Mudança
Narrativas, recriações da verdade, ajudam a elaborar grandes e pequenos traumas, não perca “A vida de Pi”!
Desconfiada, fui assistir ao filme sobre um menino e um tigre náufragos. Não fossem as recomendações de pessoas próximas que me garantiram ser imperdível não teria ousado. Isso dito por uma incorrigível fã de filmes de aventura, fantasia e ficção infanto-juvenil. Com a mesma confiança dos apreciadores que me deram esse presente, recomendo ao leitor: se já não viu, não perca!
A magia da jornada marítima do garoto indiano funciona porque Ang Lee, diretor de A vida de Pi, administra o improvável, as cenas malucas, com boas doses de humor sutil. O filme é mais do que uma aventura, é uma pulga atrás da orelha sobre como ver e narrar a própria vida. A organização da informação, que devemos a jornalistas e historiadores, é imprescindível, mas insuficiente para fazer-nos compreender quem somos, onde estamos e o que diabos aconteceu. Precisamos mais que isso. Para isso servem a ficção, a fantasia, a beleza dos diversos tipos de vozes e olhares.
São essas recriações da verdade que nos tornam capazes de elaborar um trauma qualquer. Não precisa ser uma guerra, uma catástrofe, um abuso, também ficamos marcados pela morte de um avô, pela ocasião em que esqueceram de nos buscar na escola, pela perda do primeiro amor.
Contado com arte, o vivido transforma-se em algo que pode ser visto e compreendido de vários jeitos. Por isso, longe de ser supérflua, a arte é um instrumento de crescimento e equilíbrio emocional eficaz para todas as idades. Artigo de primeira necessidade!
Passaram-se quase 12 anos, desde setembro de 2001, quando recebi um telefonema da Claudia Laitano, convidando-me a uma contribuição quinzenal neste espaço do Segundo Caderno. Tenho escrito estas colunas, misto de crônica e mini-ensaios, sobre fatos reais e imaginários. Esta é a última vez que sou publicada aqui. Migro para o espaço de Opinião da Zero Hora, mensalmente aos domingos, além de outras escritas esporádicas.
A duras penas aprendi que as histórias que pedem para ser contadas pelo colunista, por vezes são fatos, outras ficção. Seguirei falando sobre produtos culturais, que não passam de ilusões, exatamente como os sonhos: tramas inverídicas onde os psicanalistas garimpamos as maiores verdades!
A realidade por vezes é grande demais, é como um alimento cru que necessita preparo para ser absorvido por nossos estômagos frágeis. Nos jornais e revistas, o artigo, o ensaio, a crônica, a coluna tentam dar forma ao que vivemos sem entender. (Nos divãs também.) Loucos, pretensiosos, esses jornalistas e escritores. Gracias, Claudia, por ter me convidado a ser como eles!
(publicado no jornal Zero Hora, dia 16.01.2013)
Somos todos Marcelinhos
Tudo o que você queria rir sobre a pornografia mas não tinha coragem de fazer!
Os adultos saem e, distraídos, deixam disponível conteúdo impróprio para menores no computador. Marcelinho aproveita que está sozinho para ler alto o que não devia. É criança e sua leitura é engraçada, titubeante, porque em geral não entende o que lê, como o dos que estão aprendendo. Marcelinho é um fantoche e seus quadros de humor para adultos circulam pela internet intitulados “Marcelinho lendo contos eróticos”. Evidente que as histórias pornográficas são escolhidas a dedo, para aumentar o efeito cômico, entre as mais estúpidas e mal narradas, embora nesse setor seja raro achar alguma que não o seja. Alguns bons escritores e cineastas conseguiram fazer antológicas cenas de sexo, cuja qualidade advinha de uma sensualidade em geral ausente na pornografia.
A graça do fantoche está em nos re-conectar com a curiosidade sexual infantil. Todo adulto certamente lembra de alguma cena na qual, enquanto criança, viu ou lhe contaram algo a respeito de sexo. Um interesse lúbrico, que chega cedo na vida, move os pequenos em jornadas detetivescas em busca dessas informações que, quando obtidas, fazem pouco sentido ou são interpretadas de modos equívocos.
