Estranho na minha alma
Separações com e como finais felizes, por que não?
Fim do dia, das forças. O amigo liga chamando para um chope. Chegando lá, agradável surpresa: na mesa estava sua ex-mulher! Inevitável não fantasiar uma retomada, a separação sempre deixa uma ferida mal fechada, uma vontade de colar o que quebrou. Sempre gostei dela, do casal que eles faziam, mas eu sabia que aquele amor acabou. Havia escutado meu amigo o suficiente para saber que seu coração tomara outros rumos. Quere-los juntos novamente era egoísmo. Apesar disso, a conversa foi deliciosa como costumava ser no passado, estávamos relaxados, contentes. Depois, cada um foi pacificamente para seu lado, sem ressentimentos visíveis.
Amigos também ficam sequelados com os divórcios, sofre-se junto. A pior partilha, quando um amor acaba ou colapsa, é a dos afetos. Os que estão de fora do relacionamento descobrem-se desagradavelmente dentro: são disputados, junto com livros discos e algum patrimônio. Os amigos raras vezes conseguem transitar igualmente entre ambos, sem ter que escolher. A posição é similar, embora menos grave, à dos filhos. Estes, no entanto, não podem, nem devem, nem querem se posicionar, precisam manter o equilíbrio.
Quando a separação é tinta fresca, os ex-amantes estão loucos. Afogados em ressentimentos, reprisam incessantemente as mesmas histórias. Exigem paciência budista. Descontam a perda em tudo o que passar pela frente, seja filho, amigo, parente ou mascote. O filhos, com o coração sem lar, precisam acolher a dupla de desequilibrados que substituiu seus pais. Os amigos sofrem mal menor, mas a costumeira intimidade agradável transforma-se no muro das lamentações.
Fico triste, mas não desaprovo separações. Já entendi que vínculos terminais devem ser eutanasiados. Relações destruídas ou destrutivas podem consumir os envolvidos até o fim. Vi muita gente florescer após um recomeço, por vezes em um novo amor, outras em importante romance consigo mesmo. Mas sei o alto preço disso. Das separações que vivi, minhas ou alheias, impossível esquecer o desgarramento, a devastação, o vazio, o sem sentido que restou. Dói, destrói. Conviver com um amigo separado é reviver esse luto, essa perda. Nessa hora, o amor fraterno é imprescindível, mas impotente, nossa presença não tapa o furo.
Aquele entardecer, na presença de uma ferida cicatrizada, me encheu de energia. “Estranha no meu peito. Estranha na minha alma. Agora eu tenho calma. Não te desejo mais. Podemos ser amigos simplesmente. Amigos, simplesmente. E nada mais.” A letra de Fernando Lobo, na música “Chuvas de verão” traduzia o encontro. O final feliz, por vezes, não é o dos contos de fadas, o casamento, pode ser também uma separação que finalmente aconteceu. Por que não?
O cachorro do vidente
As ninharias que preocupam são a chave para conhecer nossos temas de extrema importância.
“Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo.” Clarice Lispector segue: “No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias. (…) Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas.”
Entendo semelhantes inquietudes: muitos dos nossos sentimentos são pateticamente dedicados a esquisitas ninharias. Dá até vergonha de confessar. Conscientes da desproporção, sabemos estar vivendo um afeto deslocado. Lutamos contra tais pensamentos que atestam nossa futilidade. Pedimos a nossa mente perturbada: diga logo, o que na verdade está produzindo tanto ruído? Não adianta…
Quando estou às vésperas de viajar para minha cidade natal, como faço todo ano, sei que vou sentir uma pontada de angústia se não reencontrar o cachorro de um vidente que sequer consulto. Chego e vou ver se o homem está em seu posto, onde instala sua banquinha de búzios. Ele veste roupas surradas de velho hippie e usa longa cabeleira branca. Ao seu lado, instalado em uma almofada vistosa, repousa seu cão, grisalho como ele. Certa vez constatei a falta do cachorro e senti um aperto no coração: um havia perdido o outro. Agora o vidente parecia patético, sozinho, miserável. Para minha satisfação, no dia seguinte o parceiro estava de volta. Com tantas preocupações dignas de nota, por que essa?
