Maduros, não caindo.
Com quantas palavras se faz um envelhecimento
Manchetes aleatórias de jornal: “idoso(a) é atacado por ladrões”, ou “idoso morre num acidente”, “idoso é suspeito de assassinato”. Para minha surpresa, lendo a matéria descubro que o idoso em questão tem ao redor de sessenta anos! Não estou pronta para me considerar uma idosa em dez anos.
Para um jovem repórter de vinte anos, tudo depois dos cinqüenta é a antecâmara do fim, então tanto faz. Não o recrimino, todos ficamos confusos para entender o que é mesmo um velho. Há o preconceito social, velhice é aquilo cujo nome não se deve mencionar, como se invocasse um mal. Mas também a confusão é propiciada porque a fase considerada “terceira idade” (quais são mesmo as duas primeiras, não há muito mais?) tornou-se muito longa e as pessoas amadurecem e fenecem de formas díspares.
É similar ao que ocorre na infância. Existem crianças de todos os tamanhos e diferentes graus de amadurecimento respondendo pela mesma idade. O crescimento passa por épocas de aceleração, outras de estagnação. Uns funcionam aos trancos, por arranques, outros numa linha contínua, há ainda os que desabrocham do dia para a noite. A juventude e a idade adulta são as épocas mais uniformes da vida em termos de imagem corporal. Desde que se “bota corpo” até que os “enta” começam a se empilhar somos muito parecidos. É difícil saber se alguém tem vinte ou trinta e tantos. Depois disso, ficamos desiguais como as crianças.
Existem sexagenários, septuagenários e octogenários de todos os matizes. Tirando um que outro achaque e alguns médicos a mais na rotina, há hoje nessa fase muita gente produtiva, independente, bonita. De mesma idade, há os que cedo se acovardam, se isolam, comem e dormem frente à televisão, vivem para a doença e esperam a morte.
Em respeito a esses cidadãos vividos e vivazes, e a nós mesmos, talvez devêssemos criar uma nomenclatura mais complexa para a dita terceira idade. Gostaria do direito às etapas. Começaria, aos sessenta, por “adultos tardios” (assim como existem os “jovens adultos”, em inglês usam “older adults”). “Maduros” também é bacana, dá idéia de finalmente estar no ponto. Depois, talvez “septuagenários”, ou “idosos principiantes”? Aos oitenta finalmente aceitaria ser considerada idosa, para que as limitações do meu corpo fossem respeitadas com direito à acessibilidade e uma rotina mais pausada. Os argentinos têm palavras simpáticas: “maduros” para os que recém começam a sentir o pior da idade, “gente grande” para os que já chegaram lá. Aceito sugestões.
A infância, cuja valorização social tem poucas centenas de anos, já possui uma série de palavras para descrever seus processos. O mundo nunca esteve tão velho, mas a maturidade ainda não recebeu a mesma consideração. Viver mirando-se numa patética juventude eterna nos impede de usufruir da experiência. Nomear, classificar, estudar, servem para aceitar e, quem sabe, usufruir da sabedoria daqueles que talvez tenham aprendido algo com a vida.
Confissões de uma centopéia
Confissões de uma centopéia: consumir é uma forma toxicômana de desejar.
Quando jovem adorava histórias de pioneiros americanos e sua vida difícil. A compra de um tecido, de uma fita, um instrumento, uma boneca, eram ocasiões raras e comemoradas. Aquela vida espartana, em cujas páginas gostava de me aninhar, parecia valorizar os objetos com os quais se convive, eles precisavam de muito menos coisas que nós. Sentia o aconchego da justa medida, de um tempo em que se era livre da necessidade de consumir. O vasto acesso a uma infinidade de objetos cansa: o que parecia possibilidade torna-se compulsão, é o feitiço que acaba dominando o feiticeiro.
Possuo muito mais sapatos do que necessito: fosse uma centopéia, estaria abastecida. Certa vez, discutindo o porquê dessa fascinação por calçados com uma amiga, ela observou: o sapato é a única peça do vestuário que mulheres de qualquer silhueta podem comprar! Serve para todas, sempre cai bem, sejamos mais ou menos afortunadas pela beleza. Se a democracia pédica é uma realidade, conclui-se que, mais do que de sapatos, gostamos é de poder comprar.
Homens trocam carros que ainda estão ótimos; os celulares são os sapatos dos adolescentes; crianças acumulam tantos bonecos ou carrinhos que se atrapalham para brincar; idosos são vítimas dos canais de compras. Uma amiga que vivia com os pais velhinhos tremia cada vez que soava o interfone, alguma encomenda estapafúrdia estava chegando!
