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Livro e circo

Escrever é vingar-se do desejo que nos coloniza.

A quem ocorreria montar um circo onde um povo se reunisse para falar de um ato íntimo, individual, tranquilo e reflexivo como a leitura? Pois há 32 anos pareceu plausível à professora Tânia Rösing organizar um grande evento de literatura, no interior do Rio Grande do Sul. Ela contou com o apoio de um grupo muito especial de malucos, dispostos a viajar até Passo Fundo em época de vestir poncho. Capitaneados por Josué Guimarães que comprou essa idéia aparentemente inviável, escritores importantes de todo o país se engajaram no projeto, que foi crescendo, crescendo, até ocupar uma lona de circo! Abaixo dela discute-se sobre livros, tendências literárias, mas principalmente escuta-se os escritores falando de suas obras e processos criativos.

Se escrevermos qualquer coisa que torne necessário perguntar o que se quis dizer ali, provavelmente está mal redigido. Um bom texto prescinde da tradução oral. As letras precisam mostrar plena autonomia, abandonar seu autor como filhos que crescem, como um animal ferido do qual se cuidou e é devolvido à natureza, precisam partir sem olhar para trás. Para que então escutar os escritores, se suas obras já dão conta do que havia para ser dito?

Certamente não é para esclarecer sobre o que ele realmente “quis dizer”. Talvez ele nem saiba. Provavelmente nem se importe com isso. A fantasia não obedece às intenções do autor, é ele que se submete a ela. Mas depois que a idéia surge, o trabalho da escrita é uma lapidação suada, em busca da forma. O escritor constrói sua própria voz, um jeito peculiar de contá-la inserindo sua marca, sua assinatura. É assim que ele tenta se vingar da fantasia que o colonizou anteriormente, o estilo vira o jogo.

Curiosamente é também assim que acontece com nossos desejos, essas vontades ou tendências que mandam na nossa vida. Uma idéia se impõe, por vezes de forma explícita, por outras de maneira subliminar. Pensamos estar fazendo escolhas, enquanto as escolhas estão nos fazendo. Sucessos, falências, desvios de rumo, a trama da nossa vida por vezes parece ter sido escrita por um autor secreto que nos submete aos seus caprichos, que move os fios daquilo que queremos ter e ser.

Do mesmo jeito que os escritores, tentamos um ato de rebeldia sobre esses sonhos que se realizam em nós: vamos suar para lhes imprimir nosso estilo, nossa voz. Escutar os escritores serve para descobrir como esses bruxos das letras lidam com suas histórias, das quais são igualmente autores e protagonistas. Aprendemos como eles as subjugam, como um flautista faz dançar uma serpente. Eles submetem as fantasias às suas palavras, lhes imprimem a cadência da pontuação, torcem, recortam, as assinam. Escutá-los é aprender a fazer da vida uma arte. Parece pouco? Pelo jeito tem sido o suficiente para levar milhares de pessoas ao mesmo evento. É o respeitável público da mui espetacular Jornada Nacional de Literatura, que se inicia na próxima terça-feira.

25/08/13 |
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Meu padrasto favorito

Por que dá tanto medo de ser pai?

Véspera de mais um, comercialmente exaltado, dia dos pais, estréia a sequência de “Meu Malvado Favorito”, filme de animação lançado em 2010. Trata-se da história de um vilão que encontra a redenção e o sentido da vida através da paternidade.

Como parte de um plano delirantemente maligno de sequestrar a lua em troca de resgate, Gru adota três meninas órfãs, que planeja usar para invadir a fortaleza de um vilão rival. Só que ele está mais para desprezível do que para mau, como sugere o título original: “Despicable me”. Na verdade é um tipo mal-humorado, um fracasso até mesmo entre os vilões. Somente um exército de Minions, pequenos e engraçados seres amarelos que trabalham para ele, o endeusa.