Hoje em dia, na sexualidade que a mídia e a arte difundem continuamente, as crianças são expostas a muito mais do que deveriam ver. Porém, as imagens ou palavras não contém significados diretos ou óbvios. Os pequenos não entendem a mecânica da relação sexual de primeira. Por isso, constroem suas hipóteses, que são as teorias sexuais infantis, a partir de prazeres que conhecem bem, associados à excreção, à alimentação e à agressividade.
O quadro de Marcelinho, com sua voz infantil, lendo esses textos tira sua graça do encontro indevido entre a curiosidade infantil, saudável e bem vinda, com a exposição explícita daquilo que ainda não está no momento de compreender. A criança vai “descobrindo” o sexo aos poucos, só o que está suportando saber, é ela que deve dar o ritmo.
Mesmo depois de crescidos, somos todos Marcelinhos: o sexo é um constante desafio, uma incógnita. Na verdade, achamos que os outros estão fazendo coisas mais ousadas e divertidas das que nos ocorrem e uma miríade de promessas de prazer acena do horizonte. Seguimos a vida toda acreditando num paraíso do sexo, um hipotético quarto dos pais, onde estariam acontecendo peripécias incríveis. Ali os grandes fariam as coisas realmente grandes: infalíveis, longos, múltiplos e plenos orgasmos, que só ocorrem de forma tão espetacular na pornografia e em nossa imaginação eternamente infantil. As acrobacias e aventuras sexuais comicamente lidas por Marcelinho desvanecem um pouco do excessivo prestígio que damos ao sexo. Afinal, a grama do vizinho pode não ser tão verdinha.
Nostalgia da matiné
O épico visita nossa vida banal, sobre o filme O Hobbit
Minha infância careceu de matinê. Nunca soube o que era programação dupla: bang-bang, seguido de filme de aventuras, capa e espada ou comédia. Estive ausente do cinema da tarde, onde crianças e jovens emergiam do escuro de alma lavada. Em contrapartida, vi surgir os filmes-catástrofe, como Terremoto, quando sentimos pela primeira vez o cinema tremer com os efeitos especiais. Sem falar do, inesquecível, pânico e nojo do O exorcista. Além da diversão da tela, havia o prazer de partilhar em silêncio do mesmo sonho. O cinema é uma escuridão acompanhada, pesadelos não causam ansiedade, desejos não geram culpa. Por isso, não podia ser maior minha gratidão com Peter Jackson, que levou às telas as histórias de Tolkien.
Fui apresentada à literatura do filólogo inglês durante a infância das minhas filhas. O padrinho da mais velha presenteou-a com um exemplar de O Hobbit, livro introdutório da saga, a história que acaba de tornar-se filme. Laura tinha seis anos quando seu pai começou a lhe ler aquelas intrincadas aventuras. Ela escutava com a respiração suspensa. A operação se repetiu anos mais tarde com Júlia, a caçula, mas àquela altura eu mesma já havia entrado no livro. Lembro de ter ido trabalhar sem dormir, incapaz de deixar meus heróis em meio de uma batalha contra Trolls ou nas garras de um dragão.
“Todas as histórias precisam de polimento”! Diz o mago Gandalf num diálogo dessa adaptação de Jackson. Ele tomou liberdades, sim, mas em nome do direito de re-apresentar a saga ao público de outro tempo, quase quatro décadas após sua publicação. As histórias da Terra Média nunca deixaram de ser o lar imaginário de sucessivas gerações de jovens iniciados, no cinema se tornaram acessíveis a todos.
O mago Gandalf é uma espécie de guru da masculinidade e, como está difícil saber como tornar-se homem atualmente, seus ensinamentos vem a calhar. Quando li o livro, as músicas cantadas pelas personagens, cujas letras Tolkien inseria na trama, me matavam de tédio. Na recente versão filmada, se ouvisse aquele canto dos anões convocando para resgatar sua terra natal eu teria me alistado! Assim fez o pacato Bilbo, que abandonou a rotina doméstica rumo ao desconforto e, pior, o perigo. Suas aventuras resultaram numa história para contar e foram justamente essas narrativas que levaram seu descendente Frodo à jornada com a Sociedade do Anel. Os humanos fazem-se a partir de histórias e elas sempre podem ser mais e melhor contadas: no escurinho do cinema, nas páginas de um livro, tanto faz, desde que traga o épico para nossa vida banal.