Independente do número que se veste, idade ou sexo do consumidor, a publicidade sempre tem algo a nos oferecer. Sereias cujo canto nos fascina, comerciais e lojas parecem saber como traduzir nossos desejos, sempre tão difíceis de compreender, em objetos passíveis de comprar. Nunca sabemos bem o que queremos ser ou ter: a quem, como e quando amar, como trabalhar, como descansar, de quais prazeres usufruir, como fazer para ser admirados. A pergunta do gênio da lâmpada é sempre angustiante: quais seus desejos? Em termos de consumo, tudo isso fica fácil de definir: as crianças, os amigos secretos e parentes são instruídos a pedir algo em datas festivas, ocasiões em que felicidade e amor se materializam, parecem compráveis. Por isso nos frustramos tanto.
Consumir é uma satisfação que pede sempre mais. Como todas as ilusões, essa idéia de que, mesmo por um instante, é possível saber exatamente o que nos faz falta acaba sendo um alívio provisório. Mas como um vício, só funciona se não parar. Quando o objeto está em mãos, o vazio já se instala. Compras só adiam a insatisfação, que ruge mais forte quando provocada. O consumo é o ópio do desejo, entorpece o que realmente nos move. Enfeitiçados pelo canto das compras, ignoramos nossos verdadeiros desejos. Estes, só se expressam se tivermos coragem de enfrentar, com angústia, a pergunta verdadeiramente genial: afinal, o que você quer?
Moonrise Kingdom
Um conto de fadas para gente grande
Desta vez não há bruxas, ogros, príncipes malvados, ajudantes mágicos, animais falantes, fadas madrinhas. Mesmo assim o clima de Moonrise Kingdom (de Wes Anderson, 2012) é de conto de fadas. Na falta de personagens fantásticos, há muita aventura: perseguições, lutas e perigos, mas o verdadeiro combate é contra os ressentimentos e frustrações que impedem as pessoas de se amarem e conectarem.
Os heróis são duas crianças apaixonadas. É um amor ainda alheio ao erotismo, o que os move é a mútua compreensão contrastante com a surdez dos que os rodeiam. Os adultos evidentemente não entendem, muito menos aceitam, o caso da menina revoltada com o escoteiro órfão e enjeitado, ambos com 12 anos. Por isso fogem numa jornada pela ilha onde vivem, arrastando atrás de si um exército de escoteiros, a família da menina, o policial secretamente apaixonado pela mãe dela, a assistente social que quer internar o garoto. O casal leva consigo o que considera essencial: ele sua parafernália de escoteiro, garantindo virilmente bem estar e orientação; ela uma mala de livros de fantasia e uma vitrola com discos, que sabe usar habilmente para tranqüilizá-los e animá-los sempre que necessário.
Nas crianças admiramos a autenticidade, são espíritos ainda frescos, a vida só lhes oferece possibilidades. É como se o crescimento nos condenasse a uma estreiteza hipócrita, o que não deixa de ser verdade. A trama do filme aposta nessa idealização da infância, mas também nesse amor de principiantes. O amor costuma ser um dos nossos maiores investimentos, é nele que depositamos as maiores expectativas de plenitude e satisfação, as ilusões mais vãs. Do amor só queremos tudo.
Não levamos fé em muita coisa neste tempo sem utopias. Afogados em desesperança, tememos como nunca a solidão, esfinge que faz perguntas irrespondíveis. Apaixonar-se ou refugiar-se em sonhos, como fazem os artistas e as crianças quando brincam, são alívios fundamentais. Síntese de tudo isso, ao fugir em nome do seu amor, esses protagonistas infantis carregam a todos nós em direção aos tesouros afetivos que ainda conservamos.
Como já ocorrera em outros filmes de Anderson (Tenenbauns, Sr. Raposo, Darjeeling), os adultos são muito neuróticos, mas guardam certa graça com suas excentricidades. São atrapalhados mas esperançosos e nunca desistem uns dos outros. Esta, que considero sua obra prima, não podia ser mais otimista nesse sentido. Concordo com ele: somos bem maluquinhos, mas se conseguirmos nos conectar tudo pode acabar num final feliz. Mesmo que não seja para sempre.
Trilha sonora do passado
Somos nativos da sonoridade de nosso tempo, essa é nossa “Língua Mãe”!