O convívio com as meninas o amolece e lhe faz viver experiências de felicidade inéditas. A menorzinha delas, pouco mais do que um bebê falante, é inocente a ponto de não ter medo dele e assim derrete o gelo do padrasto contrariado. Ele pretendia devolvê-las ao orfanato, o que obviamente não consegue fazer. O papel da pequena Agnes é similar ao de Boo, de “Monstros S.A.”, que transforma tipos assustadores em protetores dedicados. O mesmo vale para o bebê extraviado de “A era do Gelo”. Essas histórias são todas herdeiras da versão Disney de Mogli, de 1967, onde o garoto conta com a proteção paternal de dois animais machos e supostamente ferozes, uma pantera e um urso.

São tão recorrentes as histórias de pais vacilantes que precisamos perguntar-nos o que é tão assustador na experiência da paternidade, a ponto de que seja uma aventura chamar os homens ao papel. A resposta não é difícil: ser pai antigamente era simples e direto, hoje é tarefa de extrema complexidade e êxito duvidoso.

Em primeiro lugar, desapareceu a senhora do castelo montado em torno da figura do patriarca. A mãe está muito ocupada para intermediar a relação de pai e filhos. Ele que estabeleça um vínculo por conta própria. Quanto ao prestígio e poder do questionável chefe de família, bom, ele que o conquiste, se tiver cacife para tanto. Ela não o promoverá com nenhum tipo de submissão servil. Já os filhos, outrora súditos por excelência, hoje são um exército rebelde, anarquista, cujo respeito deverá ser obtido com muita lábia. Nenhum poder na família se estabelece sem uma ferrenha oposição. Deveríamos nos estranhar de que a ficção infantil relate o trabalho e a sedução necessários para convencer um homem a ser pai?

Em defesa da categoria dos pais, faço eco com o filme: aquele que aceitar o encargo tenderá a sentir-se muito menos desprezível aos próprios olhos. Antes de ajudar os filhos a crescer, será preciso aumentar a própria envergadura, necessária para prometer uma proteção na qual só se acredita sendo pai. Pouco podemos contra os tantos perigos e contratempos que ameaçam nossos filhos, mas faremos nosso melhor e com isso também nos tornamos maiores. Por isso, aqui vai minha homenagem a todos, pais, padrastos, padrinhos, homens e por vezes também mulheres que aceitam essa missão quase impossível.

o precipício de cada um

A vertigem é o medo de pular.

Subi na montanha e nenhum deus falou comigo, não tive a sorte de Moisés e Maomé. Mas sem dúvida encontrei algo grande: o pânico. A paisagem altíssima era de tirar o fôlego. Para os outros turistas do meu grupo aquele era um momento de deleite, para mim uma cilada. No topo, enquanto os outros tiravam fotos e procuravam novos ângulos para contemplar a maravilha, fiquei encostada na parede de pedra, sem olhar para baixo, refém das golfadas de medo. O precipício me sussurrava ameaças de morte. Sem opção, tive que descer com a ajuda paciente de companheiros de caminhada. Desci sentada, vexada, prometendo nunca mais ignorar essa covardia.

O medo de cair afeta alguns e é irrelevante em outros. Muitos têm a tranquilidade de deixar os olhos passearem além do parapeito, da beira. Parece óbvio, qualquer um teria direito a esse prazer. Afinal, se você estiver apenas olhando e não mexer nenhum músculo obviamente não cairá. Meus sentidos negam-se a essa conclusão lógica.

Pelo menos os sonhos são democráticos: todo mundo alguma noite despencou no vazio, numa visita onírica ao pesadelo da vertigem. Por sorte, o despertar sempre ocorre no limite do encontro fatídico com o chão, mas acordamos suados, coração acelerado, os olhos em busca de âncora. A escuridão do quarto é macia quando emergimos de um pesadelo. Esse tipo de sonho ocorre porque a angústia, sentimento universal, se parece muito com a vertigem.

Para o angustiado não há nada nem ninguém que garanta sua segurança, muito menos ele próprio. Mesmo que pontuais, as crises de pânico, que são como grandes ondas de angústia, aparecem alguma vez na vida de todo mundo. Elas são experiências de desamparo, nas quais fica-se indefeso como um recém nascido. Tudo se apaga, ficamos à mercê de um perigo difuso mas intenso, reféns do próprio corpo. Só sabemos do medo de que o coração pare ou dispare, da pele sensível que crispa-se a qualquer toque. Cabelos eriçados, olhos cegos, ficamos tontos, nauseados, imobilizados, presas fáceis da morte. Nesse momento, o corpo é “ele” e o pensamento é “eu”, não somos a mesma coisa.