Phone home!
Entrando em 2013 com esperança de caderno novo e olhos de criança cansada!
Para entender as crianças, pense como você se sente em viagem a um país novo, uma cultura exótica, diferente, onde cada minuto é desconcertante. Ao final de um único dia parece que transcorreu uma semana e só o que você quer é um banho e o quarto de hotel, sua casa nesse planeta distante. Quanto menores, mais estrangeiras ao nosso mundo elas são. Os pais terão que ser guias pacientes, saber a hora de recolher seus turistas confusos e estressados à bem-vinda rotina familiar.
Conviver com os pequenos exige atenção, sensibilidade de funcionar dentro de um ritmo que eles possam acompanhar, algo que poucos adultos e pais estão dispostos a fazer. É preciso manter-se falando com eles, diagnosticar seu desconforto. Crianças demandam tradução. Tudo lhes soa incompreensível, cansam fácil, precisam refugiar-se em seu mundo lúdico privado, em geral na hora em que o adulto gostaria de continuar na festa. São de tiro curto e se forem forçadas a ir além de suas forças vão acabar criando algum tipo de birra, litígio ou bagunça.
Crescemos, mas seguimos para sempre alienígenas às novidades do destino. Pelo resto da vida, as mudanças fascinam e assustam. Ao chegar, juventude, adultez e velhice sempre nos encontram contrariados, recalcitrantes e confusos. Somos como um computador superado, ficamos sobrecarregados e damos tilt a cada desafio. Nossa visão de mundo é como um sistema operacional condenado à defasagem.
Um bom exemplo disso está no filme E.T., de Spielberg, que completou três décadas este ano que finda. Nessa história, só as crianças entendem o desamparo e o desterro do simpático extra-terrestre, embora esse seja um sentimento universal. Todos temos nossa criança interior, essa que nos assombra para sempre. Ela também se confunde com o desconhecido e quer ligar para casa, precisa contato com a Nave Mãe.
Ano novo é como lugar novo. A sensação de caderno virgem é a expressão otimista dos balanços de fim de ano. Prometemos que desta vez não haverá folhas incompletas, amassadas, em branco! Fazemos listas de boas intenções, votos depositários da insaciável cobiça de perfeição. Graças a isso, o primeiro dia do ano marca o início de uma jornada fadada à frustração. Meus cadernos continuam caóticos, em sentido figurado, mas, como todo mundo, tenho fé na renovação, ela abre a porta da esperança. Reincidentes, voltamos a acreditar na aposta em que “desta vez vou fazer tudo certo”, mas e se não? A cada recomeço reencontro a criança acuada que nunca me deixou. “Phone home, phone home!”, pedia o E.T..
Para o ano que entra e tantos outros, lembre-se de que dependemos de encontrar um equilíbrio instável entre o conhecido e o estranho. Precisamos seguir em frente, mas de tanto em tanto, repousar em território conhecido, mesmo que ele pareça um caderno rabiscado, com orelhas. Seja um adulto compreensivo consigo mesmo. Ao longo do trajeto, se agache, olhe sua criança interior nos olhos e a conforte. Seja um bom pai para você mesmo e feliz ano novo!
Publicado em Zero Hora, dia 30/12/2012
Fale com elas
Falar com as crianças é o melhor presente!
Já viveu mais de meio século, mas meu marido ainda lembra do cuidado que tinha na hora de pendurar a lancheira para não se enganar. No jardim de infância, antes de conhecer as letras, cada criança tinha uma figura no cabide, a dele era um elefante, aquele era seu lugar. A creche é o primeiro espaço de existência pública, onde se pode ser alguém fora da família. Os adultos da família nos nomeiam, definem, rotulam, e com isso vão nos modulando, mas quando saímos “por conta”, quanto se tem um cabide de elefante para chamar de seu, é que passamos a ser alguém.