No taxi, o rádio submete à vontade do motorista. Como o assunto era futebol, dissociei. Mas despertei do devaneio por força de um som inusual: a narrativa histérica, em espanhol, de um gol, reproduzida por um programa de comentários desportivos. Escutar um gol em minha língua mãe abriu um arquivo esquecido de lembranças e sentimentos ligados a esse som.
Vivia no Uruguai na década de 60. Seguido ia almoçar na casa de uma espécie de tio, cujo filho ao crescer tornou-se juiz de futebol. Eles acompanhavam as partidas com paixão, os gols eram praticamente uivados pelo locutor. Eu brincava por ali, à escuta dessa trilha sonora que mais de quarenta anos depois me tomou de assalto. O gol em espanhol reavivou a memória de todo um cenário: a imagem borrada da TV preto e branco, um maravilhoso aparelho de fazer soda, a detestável sopa fria de frutas, meu amigo Muki, o cachorro da casa.
São Paulo, para onde me levaram um tempo depois: devo aprender português. Repita: João perdeu o balão, João é um chorão. Lição impossível. Quem chorava era eu: – “nunca vou conseguir falar isso!”. Aprendi, crianças são permeáveis ao som das línguas, deixam-se colonizar. Agora, como canta Caetano em Língua, “adoro nomes, nomes em ã, de coisa como rã e ímã”. O português gaúcho que tive que falar depois me soava rude, hoje é meu tom. Minhas pátrias são os sons das minhas línguas.
Ao falar, letra e música são uma só. Ao ler, recitamos para nós mesmos com ritmo, emprestamos cadência ao texto. A memória auditiva é uma linha direta para o passado. Uma vez reencontrados, os acordes das palavras produzem arrebato, emoção, memórias, como naquele gol. Pelos ouvidos somos seqüestrados para um tempo que não pensávamos que ainda podíamos sentir. Mesmo que não se tenha mudado de país, de língua, possui-se uma “língua mãe”, constituída pelas vozes dos parentes, pelas propagandas antigas, as músicas da época. As expressões verbais da infância e da adolescência soam mais eloqüentes.
Somos datados: o som da língua é nosso carbono 14, só as vozes do passado são sentidas como próprias, autênticas. Essa é uma das dificuldades da longevidade de que nos beneficiamos hoje: como viver tantos novos tempos, que soam tão diferente, sem sentir-se estrangeiros?
Dias atrás, uma amiga falou ao telefone uma expressão em ídiche que não escutava desde que perdi minha avó. Outra avalanche de memórias, arrematadas por mais um som: a gargalhada gostosa daquela senhora que nunca terminava as piadas. Ríamos era dela, que ria às lágrimas e sufocava o final.
De quem é?
Antes da erudição, a entrega à arte. Antes ser curioso do que inibido!
Um grupo de jovens em viagem pela Europa fez um experimento cômico: no Louvre, escolheram aleatoriamente uma obra obscura, uma paisagem sem graça, irrelevante se comparada com outras pinturas importantes daquele museu. Admiravam explicitamente o dito quadro, fotografando-se em frente a ele e pedindo aos passantes que os retratassem a seu lado. Não demorou muito para que se criasse uma pequena comoção. O quadro teve seus quinze minutos de fama extra graças ao grupo de admiradores falsários. Várias pessoas se reuniram em torno dele e um guia atônito foi chamado a explicar a pintura de paisagem, pela qual costumava passar em branco.
Como se vê, o valor artístico também é uma questão de prestígio, que o diga o sempre nervoso mercado das artes. As gafes são inevitáveis, pois somos incultos crônicos. A vida é curta para dar conta de todo o acervo disponível para ler, escutar, assistir e olhar. Além disso, nem sempre sentiremos empatia pelas obras consideradas “primas”.
Se não formos críticos, estudiosos ou pesquisadores de qualquer uma das sete (ou mais) artes, não precisamos sentir vergonha de nossos julgamentos. Não é uma questão de etiqueta, é de estética: o “gosto”, “não gosto”, pode e deve ser levado em conta. Por outro lado, o acesso regular à arte costuma tornar a categoria do “gosto” muito mais ampla. Certamente viveríamos num mundo muito melhor se as oportunidades de sensibilização para o belo ou para o diferente estivessem ao alcance de todos.