Nas alturas, em pânico não vejo a paisagem, o vazio parece ditar ordens ao meu corpo. E chama, pede que me entregue, balance, afrouxe as mãos que me prendem à rocha, coloque o pé num lugar errado. O perigo que ameaça os medrosos de altura é interior, não é terremoto nem deslizamento de terra. É o medo de ir ao encontro da morte movidos por uma força maior que não dominamos.

Invejo a sorte dos senhores do seu equilíbrio, a quem a vertigem não lembra quão sutil é elo o que nos liga à vida. Mas me consola acreditar que o medo de deixar-se cair é apenas uma das formas pelas quais a morte se insinua a cada um. A fragilidade é universal, cada um tem a sua. Você não?

Kryptonita

O passado sempre continua nos apedrejando

Tive todas as oportunidades de emburrecer com a babá eletrônica. Fui uma criança apaixonada pela telinha pequena e imprecisa, em preto e branco. Ansiava muito pela hora da tevê começar e me sentia miserável ao término da programação. Dessas extensas jornadas televisivas restam muitas memórias, mas uma evocação é insistente: a Kryptonita, proveniente dos desenhos animados do Superman.

Trata-se de uma arma que era usada contra seus super-poderes pelos inimigos, a única que o colocava fora de jogo. Aproximar dele um fragmento dessa pedra, um mineral verde luminoso, deixava-o fraco, indefeso. O mais enigmático é que a Kryptonita era uma das raras coisas provenientes do planeta natal do herói, Krypton. Do mesmo lugar de onde se originaram os poderes veio o calcanhar de Aquiles. O fragmento de ficção, e da pedra, sobreviveu na memória por portar uma verdade e um alerta: há um lugar, nossa origem, que determina o que somos, mas é também de onde nossa derrota pode se insinuar.

Não posso omitir a cilada do meu inconsciente: meus dois sobrenomes, tanto materno como paterno, contém a palavra “stein” (pedra, em alemão), ou seja, meu passado é uma “pedreira”. Mas não só o meu, também o seu, o de todos. A infância, quando os outros são grandes e nós pequenos, é lugar de proteção, mas também de submissão, passividade, medos. O mundo dos pequenos é uma massa escura que não enfrentamos sem uma mão para segurar. Não é fácil lembrar disso. Tornamo-nos fortes e grandes graças ao exílio desse planeta natal da fragilidade. Só ficamos “super” porque crescemos.

Ao voltar à casa dos pais, mesmo velhinhos, sentimos a sinistra sensação de que lá o tempo congelou. Perdemos os bons modos, catamos no prato, distraímo-nos ao som da voz da mãe, testamos a força do pai, ficamos irritadiços, por vezes irreconhecíveis. Os lugares do passado são magnéticos, atraem à superfície fragmentos, cacos sobreviventes de outras eras. Atravessar a porta familiar dessa casa é como a queda de Alice no assustador País das Maravilhas. Não é porta, é portal, do outro lado esperam memórias que nos tomam de assalto. Assombrados pelos nossos outros “eus” do passado, descobrimo-nos, como Alice, viajantes surpresos num país de pesadelos, dentro de um corpo que encolhe, espicha e nunca nos abriga direito.

Faz toda a diferença como encaramos e como nos contamos as experiências que vivemos, a mesma história pode ser enquadrada por diversas lentes. Diferentes visões produzem novos efeitos. Mas nem tudo pode ser posteriormente resgatado, sempre há restos, alguma pedrinha nociva que incomoda ou obstrui. O passado é esse planeta natal, fonte de nossa força e vulnerabilidade.

A juventude não dormirá!

Seria mais fácil entender o que está acontecendo, se a inveja que os adultos têm dos jovens não atrapalhasse tanto.