A cidade em questão é para mim lugar de muitas perdas, de lutos, mas também de férias felizes, da minha infância e das minhas meninas. O pequeno drama imaginário, no qual faço do cachorro e do vidente protagonistas de uma grande amizade é uma metáfora forte. Eles representam os vínculos que fazem de alguém um ricaço e as perdas que nos depauperam. Por isso temos que aceitar a incumbência de se ocupar das ninharias, elas são a chave os para temas de suma importância.
Clarice tinha a tarefa de olhar as plantas do Jardim Botânico, de cuidar da integridade da fila de formigas. Ela certamente sabia que nossa presença no mundo faz diferença, mas está longe de ser imprescindível. A minha com certeza mais prescindível do que a dela. Esse texto, chamado “Eu tomo conta do mundo”, termina com a frase: “só não encontrei a quem prestar contas”.
Mentirosa essa Clarice, ela contou para nós. Na crônica e na ficção, soube ser embaixadora da vida mínima, onde pulsam máximas emoções. Fazemos parte da fila de formigas de que ela tomou conta. Nos alinhamos menos solitários, graças à sua generosa sinceridade. É isso que faz um grande cronista, revelar a grandeza de nossas bobagens, sem cometer a descortesia de reduzi-las à razão. Eis meu sonho de consumo ao escrever e analisar nossa vida, que nem sempre sabe ser simples. Continuarei tentando.
Você é um político
Política é a soma dos SEUS pequenos atos
Em catástrofes evitáveis, como o incêndio da boate que matou 241 jovens em Santa Maria, a punição dos culpados é uma necessidade para os enlutados. Julgamentos exemplares e de grande repercussão revelam uma eficiência da justiça que gostaríamos de ver mais frequentemente. Faço votos de que sejam efetivos, além da pirotecnia. Mas há uma questão polêmica relativa ao episódio: o indiciamento de pessoas ligadas à administração pública, as quais não foram responsáveis diretas pelos fatos.
Para minha surpresa, estes se declararam injustiçados, dizem ser objeto de perseguição política, sugerindo que sua responsabilização não passa de um lance no jogo partidário. Acredito que tais indiciamentos são corretos justamente por serem políticos, o que nos ajuda a lembrar o que é mesmo a aviltada política. Ela não é, ou não deveria ser, reduzida a um tabuleiro de jogo alheio à realidade. Os prefeitos assim como nossos demais representantes das várias câmaras, são eleitos para administrar nossa vida de acordo com um determinado plano de trabalho. É nisso que votamos. As barganhas eleitorais são uma perversão das nossas escolhas, conseqüência sintomática da nossa omissão.
O que acontece numa gestão onde os bombeiros não zelam pela segurança, onde os fiscais são no mínimo omissos e centenas de jovens morrem é política sim. Política é o exercício da procuração que passamos a um cidadão para cuidar de nós e do nosso patrimônio comum. Político não é um produto que adquirimos se a propaganda for boa. Compreendendo a vida pública como território privado dos políticos de carreira, agimos como se não fossemos também, todos nós, figuras públicas.
Pensava nisso, numa espécie de balanço moral, questionando qual é o maior valor que nos cabe seguir e legar: o concernimento, que, trocando em miúdos, é o envolvimento com o que transcende nosso umbigo. Sempre que possível, nos voltamos para dentro, alheios, alienígenas, alienados da conexão com o que nos revolta. Contamos com o alívio da indignação, esse barulhento instrumento da paralisia: “não me acuse de nada, não fiz nada, sou uma alma pura”. Igual a uma das máximas de Homer Simpson: “quando cheguei aqui já estava assim”.