A Casa dos Cataventos, nome emprestado da poesia de Quintana, não é creche, nem escola, é um lugar para brincar e conversar. Lá também cada criança marca sua chegada de um jeito. Em vez do cabide, pois muitas não trazem uma mochila, ao chegar seu nome é registrado no quadro, num livro de presenças, no copinho que vai usar para tomar água. Ela é anunciada por escrito, mesmo que ainda não saiba ler. Os adultos desse lugar estranho estão lá para falar com ela e não sobre ela. Eles se interessam sinceramente por suas fantasias, que ali são grande coisa. É bom que seja assim, a infância é incompatível com a hipocrisia. Crianças farejam a mentira, brincam de faz de conta, nunca fazem de conta que brincam.
Situada na Vila São Pedro, a casa é um projeto comum de psicanalistas e universitários, mas ali os pequenos membros da comunidade é que são as estrelas. Inspirado na Casa Verde, criada na França por Françoise Dolto, e nas Casas da Árvore, instaladas nas favelas cariocas, esse trabalho provou-se uma importante ferramenta de saúde mental. Os profissionais se alternam: eles também devem colocar seu nome, brincar e conversar. As crianças entram e saem quando querem, seguem as regras combinadas entre todos, e brincam com dedicação. Por que adultos fazem das tripas coração para criar e manter um lugar aparentemente tão despretensioso?
A maior parte das crianças em situação de extrema pobreza cresce órfã de atenção. Em geral passam a vida sem jamais ter conversado com um adulto sobre seus sonhos e pesadelos. Ninguém fica sabendo do que cada uma tinha medo e raiva, e isso tudo elas compreendem e expressam brincando!
O que não vira brincadeira tende a entrar em confronto com a sociedade. Dar espaço à fantasia evita a marginalização de sentimentos, pensamentos e atos, simples assim. Por isso, no Natal que se aproxima, convém lembrar que o importante não é o brinquedo, o presente. Brinque, converse com seu filho, seu neto, seu sobrinho. Acolha sua imaginação e ele lhe dirá quem é!
Luto negado
Os efeitos psicológicos de um desaparecimento, a descoberta de documentos sobre o assassinato de Rubens Paiva.
Júlio Miguel Molina, coronel da reserva do exército, foi assassinado em Porto Alegre. Num lance surpreendente, a investigação desse crime abriu as portas para a elucidação de outro: o assassinato do deputado cassado Rubens Paiva, torturado até a morte e desaparecido durante a ditadura. Na casa do militar foram encontrados documentos, restos de arquivos do DOI-Codi. Nunca mais se teve notícia de Paiva depois do dia 20 de janeiro de 1971, embora sua tortura houvesse sido testemunhada por outras vítimas. Os cinco filhos e a esposa estavam em casa quando ele foi levado por militares da aeronáutica. Posteriormente, foram informados de que o preso havia fugido. Essa família conviveu por décadas com um desaparecimento, que é diferente de uma morte. Sem poder se despedir, tiveram que dizer adeus por dedução.
Os papéis encontrados devolvem simbolicamente partes do corpo de Paiva. Atestam sua prisão e arrolam os objetos recolhidos na ocasião: vestimentas, um lenço branco, um chaveiro com cinco chaves, papéis e documentos. Até agora não havia como provar a presença do deputado nas dependências do exército. Agora há. Além de anistiado, o crime estaria prescrito. Porém, ocultação de cadáver é um crime que não prescreve. Nem o luto.
O luto é um processo lento, no qual vamos acreditando, a contra-gosto, que perdemos alguém para sempre. Inutilmente aguardamos sua volta, tecemos comentários que lhe interessariam, esperamos sua opinião, e a cada reiterado silêncio, nos convencemos um pouco. Mortes aniversariam por muito tempo, revemos repetidas vezes suas cenas. Por ser inexorável, a morte é sempre traumática. O trabalho do luto é a tentativa de lhe emprestar algum sentido.