Em 1964, num pequeno texto com esse título, escrito para a revista New Society, o psicanalista Winnicott tentava dialogar com aqueles que se horrorizavam diante de manifestações juvenis: “é dada publicidade a cada ato de baderna juvenil porque o público não quer ouvir ou ler a respeito dessas façanhas adolescentes que estão isentas de qualquer desvio anti-social. Além disso, quando acontece um milagre, como os Beatles, existem aqueles adultos que franzem o cenho quando podiam soltar um suspiro de alívio – quer dizer, se estivessem livres da inveja que sentem do adolescente desta fase”. Veja bem, ele retrata a obsessão do público por uma minoria de vândalos, cego à verdadeira relevância dos acontecimentos. O título refere a uma personagem de Shakespeare, que odiava a juventude e desejava que se dormisse dos dezesseis aos vinte e três anos.

É interessante a menção aos vovôs do Rock, justamente para lembrar de que o tempo passa e crescemos como civilização assimilando e aprendendo com o que parecia dissonante e impossível de catalogar. O que mais alarma aos intérpretes de plantão, nos quais me incluo, é a ignorância do rumo que as insatisfações expressadas vão tomar. Não se sabe do resultado das próximas eleições, nem como as cidades receberão a copa, e principalmente está para se descobrir como funcionam a política e a informação na era da internet. Como tampouco se sabia da comunicação após o telégrafo e o telefone, do rumo da música depois do Rock, do destino da família após a revolução dos costumes, das mulheres após a pílula, do livro após o computador. Os adultos de diferentes épocas são reincidentes no medo do desconhecido, lembram seus tempos de interrogações e temem não ter feito as melhores escolhas. Os jovens representam esse processo, estão fadados a atravessá-lo, e acabam suportando melhor o que não controlam.

Nesse, e noutros textos, Winnicott lembra que a juventude passa nos indivíduos, que ficam velhos como os Beatles, mas nas sociedades a expressão juvenil chegou para ficar. Ele a chamou elogiosamente de “imaturidade adolescente”, que seria a fonte das dúvidas que movem revoluções e permitem invenções. Tudo o que nos tornamos como civilização tem uma dívida com aqueles que enxergaram as coisas de modo diferente.

Mudam os atores, mas a peça da juventude segue em cartaz. A vantagem da visão de mundo adolescente, ou juvenil, é justamente sua relação com o tempo, a capacidade de reconhecer, com tristeza, mas sem pânico, que o futuro é incerto. Ser jovem é conviver com as próprias indefinições: duvidar sobre a quem e como amar, no que acreditar, como trabalhar, a quem admirar e o que se quer aprender. Ficar velho é satisfazer-se com o senso comum, é alardear o fim do mundo a cada vez que alguém faz um barulho que nosso cérebro não consegue decodificar. Encerro com Winnicott, pedindo que sejamos capazes de interpretar e conter nossa “indignação moral causada por ciúme da juventude”. Corrompendo Quintana: a meninada passará, a juventude passarinho.

Prostitutas felizes

Ninguém transa com um corpo vazio de fantasias, nem que queira.

Você acredita que prostituir-se pode fazer alguém feliz? Em uma campanha governamental visando combater a discriminação às profissionais do sexo, aparecia a foto de uma mulher com o texto “eu sou feliz sendo prostituta”. Frente à reação negativa, principalmente por parte da bancada religiosa, a campanha foi suspensa e o diretor do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis exonerado. De fato, a profissão mais antiga do mundo sempre foi um enigma e um judas a ser malhado.

Recomendo a leitura de um livro: “Pagando por sexo” (Ed. Martins Fontes, 2012), que está longe de ser um tratado erudito sobre o assunto. É uma novela gráfica, escrita e desenhada pelo quadrinista canadense Chester Brown. Explicitamente autobiográfica, a obra conta como, após levar um fora da namorada, o autor tornou-se avesso ao romantismo e decidido a não mais sofrer por amor. Para viabilizar isso, sua vida sexual resumiu-se à profissionais do sexo. Em defesa de sua escolha, duramente criticada pelos amigos, argumentava que “as pessoas que precisam de relacionamentos românticos são inseguras, elas precisam que alguém lhes diga que são dignas de amor”. Chester teria se libertado dessa necessidade. Ao longo do livro expõe sua posição de viver alheio ao amor, embora visivelmente dedique-se carinhosamente às prostitutas. Curioso, quis saber sobre cada uma delas, mas em sua peregrinação descobriu muito mais verdades sobre a própria sexualidade. Foi seu jeito.