Gostaríamos de gerar vencedores, criar filhos capazes de ser colocados no páreo da competição. Mas filhos, como políticos, não são um produto a ser bem colocado no mercado. Precisamos ajudar os mais jovens a entrar no mérito das conseqüência sociais de suas escolhas e atitudes, do contrário serão autômatos ególatras, como muitos políticos de carreira, predadores na sua relação com a realidade.
Convém lembrar e ensinar que cada gesto que fazemos, mesmo os mais banais, fazem diferença para todos. São pequenos atos, feitos por cidadãos políticos, profissionais ou não, desde a designação de um subordinado, até atitudes privadas de reciclagem, de responsabilidade social. O modo como vivemos não é um irrelevante grão de areia na praia, é parte de uma rede, de uma reação em cadeia. Talvez esse possa ser o maior valor moral contemporâneo a ser cultivado: a consciência de que somos responsáveis pelo todo, saber-nos coletivos, políticos. Cada um de nós recebe do próximo a procuração que responsabiliza pela gestão do destino comum. Honremos esse compromisso.
Armarinho
Sobre o divórcio dos os antigos dons femininos
Não sei corte e costura, mas prego botão, faço bainha e cerzidos, também posso bordar pontos simples e até tricotar algo que lembra um cachecol. Essas pequenas habilidades dão um mínimo de autonomia para não contratar costureira para coisas banais. Mantenho um pequeno costureiro para essas tarefas, o que se revela bastante complicado. Encontrar um armarinho na maior parte dos bairros é pior, perdoem o trocadilho infame, do que achar uma agulha num palheiro. Para quem não sabe (homens e mulheres), armarinho é uma loja especializada em aviamentos de costura, que são os apetrechos necessários para tal fim.
Perto de casa havia uma loja de 1,99 que fechou, onde funcionava uma espécie de armarinho clandestino. Entre flores de plástico e estatuetas de gesso, era possível comprar alguma linha (esqueça cores mais ousadas), talvez um fecho, mas não se esperava encontrar linhas de bordar e botões. O que foi que condenou esses lugares à extinção, ao ostracismo, à raridade?
Fiar, tecer e costurar historicamente sempre fizeram parte da condição feminina, tornando-se quase seu sinônimo. Porém, na conquista implacável de novos territórios a que nós mulheres nos lançamos, abandonamos com desprezo tudo aquilo que fazia parte do confinamento doméstico. Por milênios a metade fêmea da humanidade viveu exilada da vida pública, alienada de todas as decisões importantes, inclusive as que afetavam seu destino. Em sua gaiola, ela podia costurar e tecer, apenas na reta final do exílio feminino, algumas privilegiadas conquistaram o direito de dedicar-se a ler e escrever. Não admira tenhamos feito um divórcio litigioso das agulhas.
Temos assistido alguns resgates comerciais ou lúdicos das artes femininas: mulheres artistas têm ateliês de costura, assim como cozinheiras gourmets fazem das antigas ocupações um bom divertimento ou negócio. Mas reparem, aqui também elas estão avançando sobre o espaço dos homens: foram eles que fizeram da costura e da comida um comércio, pois o trabalho feminino sempre foi expediente interno.
Não seremos vistas entrando num armarinho, no máximo numa loja de Patchwork. Na realidade cotidiana, orgulha-nos a incapacidade de executar tarefas que seriam naturais às avós. Foi uma alienação necessária para criar uma nova identidade para a mulher. Mas talvez hoje possamos evitar a infantilidade adquirida: mulheres agora precisam de outros para vestir-se e alimentar-se, reproduzindo a impotência que os homens sempre tiveram no lar. A feminista Betty Friedan os chamava de “homens-criança”: no mundo eram importantes, em casa incapazes de cuidar da própria higiene. É triste copiar tanta inermidade. Uma boa meta para a cruzada feminina pela libertação talvez seja resgatar os dons e a sabedoria das nossas antepassadas. Incluindo a costura, entre tantos outros. Ou ao menos voltar a ser capazes de pregar os próprios botões.
