Nas suas palavras: “Pois bem, um dos grandes problemas da mitologia é conciliar a mente com essa pré-condição brutal de toda a vida, que sobrevive matando e comendo vidas. Você não consegue se ludibriar comendo apenas vegetais, tampouco, pois eles também são seres vivos. A essência da vida, pois, é esse comer-se a si mesma! A vida vive de vidas”. Ora, esse movimento é o recalque disso, da nossa condição animal e da brutalidade da selva que, queiramos ou não vivemos, não um retorno a ela. Eles querem é humanizar a natureza.

Talvez a melhor resposta seja a mais simples. De fato estamos todos infantilizados. Mas não de qualquer forma, isso decorre duma tentativa de simplificação do mundo, queremos um cosmo unívoco, um mundo básico, do certo e do errado, do bandido e do mocinho, e isso os humanos com sua labilidade e complexidade não podem nos dar. Creio que esse movimento usa sem saber a seguinte máxima de Mark Twain: “recolha um cão de rua, dê-lhe de comer e ele não morderá: eis a diferença fundamental entre o cão e o homem.” Nossos amigos sabem que correm o risco de ser mordidos se escolherem os humanos e se refugiam no amor fácil dos animais.

Os animais nos mergulham num mundo sem mal entendidos, cuidar e ser amado. Você dá e você recebe. Eles nos refrescam a memória dos cuidados maternos. Viemos ao mundo banhados no amor da mãe, ou ele existe ou não nos constituímos. Um amor que não pede nada (na verdade não é nada assim, mas é assim que gostamos de pensá-lo). Exercemos com os animais uma maternidade que parece estar no horizonte das conquistas possíveis. E pior, colocamos essa forma de amar e se relacionar como paradigmática das relações humanas. Enxergamos nos animais a fresta do nosso desamparo. Deletamos cognitivamento o fato que o homem morde a mão que o alimenta, que muitas vezes é ingrato. Reduzimos o mundo às vicissitudes desse amor unívoco. E como recompensa, passamos por boas almas, os malvados são os outros, nós amaríamos os mais fracos. Quando na verdade é certa fraqueza nossa que orienta as nossas escolhas para o mais fácil. Evitamos a humanidade e sua inevitável complexidade para desembocarmos numa miragem de natureza idealizada. Melhor para os pets, pior para nós.

Escrevo com os pés aquecidos no meu velho bulldog desenganado por tantos veterinários. Vive de teimoso. Minha filha longe pede que eu cuide para que ele não morra antes dela voltar, a menor não concilia o sono sem sua presença. Eu cuido dele por elas e por mim. Embora ele seja um pouco mentiroso, é um bom papo e sei que posso contar com ele para tudo.

26/03/11 |
(7)
7 Comentários
  1. Thais Vargas permalink

    Olá Mário, gostei muito do texto. Tu saberias de algum(s) livro(s) (ou qualquer tipo de bibliografia) que tratem desse tema (nossa relação com os demais animais, etc)?
    Obrigada!
    Thais

    • Diana permalink

      Oi Thais

      Infelizmente não conheço. Tirei minhas ideias daqui e dali, em textos sobre outros assuntos. O que eu encontro sobre o tema mostra-se pouco crítico, praticamente adesões amorosas a causa animal. Também estou a procura de algo mais isento e confiável sobre o tema.
      um abraço
      Mário Corso

      • Naor Nemmen permalink

        Brasileiros
        – A vida dos outros, Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri (ambos freis franciscanos, de Porto Alegre, Ed. Paulinas
        – Acertos abolicionistas: a vez dos animais, Sônia T. Felipe, Ed. Ecoânima
        – Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas, Sônia T. Felipe,Ed. da UFSC

        Estrangeiros
        – Procure na Wikipedia por Peter Singer, Tom Regan e Richard D. Ryder

    • Naor Nemmen permalink

      • A vida dos outros, Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri (ambos freis franciscanos, de Porto Alegre, Ed. Paulinas
      • Acertos abolicionistas: a vez dos animais, Sônia T. Felipe, Ed. Ecoânima
      • Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas, Sônia T. Felipe,Ed. da UFSC
      • Procure na Wikipedia por Peter Singer, Tom Regan e Richard D. Ryder

  2. Antônio Louzada permalink

    Prezado Mario!
    Reli hoje teu artigo sobre nosso amor aos animais. Te envio então uma poesia minha, feita em homenagem ao meu cachorro que morreu. Espero que gostes.

    MAGOO – um carinho pra ti.
     