Nos prostíbulos a clientela é diferente da horda de safados que se imagina. Entre o público das profissionais há muita gente como Chester, em busca de paz ou de respostas, todo tipo de confusos, fóbicos, tímidos, inseguros, enfim, neuróticos em geral. Para estes e para todos nós o interesse pela profissão transcende os detalhes pornográficos, disponíveis em qualquer filme barato. O enigma está no sexo sem amor. Mais do que posições e orgasmos, esperamos que o desejo sexual contenha a essência do amor. Ali haveria uma espécie de verdade da carne, das palavras desconfiamos, sabemos que podem mentir. Porém, quando sexo e amor se dissociam, o que ocorre com surpreendente facilidade, já não sabemos em que acreditar. Todas as formas de sexualidade que abalem os clichês românticos nos deixam desamparados.

Na verdade, cada um transa com a própria fantasia. Em vez da idealizada fusão dos corpos, na melhor das hipóteses ocorre o balé das fantasias. Sem elas não há sexo, ao mesmo tempo em que dá certo medo a idéia de tornar-se objeto da imaginação alheia. Na prostituição se supõe que estaria em jogo apenas a fantasia do pagante, o outro seria um corpo vazio de conteúdo. Mas quando é dito que alguém pode ser feliz nessa profissão, isso deixa de ser assim: que fantasias estariam realizando as prostitutas que dizem estar satisfeitas com seu trabalho? Então, a clientela, que contrata uma marionete para encenar suas pequenas taras (quem não as tem?), estaria à mercê de profissionais que podem também estar satisfazendo as delas? Isso é inadmissível! Queimem-se os cartazes.

Uma por todas: Stella a detetive de “The Fall”

Para os viúvos e viúvas de Lisbeth Salander, o seriado “The fall” é um consolo.

Lisbeth Salander foi uma heroína ímpar, ela apareceu na trilogia Milenium e encontrou a consagração longe dos olhos do seu criador. O sueco Stieg Larsson morreu sem ver a carreira de sua criatura e, principalmente sem poder nos brindar com a continuação de suas aventuras. Ela era muito jovem, tão absurdamente inteligente quanto emocionalmente inibida, bissexual, de aparência adrógina, forte e ágil como uma ninja. Seus inimigos estavam todos na lista dos lobos maus: machistas, fascistas, perversos egressos da corja das ditaduras, representantes principalmente do despotismo patriarcal. A todos que não a conhecerem ainda só posso invejar, pois já li todos os livros e assisti a todas as versões cinematográficas.

Para meu consolo, uma nova detetive surgiu. A estréia do seriado britânico The Fall (que pode ser assistido no Netflix, veja o trailler em http://www.youtube.com/watch?v=tP5Tl04gv3g ), nos brinda com a interessantíssima personagem da detetive Stella Gibson. Nesta primeira temporada ela chega a Belfast para caçar um assassino de mulheres. Desde o começo da narrativa, ao contrário de Stella, nós sabemos quem ele é, como escolhe suas vítimas e quais suas técnicas, portanto, não se trata de mistério, mas sim de um duelo entre eles.

O criminoso é um jovem e bonito pai de uma família margarina. Além de uma esposa interessante, enfermeira de UTI pediátrica, duas crianças lindas, ele tem uma profissão bacana, da qual nunca ouvimos falar aqui: é “conselheiro de luto”, seu trabalho como funcionário público é acompanhar as pessoas que estão sofrendo as conseqüências de uma perda. Como se vê, gente boa. Nos intervalos, estrangula mulheres com requintes de sadismo.