PS: descobri um armarinho na minha própria rua. Dentro de um brechó!
Exuberância enrustida
Almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação.
Com seu inconfundível sotaque argentino, no intervalo do cafezinho da clínica, ela me disse: “tu te achas muito bonita”. Eu, uma psicóloga desalinhada, na casa dos vinte, ela uma psicanalista quarentona e cheia de charme. Em eterno litígio com minha imagem, custei a entender a alfinetada. Complementou: “é que não te pintas, porque achas que não precisas…”
Minha colega, de fato, não saía de casa sem delineador. Como se seus enormes olhos azuis necessitassem de algo a mais. Sempre precisamos de algo a mais, era o subtexto. É pretensão pensar-nos suficientes com o que temos. No fundo, todo discreto se acha grande coisa. Paradoxal, mas verdadeiro.
Discreto não é displicente, não é largado, não boicota a sua imagem. Ninguém é tão bonito a ponto de sobreviver ao esculacho. A Top Model não acorda com cara de Top nem de Model. Passei da idade que ela tinha na época, hoje não saio de casa sem delineador, mas costurei uma versão pessoal do conselho recebido.
O investimento na própria imagem pode ser óbvio, como no caso das pessoas chamativas, enfeitadas, ou mesmo uma aposta no detalhe, no que é invisível a olho nu. Professo o segundo tipo, daqueles que fazem o gênero da discrição presumida, da falsa humildade, da exuberância enrustida, chame como quiser. O cuidado com a lingerie, por exemplo, traduz esse espírito. Embora fique oculta a maior parte do tempo, é meticulosamente escolhida conforme o que revela, comprime, marca, sugere. Temos a depilação, que tenta fabricar uma superfície impecável, a tatuagem, enfeite perene da pele. Nunca cessa o combate à topografia da celulite e das estrias, acidentes geográficos a serem reparados. São preocupações obsessivas, parte de um complicado processo que termina com o arremate da maquiagem, reta de chegada de um labirinto de incertezas. Os homens não cansam de afirmar que não reparam nem na metade dessas providências, mas as mulheres insistem num cuidado, incapaz de calar a profunda inquietação, o pânico do erro. No fundo, almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação. Como sempre, a insegurança gera sede de poder.
Minha avó insistia em que uma mulher deve estar sempre impecável por baixo das roupas, “nunca se sabe quando vamos parar no hospital”, dizia. Sua intimidade era meticulosa no aguardo da síncope, do atropelamento. Eu prefiro cultivar a fantasia de que meus caprichos não se destinem ao encontro com o azar, que se enderecem ao escolhido para apreciar meus detalhes. Mas aprendi algo com minha amiga experiente: não há lugar para o pecado da soberba, reparei que até seus lindos olhos se beneficiavam do arremate.
Sede de vingança
Com o que mexe a ficção vingativa de Tarantino?
Sede de vingança
Não mais nos reunimos em praça pública para ver a cabeça dos culpados rolar ou pender. Mas, sempre que possível, fazemos isso no noticiário e, principalmente, nos cinemas. Nos antigos filmes de cowboy, um catártico tiroteio garantia a punição dos bandidos e a saída incólume do herói. Duros de matar, esses homens a cavalo foram logo substituídos por policiais igualmente solitários. Final feliz requer o chão coberto de corpos dos maus. Em “Django Livre”, como já fizera em “Bastardos Inglórios” e em “Kill Bill”, o diretor Quentin Tarantino arma seu roteiro a partir da nossa sede de vingança contra escravocratas, nazistas e machistas violentos.