Um corpo desaparecido, insepulto, é o seqüestro do direito ao luto. Sem ritos funerários, a morte fica parecendo uma ilusão, de tal modo que a própria vida do morto vai tornando-se imaginária. A crueldade com Paiva estendeu-se, portanto, à família. Seu filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, perguntou-se sobre Molina: “Por que guardava o documento? Era uma espécie de souvenir da guerra suja?” A resposta talvez seja que os algozes (com quem o coronel teve algum vínculo) também precisam materializar a morte para acreditar nela, mesmo que seja dos seus inimigos. A tragédia grega de Antígona, impedida de realizar os ritos funerários de seu irmão, se atualiza para os parentes de presos políticos desaparecidos. No fim desta tragédia brasileira, espero que estejam escritas cenas de restituição da dignidade do luto.
Alma animal
Além de um vínculo amoroso terapêutico, um animal de estimação costuma ser um duplo do dono.
Donos de animais de estimação costumam ser acusados de dedicar-lhes um amor excessivo, por tratá-los como filhos. Isso é considerado um obsceno deslocamento de afetos. Tendo a discordar, quem quer filhos tem filhos, cães e gatos geralmente ocupam outro lugar.
Talvez a melhor representação disso esteja na concepção de Dimons que encontramos em “Fronteiras do Universo”, uma trilogia de que se inicia com “A Bússola de Ouro”, do britânico Philip Pullman. Estes são uma duplicação das personagens, sua “alma de estimação”. Na história, cada humano tem um Dimon (ou Daemon), sua extensão animal, como se a alma caminhasse a seu lado e ainda fosse possível dialogar com ela. O de Lyra, a personagem principal, chama-se Pantalaimon e pode assumir várias formas, mariposa, gato do mato, arminho, morcego, mudará conforme a necessidade. Quando ela crescer, sua personalidade tendo atingido uma forma mais definida, o mesmo ocorrerá com ele que assumirá uma identidade estável, sua melhor tradução.
Oriundo da mágica Oxford, Pullman lecionou lá como seus mestres Carroll, Tolkien e Lewis, mas encontrou um nicho de fantasia próprio. Conseguiu dar corpo novo a um recorrente aspecto do mundo mítico: as nossas metamorfoses como animal. Em muitas sociedades antigas os animais eram pensados como seres de outra cultura, não como natureza, tais como nós os concebemos. Imputam-lhes linguagem e credos, assim como atributos mágicos específicos a cada espécie. Conservamos algo dessa visão mágica, por isso o animal se presta para metaforizar o caráter e predicados que supomos ter.
É dessa ordem a relação que estabelecemos com nossos animais de estimação, cujo maior mérito é estimar o dono. Se são tratados como filhos, o são somente num aspecto da parentalidade, aquele no qual o filho é uma extensão do narcisismo dos pais: “‘Sua Majestade o Bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos.” , já dizia Freud.
O excessos de zelo com os animais de estimação parece ridículo aos que estão fora da cena. Mas quando problemas de saúde os afetam, seus donos apresentam um genuíno sofrimento, que aprendi a jamais subestimar. Da mesma forma, a morte de um animal de estimação arrasta consigo uma parte de nós, afinal, não dizem que os animais se parecem aos donos?
Por essa função de duplo que o animal ocupa, comemoro quando um paciente passa a estimar um para chamar de seu. Dialogar com essa criatura, adivinhar seus desejos e necessidades, é uma experiência amorosa que funciona melhor que muitos anti-depressivos. Se necessário use, não tem contra-indicações, além de que sempre é bom descobrir a cara de nosso Dimon. O meu é um Bulldog Francês ancião, cujos olhos enormes e dóceis mascaram uma natureza insubordinada. Meu número.
Ruído Interno
O silêncio é um raro privilégio, nosso ruído interno o afoga em ruminações!
A imagem do descanso, que evocamos fervorosamente nesta época do ano, equivale a um lugar calmo, via de regra silencioso, onde se escutam, no máximo, os pássaros e o mar. Ao contrário, o pesadelo das praias têm sido a música alta, o barulho das festas, dos alto-falantes de propaganda, do trânsito. Tanta gente fazendo barulho num ambiente de repouso parece uma guerra aberta contra o silêncio, talvez porque ele saiba ser bem assustador.