Stella é linda, é uma loira parecida com Merryl Streep quando mais jovem (Gillian Anderson), veste-se formalmente mas transpira sensualidade. Sua presença faz um contraponto com a tradicional Irlanda, pois ela é solteira convicta, não parece nem um pouco inclinada à maternidade e visivelmente gosta de sexo, do qual não se priva sempre que alguém lhe interessar. É uma figura forte, como já vimos em outras detetives televisivas, mas ao contrário da maioria delas, inclusive Lisbeth, não parece afetada por traumas pessoais que configurem algum tipo de motor de vingança. De seu passado sabemos pouco mas algo muito significativo: a primeira (de várias) formações universitárias foi em antropologia. O que significa uma mulher antropóloga como heroína?

Acima de tudo, temos uma mulher marcada pelo relativismo cultural. Ela sabe que as prerrogativas de seu gênero respondem a um lugar e tempo, podem e são diferentes em outros contextos. Ela, portanto, escolherá seu jeito de ser feminina. Talvez o visual tatuado e ambíguo de Salander seja muito mais contemporâneo do que a loira de olhos azuis e terninho, mas Stella nos garante que se ela quis aparecer assim é porque lhe convinha, faria qualquer coisa diferente que lhe ocorresse, conforme o caso. O nome do seriado “A Queda”, poderia ser uma alusão à buscada derrocada do homem mau que ainda resta e se esconde atrás da renovada imagem do contemporâneos e democráticos pai e marido que estão surgindo. O lobo na pele de cordeiro agora divide a troca de fraldas com a companheira, mas odeia as mulheres, as teme, precisa mostrar-se superior. É como senhores da morte que os homens consagraram sua supremacia ao longo de milênios, nas guerras que os fizeram heróis, principalmente frente uns aos outros. Neste momento, pelo jeito, há uma guerra dos sexos em curso e nesse embate temos Lisbeth e Stella como heroínas na ficção.

Só lamento que a segunda temporada só começará a ser filmada em 2014. Até lá, quem poderá nos defender?

Afeto embrulhado

Quando os presentes expressam afeto, as aparências não enganam.

O convidado chega a um aniversário infantil. O aniversariante recebe desconfiado o volume colorido, ainda é pequeno e não entende direito o que está acontecendo. Com exclamações, a mãe tenta atrair o interesse dele para o brinquedo que mora dentro do embrulho. Uma vez focado no presente, o pequeno fica hipnotizado pelo papel, ou mesmo pela caixa, deixando o objeto mais importante de lado. A mãe se desculpa, constrangida.

Cena dois: esquecer aniversário de namoro ou casamento é crime capital, mas ele lembrou e comprou um presente! Desta vez foi ousado, arriscou uma roupa. Eis uma opção exigente, é preciso conhecer o mapa do corpo da amada como um cego lê braile para acertar. É um gesto de amor indiscutível. Ela abre, prova, ficou perfeito.

Mas não havia cartão, nem um bilhete. Indignada, ela entristece por não ser merecedora de uma linha sequer. Será que ele não é capaz de um singelo “para minha amada”? Como a criança, ela também se fixou na embalagem. Cegada por seus argumentos, não notou que o objeto em si era uma declaração de amor.

Cena número três: buscamos presentear um amigo com referências culturais diferentes, de outra geração, ou estrangeiro a nossos costumes. Queremos muito agradar, dar algo relevante, nosso investimento amoroso ou financeiro deve ser visível. No começo das buscas já percebemos a dificuldade, pois muitos objetos possuem um valor perceptível somente aos iniciados. A significação do objeto para nossas referências culturais, a etiqueta, o pacote da loja também revelam a importância da oferenda. Para alguém estranho a esses códigos, deve ser o objeto em si o mensageiro do gesto, mas fica mais difícil. No fundo, o bebê da primeira cena não está errado, o atrativo da oferenda começa, e muitas vezes fica aí, na embalagem.