Sou uma vingativa confessa, quero ver sangue. Mas fique tranquilo, no sentido figurado. Nada de pena de morte e torturas. Sei que a civilização começou quando alguém abriu mão da retaliação. Na vida real, a morte só deve ocorrer quando inevitável. Porém exorcizo minhas pendências na ficção. Da segunda guerra, onde meus antepassados e parentes foram assassinados, gosto de lembrar que existiu o Levante do Gueto de Varsóvia. Como eles, se fosse para morrer gostaria de levar pelo menos um nazista comigo. Na fantasia sempre somos mais corajosos.
A vingança, seja histórica ou pessoal, funciona de forma parecida com o fim litigioso de um relacionamento amoroso. Sejamos sinceros, não queremos que o outro seja feliz, lhe desejamos a morte lenta e o ostracismo. Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença, que o melhor troco é ignorar, genuinamente. Mas isso leva muito tempo para ser possível e mesmo assim sofremos recaídas. A dor deixa cicatrizes e elas são lembretes lavrados na pele, para sempre.
Os protagonistas dos filmes de Tarantino carregam essa insígnia, assim como os judeus tatuados, os escravos marcados, o mesmo ocorre com o maior vilão nazista em “Bastardos”. Há coisas que não são passíveis de um desfecho elegante, como seria a superação. Nem tudo se consegue esquecer, mesmo porque precisamos garantir que nunca se repita.
Questiona-se a cantilena de afro-descendentes e judeus que estão sempre na defesa e não perdoam os maltratos sofridos. Em parte, ela é necessária: preconceitos estão sempre ressurgindo, é preciso ficar em guarda. Porém, nem os descendentes de alemães nem os brancos da atualidade têm culpa pelos absurdos cometidos pelos seus antepassados. O que fazer, então, com os restos desse ódio vingativo? Tratá-los com o mesmo preconceito que se sofreu seria indigno, igualmente vergonhoso. Mas como conviver com as cicatrizes que latejam, a mágoa que espreita pronta para pular sobre nós, a autocomiseração, que pode não orgulhar-nos, mas compõe nosso lado sombrio?
Depurá-lo no cinema é uma forma de eliminar o excesso. É uma sangria do despeito, da tristeza, que permite manter o fluxo da civilidade. Não somos, nem nunca seremos, totalmente civilizados. Potencialmente, somos tanto algozes, quanto vítimas vingativas. Haja matinê!
Síndrome da porta
Quando desejamos a ausência do outro, tememos a punição do abandono.
A noitada termina, a comida foi apreciada, a conversa ótima. Tudo na medida: confissões e risos tiveram seu lugar, o álcool fez seu papel, ninguém ficou pastoso, inconveniente. Um encontro perfeito, mas chegou ao fim. A hora de partir de um jantar, de uma visita, é para mim sempre delicada. Temo ser mal interpretada. Será cedo demais, pareço ingrata? Tarde demais? Terei abusando da paciência dos donos da casa?
Do outro lado, ao receber, não me sinto mais cômoda. Depois dos bons momentos, já estamos todos cansados, hora de deixar os convidados partirem. Eles comunicaram sua intenção em hora oportuna, mas deveria insistir? É aí que desenvolvo o que chamo de “síndrome da porta”. Tomada dessas incertezas, fico envergonhada de desejar partir, ou querer que meus amigos vão para casa. Por isso, começo a desenvolver pequenas estratégias para retê-los. Afinal, sempre temos tanto o que falar! Quanto mais quero terminar a noite, mais puxo conversa. Na derradeira despedida, na soleira do prédio, faço uma pergunta importante, tornando infinita a despedida. Grudo nas minhas visitas como carrapato, justamente quando acho que está na hora delas partirem.
Poderia atribuir esse hábito ao excesso de polidez, mas acho que sua maior fonte é a angústia de separação. Da mesma forma fazem as crianças pequenas, na clássica cena da choradeira na porta da creche: depois de fazerem um espetáculo pungente de dor ao ver a mãe partir, elas viram as costas e muito faceiras rumam para suas brincadeiras. Ficar feliz na escola é o mesmo que dizer à mamãe que ela não é mais o centro do mundo.