    Olhos miúdos, orelhas altas, sempre alerta…
    Forte como um touro caseiro,
    Sempre à espera do meu olhar
    E de que eu pronuncie seu nome. Digo:
    MAGOO! Então leva um choque de energia!
    Está pronto para o cabo de guerra e também
    Para buscar infinitas vezes a bolinha…
    Olha a bola! Olha a bola Magôo!
    Parado, estático me mira…
    Um mínimo movimento meu
    E ele tem uma descarga!
    Olha a bola Magôo! Olha a bola!
    Atiro! Busca! Busca!
    Lá foi ele numa velocidade incrível!
    Não há obstáculos possíveis!
    A bola sou eu! Ele me busca!
    Não achar a bolinha é como me perder…
    Não achou? Seu olhar me pede desculpas…
    Seu olhar triste me pergunta: onde está?
    Achou? Ele volta garboso, viril, bonito,
    A cola levantada, orelhas em pé, ofegante!
    Quase diz: consegui! Venci!
    Ela é minha, tu és meu!
    Depois deita-se aos meus pés
    E orgulhoso mastiga a bolinha…
    Parece que nada no momento lhe pode ser maior…
    É nossa amizade, nosso amor que ele demonstra…
    Até somos um só, no tempo…
    Magoo! Deixa! Deixa!
    E daquela boca feroz de dar medo,
    Eu tiro a bolinha tranquilo…
    Magoo olha a bola! Olha a bola Magôo!
    E com alegria começamos tudo de novo…
    É como se não houvesse outro prazer,
    Outra pessoa, outro acontecimento
    No mundo todo!
    Eu fiz parte deste mundo!
    Nós dois criamos este mundo!
    Nossa amizade foi profunda!
     
    Hoje ele se foi… me deixou…
    Ele partiu desta vida…
    Morreu nos meus braços,
    Nos meus abraços…
    De olhos fechados ouvindo a minha voz,
    Apagou lentamente o meu vulcão…
    Foi respirando mais lento,
    Mais lento e lentamente parou…
    Deu ainda alguns suspiros
    Como se quisesse voltar…
    Se negava a ir embora, a me deixar…
    Mas meu amigo não tinha mais forças…
    Relaxou e se foi… Seu corpo morreu…
     
    Mas foi seu corpo que morreu!
    Sua alma brincalhona e feliz
    Continuou naquela sala, a meu lado!
    E continua morando na Barreto Viana 339.
    Eu ouço ainda, no meio da noite,
    Ele ajeitando as cobertas na sua casinha
    Bem ao lado da minha janela…
    Ouço seu latido alerta que vem lá do fundo do pátio…
    Quando abro a porta pra fora,
    Ele está ali guardando a casa e a todos nós…
    Uma palavra e seu rabo enlouquece!
    Gira, abana para cima e para os lados freneticamente!
    Quer brincar!!!
    Bato o pé no chão e ele rodopia
    Três ou quatro vezes no mesmo lugar!
    Pego o tapete e o provoco.
    Ele começa a latir!
    Então quando saio para o pátio ele me segue
    Pois continua sempre louco de fome…
    Magoo! Canil! Canil!
    E ele entra pacificamente…
    Vou embora e sinto que ele me observa…
    Olho para trás e ele me olha
    E parece que me chama de volta.
    Vai então dormir esperando nosso encontro
    De amanhã. Quando tudo recomeça…
    Foi seu corpo que morreu…
    Ele ainda está lá! Ele ainda está lá!
     
    Então quero olhar para o pátio que era dele,
    Com lembranças, com amizade e respeito.
    Jamais poderei pagar a proteção que me deu,
    A força do olhar de amigo e o orgulho que senti
    Por ele ter sido o meu cachorro!
     
    Me dói a perda profundamente!…
    Me dói as vezes que não fui cumprimentá-lo no pátio!…
    As bolinhas que podia ter jogado…
    Os passeios que não dei…
    Sua ausência dói…
    Desculpa amigo Magôo!
    Infinitas desculpas…
    Eu achava que tu eras eterno…
    Eu achava que tu nunca irias morrer…
     
    Um abraço e obrigado por tua sensibilidade!
    Antonio

  3. Marly Maravalhas Gomes permalink

    Seus textos são ultimamente para mim um consolo estando eu tão envolvida com a causa animal e com minha vinda para residir no sulll por causa de dois cães que herdei de minha falecida mãe! hoje estou imersa na proteção animal e isso tem me tomado muita dedicação e também tempo! leio sempre que posso e penso de reproduzir seus textos relativos a questão dos animais se possível for!

    • Diana permalink

      sem problemas Marly, se os textos forem úteis ao teu trabalho, é só colocar o link! é um prazer colaborar!
      abraços
      Diana

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.