Quando cessa o tumulto fora, inicia-se uma sinfonia dentro da nossa cabeça. São ruminacões, pequenas ou grandes paranóias, desejos difíceis de admitir, fantasias de grandeza, obsessões ou ressentimentos amorosos, pendências que se enfileiram para ocupar espaço na nossa mente. Esmagados pelo peso dos pensamentos indigestos que carregamos conosco, recorremos ao barulho externo, que cala essas vozes inoportunas. Por isso tantos “Magais” e seus asseclas. Mas há outra forma de livrar-se dessas vozes: projetando-as em outros sons.
Reportagem da Folha de São Paulo (13.10.2012) narra um problema comum a muitos síndicos profissionais: as queixas dos ruídos dos vizinhos. Conforme eles, é muito comum que os condôminos fiquem obcecados com sons provenientes da casa dos outros, que alegam tornar sua vida um inferno. Entre os vilões prediletos estão passos, relações sexuais, choro de bebê e a idéia de que alguém está batendo no chão ou fazendo tumulto de propósito para enlouquecer quem vive embaixo. O síndico é convocado a escutar o pesadelo do morador queixoso e alguns têm passado a noite no sofá do sofredor, em busca de provas do crime.
Com assustadora freqüência, o morador diz estar escutando os tais terríveis barulhos sem que o síndico possa se solidarizar, pois não está ouvindo nada, e estamos falando de gente hipoteticamente normal, do tipo que não ouve vozes. Neste caso, trata-se de alguém que está colocando, como se fossem fora de si, ruídos que na verdade são internos: o barulho assustador do sexo dos pais, o choro do irmãozinho indesejável, a festa à qual nunca somos convidados, os passos provocantes de mulheres arrumadas para noite.
Para as crianças que um dia fomos, o barulho dos adultos pode ser tranqüilizador, mas também inquietante. Quem não lembra do prazer de adormecer no meio de uma reunião social dos pais, com o ruído das conversas nos embalando, o tilintar de talheres e copos, a música, garantindo que não estamos sozinhos? Ao mesmo tempo, apavorados, escutávamos as discussões do casal, imaginando o mundo a ruir, os arrulhos de seus amores, sentindo-nos excluídos, à mercê do destino deles, aparentemente tão poderosos. Essa, a de crianças impotentes, é a imagem que me suscitam os vizinhos acuados pelos seus sons imaginários.
Quando crescemos carregamos conosco esse acervo, uma trilha sonora que toca em nossa cabeça mesmo quando não é convidada. Por isso, o silêncio é artigo de luxo, acessível a poucos. Usufruí-lo depende de calar essas vozes que se empenham em abafar o barulho do mar. Eis algo bom de se ouvir.
Do tempo das águas turvas
Banir Lobato pelo racismo impede a necessária discussão sobre os preconceitos e injustiças de cada época.
“País de mestiços, onde branco não tem força para organizar um Ku-Klux-Klan é país perdido para altos destinos”. Publicado na revista Bravo, edição 165, o trecho acima faz parte de uma carta enviada por Monteiro Lobato para um destinatário tão entusiasta da eugenia quanto ele próprio. Antes de ser ventilado o racismo de Lobato, lembro de ter enfrentado um constrangimento pessoal por suas posições.
Tinha o hábito de ler suas histórias para minhas filhas pequenas. Nos deliciávamos ao vê-lo trazer para nosso quintal um exército de personagens clássicos. O ogro verde Shrek, nascido no século seguinte, foi muito elogiado por mixar e recriar os contos de fadas. Só que no Brasil já estávamos habituados a essas paródias graças à irreverência de Lobato. Peter Pan, o Gato Félix, anjos e seres mágicos da mitologia, da literatura e do folclore confraternizam no Sítio do Picapau Amarelo. Era empolgante essa mestiçagem na ficção, algo que aparentemente ele não aprovava na vida real.
Quando apareceram expressões inaceitáveis alusivas à Tia Nastácia, minhas filhas se revoltaram e perderam o entusiasmo pelo Sítio. Acabaram reincidindo, não há menina brasileira que tenha crescido alheia às reinações de Narizinho. Aliás, é bom lembrar que ela casou com o príncipe peixe do Reino das Águas Claras sem nenhum preconceito! Essa pequena crise doméstica deixou-me claro que hoje banhamo-nos em outras águas, bem menos turvas.