O balé da porta é um movimento complexo. Por um lado, o anfitrião e a visita querem descansar, assim como a criança quer se divertir. Por outro, todos temem ser menos amados se não demonstrarem sofrimento pela separação. É agradável pensar que a visita não desejaria partir e que a mamãe vive para nós. Crianças e adultos temem a perda dos pais, amigos, amores, parentes, nenhum vínculo é sempre seguro.
A solidão que se estabelece depois de um encontro é desejável, é bom quando nos deixam a sós. Hora de pensar no que aconteceu, no que se disse e viveu, de opinar para os únicos ouvidos com que somos totalmente sinceros, os nossos. Porém, quando desejamos a ausência do outro tememos a punição do abandono. Ele saiu, adormeceu, distraiu-se de nós, enfim, de alguma forma partiu, mas ao desligar-se, deixou-me para sempre? Mesmo depois de crescidos, padecemos de angústias de separação até nos momentos mais banais, ou mesmo agradáveis, da vida cotidiana. No escuro, antes de dormir, a solidão que nos contempla sempre enxerga uma criança desamparada. Essa é a única que nunca nos deixa.
Como se não houvesse amanhã
Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.
É fácil evocar o que pensamos em momentos de agradável intensidade: “azar, não posso deixar de viver por medo, é tão legal que podia acabar agora”. Já pensei isso. Quantas vezes nos colocamos em situações de risco ou, pelo menos, naquelas em que o bom senso não impera? Não negue, mesmo que você seja o rei da precaução, todos nós já fomos apresentados à cara do perigo. Sair à noite em nossa sociedade violenta, beber mais do que gostaríamos, estar em um lugar confinado, fazer uma aventura arriscada de carro, escaladas, voar de asa delta, tomar banho em cachoeira, dirigir bêbado, subir no carro do amigo destemido ou alcoolizado, ficar íntimo de alguém que não se conhece, frequentar ruelas escuras. A lista é longa.
Essa leveza beirando a irresponsabilidade é coisa típica da juventude, mas também, com sorte, reencontramos esse sentimento mais adiante. Os jovens vivem momentos festivos de euforia coletiva, atravessam juntos uma noite que faz o tempo parecer infinito. A festa é nossa desde o início dos tempos e costumava ser um momento sagrado, onde os excessos e descontroles eram prescritos. Hoje celebra-se a alegria, a força vital, o direito de dançar de qualquer jeito, só pelo prazer de partilhar o ritmo com os amigos e contemporâneos.
Jovens se arriscam, mas desta vez o culpado é outro. A tragédia de Santa Maria, causada por irresponsáveis que, espero, serão descobertos e punidos, não foi culpa deles, que estavam divertindo-se, nem da permissividade das famílias que não os acorrentaram em casa. Eles acorreram ao evento sem conferir se havia saídas de emergência, portas corta-fogo. Mas isso não era tarefa deles. A alegria pressupõe a confiança de que vai dar tudo certo. A felicidade é otimista, por isso muitas vezes envolve riscos, que devem ser sanados por aqueles que têm a diversão alheia como forma de trabalho. Vale para uma festa, um parque de diversões ou um programa de mergulho.
Investigações e punições são uma dívida com as vítimas. Mas as famílias e os amigos sobreviventes não terão nada devolvido com isso, já perderam o essencial: aquela mínima isenção do medo e da culpa que nos ajuda a viver. A morte, principalmente em sua face trágica e quando se perde um jovem, é a maior experiência de impotência. Nada porta o sem-sentido da vida como a inclemência do fim, principalmente o de quem teve reduzido o tempo de dizer a que veio.
Perder um filho é a pior das mortes, é um assassinato da esperança, impossível de assimilar. Cuidamos zelosamente nossos descendentes, pois seguirão nossos passos quando cessarmos. Sua morte é um milhão de vezes mais insuportável que a nossa, restamos sem sua transcendência. Um filho morto diminui a chance nos tornarmos lembrança. Apesar disso, não podemos ser egoístas e guardá-lo numa redoma, esperando que viva para nos cultuar.