Representados por inúmeros objetos que possuímos e vestimos, somos o que temos, mas também o que recebermos e o que conseguirmos oferecer aos outros. Até quando nos auto-presenteamos, a mensagem é “eu mereço”. Por vezes trata-se de recompensa mensurável, outra de um consolo ou até de revanche. Já comprei um par de botas caríssimo porque fiquei com raiva duma desfeita recebida. É a famosa “sapatoterapia” feminina. Para os homens fica mais caro, pois costumam praticar a “carroterapia”.

Nosso sistema de trocas, quer seja de presentes, olhares ou palavras, é uma forma de construção de identidade. Até ao olhar-nos no espelho interrogamos o que os outros vêm em nós, quanto valemos aos seus olhos. Nesse transito de amores e valores, todo objeto é, primordialmente, uma mensagem.

Às vezes o encontro se dá e nos fazemos entender, afinal através dos objetos também se dialoga. Para tanto, presenteado e presenteador têm que estar dispostos a escutar o sentido do gesto, devem calar a voz interior que assopra insatisfações, ressentimentos e auto-críticas. Quando isso se torna possível, nos alegramos quando o bebê celebra o envoltório vistoso, contente de estar recebendo um presente. A mãe não precisa ficar envergonhada, também sabemos brincar de fazer uma bola com o papel colorido, rasgar é um prazer, revelar o conteúdo da embalagem um desafio. Bebês brincam de esconde esconde com tudo, inclusive com presentes. Quanto à amada, livre da premissa da mágoa, consegue perceber na roupa entregue sem palavras o toque do desejo que a recobre.

Presentear é adivinhar o outro, dar provas de que o escutamos tanto quanto ele nos acolhe. Presente maravilhoso é aquele em que alguém revela saber-nos bem. É tranqüilizador quando os outros, de fora, acham que somos parecidos com o que pensávamos ser. Quando erram, ao contrário, sentimo-nos mais sós. Objetos a parte, é sempre uma questão do afeto que encerram.

Latindo para os pneus

Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, difícil é saber o que fazer quando um desejo se realiza!

Quem anda por estradas poeirentas do interior está acostumado com o assédio da cachorrada sobre carros e motos. Sozinhos ou em bandos, eles saem latindo atrás do veículo. Um inimigo que deve ser custodiado pelos batedores de quatro patas, em clima ameaçador, até sair do território deles. As rodas, por estar na altura dos vigias e movimentar-se visivelmente, polarizam a atenção e são alvo dos latidos.

Evocando esse cenário, uma amiga alcunhou uma frase que julga representar seu estilo de lidar com os próprios desejos: “sou como cachorro com pneu, quando o carro pára não sei o que fazer com ele”. É uma boa imagem, em vários sentidos.

Conseguir parar o veículo é sinal de poder por parte do animal guardião. É como se, “assustado”, o invasor tivesse ficado paralisado. As cobiçadas rodas ficam à disposição, poderiam ser mordidas. Porém, imóveis elas deixam de fazer sentido. É difícil morder uma roda, dura e grande para sua boca. Mal ou bem, o interesse pela roda era somente um mero representante do jogo de forças: o objetivo era uma disputa de território e prestígio. Claro, estamos aqui cometendo liberdades poéticas, metáforas caninas.

Tentamos ser menos bobos do que os cães, latir para as coisas certas, ser menos irracionais, não avaliar mal a ameaça e gastar energia à toa. Mas volta e meia nos parecemos a eles. Quando escolhemos um objeto de cobiça, pode ser algo ou alguém que queremos, agimos tão convencidos da tarefa como o exemplo acima. No momento de alcançar a graça pela qual tanto lutamos, em geral não sabemos o que fazer, ficamos olhando para nosso pneu, confusos.

Minha amiga tem razão, e está mais acompanhada do que pensa. Um amor conquistado parece muito menos atraente, emocionante ou interessante. As vezes não acreditamos e rejeitamos por antecipação aquele que julgamos vai se desiludir de nós. Uma posição de prestígio, atingida por méritos, pode ser mal utilizada ou mesmo recusada, porque imaginamos que aquele lugar idealizado só poderia ser ocupado por alguém melhor do que nós. Levante a mão aquele que não se julgar uma fraude. Algo adquirido com esforço parece menor do que no catálogo. Uma viagem muito planejada sempre tem aquele momento “o que estou fazendo aqui”. Enfim, é mais fácil lidar com o fracasso do que com o sucesso, pois, pelo jeito, a melhor parte é continuar querendo. A satisfação de um desejo nos obriga a renegociar nossos objetivos e auto-imagem. Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, podemos imaginar um mundo idealizado dos ricos e famosos, colocá-los no altar de nossos ideais e ficar cultuando, rezando lamúrias.