Nosso tempo não perdoa o racismo. Hoje é inaceitável a incoerência de valores entre vida pessoal e obra. A hipocrisia, embora eterna, perdeu espaço. Como valorizar algo feito por aqueles que a história condenou? É sempre bom lembrar que os campos de extermínio nazista derramavam sua fumaça fétida sobre as comunidades que viviam coladas a eles. Como era possível àquela gente conviver com esse horror? Condenando Lobato ao ostracismo, banindo suas obras, julgamos que nada se aproveita de alguém assim. Seria o mesmo que condenar todo o legado cultural da população da Alemanha e da Polônia pelo que promoveu. O julgamento é justo e necessário, mas separar o joio do trigo vale a pena. Principalmente por que as crianças precisam saber que o autor genial, assim como o cidadão vizinho ao campo, eram pessoas comuns como nós. Eles cometeram muitos erros e, mesmo hoje, nenhum de nós está livre de imitá-los. Covardia é furtar-se a esse debate com filhos e alunos. A propósito, ontem foi o Dia da Consciência Negra, data pensada para lembrar das atrocidades que somos capazes de cometer.
Charadas ambulantes
Que dizem os “loucos” da rua aos “normais” de dentro de casa?
Conheço um senhor para quem o essencial na vida se resume a um rádio de pilhas. Precisa acompanhar os noticiários para controlar as transmissões extraterrestres que falam a seu respeito. Isso é tudo o que quer da vida, não cobiça carro, apartamento de cobertura, TV com HD, Apple, Nike. Apreciaria ter com quem conversar sobre suas preocupações, isso basta.
Há aqueles cujos objetos preciosos cabem num saquinho de plástico que carregam sempre consigo. Dentro tem papéis rasgados, recortes de jornal, panos sujos, tiras, cadarços, alguma comida, pedaços de objetos. Cada uma dessas posses possui significado para seu dono, mas também pode ser descartada a qualquer momento. É gente sem nenhum apego.
Outrora ditos loucos de rua, hoje são considerados “portadores de sofrimento psíquico”. São também denominados de psicóticos e outras classificações científicas para os encarregados de sua saúde mental. Indiferentes à nomenclatura, andam por aí envoltos em sua nuvem. Gesticulam nas calçadas, discursam para seus fantasmas, o olhar nublado raramente pousa nos passantes. Sabem parecer zumbis: andando no meio dos carros sem notar o perigo. Seguido estão bêbados, o álcool lhes adormece o delírio, a fome, as dores.
Sempre queremos tantas coisas, temos desejos sempre maiores do que as posses, por isso não há nada mais incompreensível do que esses franciscanos sem fé. Até o trombadinha, o ladrão, parecem mais naturais do que o maluco indigente: com esses ao menos partilhamos os objetos de cobiça. Já o mendigo enlouquecido rouba-nos as certezas, indiferente ao que consideramos essencial. Ele é uma charada que nos assalta, uma provocação involuntária.
As vezes bate um desânimo, um cansaço de lutar tanto, até as vitórias ficam sem sentido. Não é raro, entre os ditos normais, que se fantasie com desistir de tudo, com uma vida minimalista. Temerosos dessa vacilação, exilamos os que nada têm, nada querem, nada guardam. Eles, fazendo parecer opcionais os caminhos que acreditávamos ser naturais, nos despertam angústia.
De que (não) necessita gente que veraneia na calçada? Que trama encenam suas vozes, as imagens do seu delírio? O que dizem esses que falam estranho na nossa língua? Pensamentos e atitudes inusuais estremecem o que consideramos óbvio. Toda diferença traz novos paradigmas: cegos ensinam a escutar, deficientes auditivos tornam os gestos mais eloqüentes. Loucos indigentes questionam nossa necessidade de acumular cacarecos. O encontro com diferentes formas de perceber e compreender é como viajar, sem avião, sem drogas. Recomendo.