Sou mãe de duas jovens da idade da maior parte das vítimas da boate Kiss. Tanto quanto elas, estivemos muitas vezes em muitos lugares assim. Se meus pais tivessem me impedido, se eu proibisse minhas filhas de viver seu tempo, certamente sua segurança estaria melhor garantida. Porém, um filho cerceado em sua liberdade é alguém cujo corpo é confinado para que sua mente só se ocupe de amar aos pais. Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.
Às pessoas queridas dessa mais de duas centenas de jovens mortos gostaria de transmitir muito mais do que a solidariedade, também a identificação. E principalmente dizer: não, vocês não poderiam ter impedido seu filho, sua irmã, sobrinho ou amigo de estar lá. Ele exerceu o direito de ser livre e feliz, você tinha o dever de respeitá-lo. Desta vez, não houve amanhã, mas se um jovem é proibido de conviver com seus pares ele também acaba privado de conhecer-se, do seu futuro. A dor é inevitável, mas gostaria de aliviá-la da culpa. Correr riscos faz parte de ensinar a viver, embora, repito, essa dor é tão imensa que certamente não estou, no momento, servindo de consolo.
Desgarrados do guarda-sol
Desgarrados do guarda-sol Os Meninos Perdidos da história de Peter Pan são originalmente crianças que as babás deixaram cair do carrinho sem dar-se conta. Se após sete dias ninguém os reivindica, as fadas os recolhem para a Terra do Nunca. Não há meninas lá, pois, conforme Peter, elas seriam muito espertas e não cairiam do […]
Desgarrados do guarda-sol
Os Meninos Perdidos da história de Peter Pan são originalmente crianças que as babás deixaram cair do carrinho sem dar-se conta. Se após sete dias ninguém os reivindica, as fadas os recolhem para a Terra do Nunca. Não há meninas lá, pois, conforme Peter, elas seriam muito espertas e não cairiam do carrinho, no que devo concordar que ele tem razão.
Outro tipo comum de meninos perdidos são os desgarrados do guarda-sol: os pequenos que aproveitam que a vigilância familiar relaxa para explorar o mundo sem bússola nem mapa. Quando percebem a ausência dos seus adultos, apesar de que foram eles mesmos que se afastaram, sentem-se abandonados e abrem o berreiro. Neste veraneio, até inventaram umas pulseirinhas eletrônicas, que permitem a localização da família quando a sirene do mini aventureiro começa a tocar.
Paradoxalmente, é mais fácil ser curioso e correr o risco de perder-se quando nos sentimos cuidados. Geralmente acontece com pequenos que desenvolveram a “capacidade de estar só”. Ela pressupõe o seguinte: uma criança vive em conexão direta com uma figura materna, fonte máxima de segurança; como ninguém pode estar presente o tempo todo, a duras penas ela acaba descobrindo que a mãe não some, nem ele, e que é bom que isso aconteça. Mas também há uma forma menos dramática de aprender a autonomia, que é distrair-se, tornar-se capaz de ficar só. Acontece quando o bebê fica absorto em seus assuntos, cantarolando e brincando, esquecido de chamar a atenção da mãe ou de controlar seus movimentos. Eis uma pequena pessoa crescida, que tem em si mesma uma boa companhia. O fugitivo das areias é alguém que sai consigo mesmo a passear. Carrega dentro de si, por um tempo, seus adultos.
Os pais, nem que seja por instantes, também se permitem desligar na presença do pequeno. Distraem-se porque precisam tirar um pouco do pensamento essa obsessão de fraldas. Mas há os pesadelos, como os bebês que morrem esquecidos em carros, afogados ou são seqüestrados. São ameaças que dificultam esse jogo benéfico de mútua desatenção, já que um vacilo pode ser fatal. Somos todos ousados sobreviventes dessas incursões perigosas nos momentos de desatenção que em alguma ocasião vivemos. Não nos foi necessário o resgate mágico, mas alguma fada madrinha olhou por nós. Tristemente, isso não ocorreu com os pais e filhos que a fatalidade castigou. É bom lembrar que eles não são monstros. Pais e filhos precisam desligar-se mutuamente, nestes casos extremos algo falhou.