Como esses cachorros, na verdade esperamos que o pneu continue rodando para além da nossa jurisdição. Assim podemos seguir vivendo, embalados pelo que queríamos, o que seríamos, empanturrados de “se”. A maior tarefa, porém, consiste em descobrir o que fazer com o pneu. E em nome do que continuar correndo depois disso. Eis a verdadeira valentia.

@ Laerte

na arte e na vida, autor@ de imagens intrigantes, sou fã

Tenho várias tiras do Laerte Coutinho coladas numa parede em meu consultório, são como enigmas que seguem me interrogando. Mais do que um cartunista, ele escreve poesia e filosofia com imagens. Suas tiras são abismos de múltiplos significados nos quais me perco. Todas as recomendações são poucas para que o leitor conheça sua obra. Ele é certamente um dos artistas mais importantes do Brasil.

Quando já o admirava, ele passou a dedicar sua vida a um tema nada prosaico: a identidade sexual. Começou a vestir-se de mulher, frequentava o “Brazilian Crossdresser Club”, discretamente, sob o nome de Sônia. Aos poucos, o prazer de usar a indumentária do sexo oposto deixou a clandestinidade. A Revista Piauí de abril (n. 79) dedica-lhe várias páginas, numa reportagem na qual é tratado por vezes com pronomes femininos, por outras masculinos. Sua coragem desnuda a todos, quer usemos cuecas ou calcinhas. Na vida, como na arte, ele produz uma imagem intrigante.

A formação da identidade sexual é pura incerteza. Apesar disso, ao crescer cruzamos com duas perguntas: o queremos e o que seremos, ou seja, a quem desejamos e como nos pareceremos. Além da questão de gênero, o desejo aponta muitas variações, preferiremos velhos ou moços, miúdos ou graúdos, humildes ou opulentos, pessoas vistosas ou alguém cuja beleza brilha somente aos nossos olhos, e assim por diante. Porém, uma definição bifurca os tipos de objetos de desejo: do nosso sexo ou do oposto. Não falta quem lembre ingenuamente que a anatomia nos condena à complementaridade fecunda do macho e da fêmea. Quanto ao que nos parecemos, há roupas para deixar isso bem claro, convém que as usemos conforme o corpo com que chegamos ao mundo. Os militantes dessas certezas fecham a questão.

Os jovens contemporâneos a abrem e têm praticado a ambiguidade com uma liberdade inédita. A androginia das roupas e adereços, assim como a bissexualidade das escolhas amorosas, inquietam as gerações anteriores e as almas frágeis. Mas eles não fazem mais do que externar incertezas que todos guardamos no armário. Nunca seremos suficientemente convincentes como homens ou como mulheres aos nossos próprios olhos, da mesma forma, tampouco somos imunes à atração por pessoas de ambos os sexos. Forjamos em nós certezas, as gritamos para acalmar as dúvidas que nos sussurram aos ouvidos. Criamos mitos religiosos e até científicos para dizer que existe uma definição clara dessa fronteira.

Antigamente, quando queríamos dirigir uma mensagem a homens e mulheres dizíamos assim: “prezado (a)”, ou seja, se você for mulher, também será contemplada, em segunda opção. A luta feminista está tirando as mulheres desse segundo plano, hoje diríamos assim: “prezad@”. Com o fim da divisão dos mundos que acompanhava a separação dos sexos, a identidade sexual entrou em questão. Estamos banindo mais do que a opressão das mulheres, trata-se agora da derrocada dos clichês sobre as características definidas de cada gênero. Laerte, diz ser “uma mulher em caráter experimental”, eu te compreendo querida, eu também sou.