Até hoje me emociono nas praias em que há o hábito de colocar a criança perdida nos ombros e sair batendo palmas, com o coro dos banhistas, até encontrar a família da criança apavorada. A cena me leva às lágrimas, porque sinto que fora do guarda-sol familiar, há um mundo de gente disposta a zelar por nós. Quando dá certo, é bom perder-se do território conhecido para descobrir que há incursões seguras por terras estranhas. Faz parte da aventura interminável de crescer e, com sorte, baterão palmas por nós quando o medo chegar.
Ponto para as formigas
A história dos jasmineiros perdidos e de como os desejos têm a manha de travestir-se de memórias.
Minha casa de infância tinha três árvores de jasmim. Eram flores brancas enormes, quase obscenas, de cheiro desbragado. Os vizinhos perfumavam suas casas com jasmins que pediam à minha avó. Ela e as árvores eram generosas. A casa foi vendida, a nova dona trocou-as por grama.
Inconsolável, passei a tentar recuperar meus jasmineiros. Plantei árvores em todas as casas que tive, em pátios, jardins, sacadas, foram cinco tentativas. Todas fracassadas. Perdi para a gula das formigas. Não havia veneno, água de tabaco, ou mandinga que as contivesse. Banqueteavam-se com folhas e flores. Desisti.
Pelo infortúnio, o cheiro do jasmim tornou-se minha obsessão. Procuro seu tom nos perfumes, fico em alas quando lhe farejo a menção, pratico pequenos furtos de flores. Mas como a mente humana é ilógica, se tivesse um jasmineiro, a bela flor branca seria um prazer, não mais nostalgia, nem portal para memórias. As evocações passadas se apagam frente ao que nos acompanha até o presente. Na posse dele, provavelmente estaria agora caçando cheiro de pitangueira. As folhas dessa árvore tem aroma comestível, também havia delas naquele jardim.
Cheiros são passageiros, dão prazer e logo fabricam cobiça. Pela fugacidade, pelo caráter envolvente, que convoca ou mesmo provoca, o olfato é, entre sentidos, a melhor representação para o desejo. Nos desenhos animados a personagem, em transe, voa carregada pelo aroma da flor, da comida fumegante ou do perfume da amada. Cheiros antigos, do tipo que nos transporta para estados de espírito do passado, são uma curiosa combinação de nostalgia e desejo.
Quanto à nostalgia, os psicanalistas insistem em que nossa história pessoal é praticamente obra de ficção, que todos tem dom literário para criá-las. As lembranças são editadas ao gosto pessoal, em geral a serviço de desejos que se escondem por trás dessas pequenas evocações. Já os desejos são um motorzinho que nos leva na direção do que está em falta na nossa vida. Cobiçar algo que já se teve, como os jasmineiros perdidos, é falsamente querer algo do passado. Na verdade, é um desejo atual que se traveste de antigo.
A partida daquela casa perfumada significou uma guinada no meu destino. Minha mãe, viúva, casou-se com aquele que tornou-se um novo pai e mudamos para outro país. Valeu a pena, mas ali ficou um destino que nunca vivi. Quem teria me tornado se nunca tivesse abandonado a terra natal? Jasmins têm cheiro daquela que nunca cheguei a ser. Cobiço-a por ser desconhecida. Nela cabem todas as idealizações, pois a realidade é sempre pobre frente à fantasia. As saúvas ganharam a disputa porque a árvore real é mais delas do que minha. Para os insetos eram folhas doces, saborosas, alimento de verdade. Para mim, pura ilusão.