Meu marido gosta muito de música, já meu ouvido é menos que amador. Prefiro que escolham para mim. Aproveito muito o ambiente que cada som cria, encaro a trilha sonora como uma oferenda do outro. Porém, quando ele me mostra uma música, sou reincidente num hábito que o chateia: antes de me entregar aos acordes, pergunto: “o que é? Ou: “de quem é isso?”. Fora as preferidas que sei de cor, raramente reconheço uma música, o que me envergonha bastante. Ele, paciente que é, me responde sempre: “primeiro escuta, depois te digo o que é!”. Sua ressalva é compreensível, pois antes do prazer da música, antecipo a preocupação com meu prestígio intelectual. Azar o meu, se fosse menos insegura aproveitaria ainda mais as audições caseiras.
No passeio ao museu, sempre vale a pena se informar sobre as obras que vai se ver, mas por que não confiar nos sentidos? Entendo o pessoal que parou na frente da paisagem obscura, usaram o movimento do público como guia, por que não? Depois do encontro com o quadro, o olhar define a paixão, ou não. Não importa como nos deixemos levar até ela, deixar-se arrebatar pelo prazer de uma obra tem que ser mais interessante que a erudição vazia. Em primeiro lugar simplesmente pare, olhe e escute! Depois, aprenda.
A “boa”morte
Tenho mais medo de morrer do que da morte: sobre Testamento Vital.
Perdi uma amiga, partiu antes de ficar velha. Ela deixa marcas importantes em sua área profissional, uma legião de amigos órfãos de sua presença, uma vida plena, interrompida por um câncer fulminante. Mal teve tempo de passar pelas torturas da doença, viveu seus últimos tempos ignorante do mal que implacavelmente a corroía. Graças a isso, viajou, estudou no exterior e se divertiu. Sentia vagos mal-estares estomacais, que atribuía à alimentação. Quando seu trágico destino foi revelado, já era tarde para qualquer providência, que, se tomada antes, tampouco seria diferente. Ela teve uma, sempre indesejável, boa morte. Se é possível desejar algo nesse território, também gostaria de partir assim, tendo tido o direito de viver plenamente até o fim, como ela.
Nesse sentido, celebro a resolução do Conselho Federal de Medicina, que se pronunciou sobre os termos do “Testamento Vital”. Trata-se do direito de deixar estabelecidos os limites a respeito dos procedimentos aos quais não desejamos ser submetidos na fase terminal. A morte deveria pertencer a seu protagonista, mas infelizmente, não existe momento de maior entrega.
Duvido que exista alguém que não tenha fantasiado sobre seu enterro. Quem não gostaria de ser uma mosca para assistir à própria despedida? Na derradeira celebração, estaríamos em condições de avaliar a veracidade das lágrimas, estimar nossa importância para os outros. É também oportunidade de, por que não, deixá-los culpados, se por acaso isso nos satisfaz. Dizem que a mãe judia vai mandar gravar em sua lápide: “eu disse que não estava me sentindo bem”. No enterro, nosso epitáfio está na boca de todos, cada presente oferece uma frase que nos definia, ou uma memória marcante do convívio, dirá em que lhe faremos falta. Enfim, parece o momento em que nossas maiores perguntas estarão por fim respondidas e não estaremos lá para ouvir. Pena.
O problema é que até esse momento, em que nosso ser transforma-se nas palavras dos que permanecem vivos, precisamos passar pela dura transição de morrer. Morrer costuma doer. Dói sentir-se esvair, é absurdamente triste ver-se partir, dói o corpo que colapsa. Tenho mais medo de morrer do que da morte.Talvez, se minha amiga tivesse tido tempo de escrever seu testamento vital, não escolheria outros termos para sua partida.
Há pouco o mundo assistiu chocado ao suicídio do diretor de cinema Tony Scott, que pulou de uma ponte, dizem que após constatar que possuía uma doença incurável. Abisma-me semelhante ousadia, não só relativa ao ato em si, mas também de assumir essa posição frente aos seres queridos. Morrer é como sair de uma festa, cedo é constrangedor, tarde é melancólico, buscamos a hora certa e sempre ficamos com a sensação de ter errado o momento. Nunca faria um ato como o de Scott pois o efeito dramático sobre os que ficam é avassalador, também é preciso zelar pela dor deles. Quando chegar a hora, só peço que me poupem de torturas desnecessárias e me deixem partir. Essa é minha vontade e creio que a de tantos.
Carnaval de primavera
De que tradição o povo gaúcho pode se orgulhar?
Os historiadores não se cansam de lembrar que a dita tradição gaúcha, o gaudério de bota, bombacha, lenço no pescoço, sorvendo sua cuia de chimarrão, não passa de uma brincadeira cultural. Longe da verdade histórica, o bravo guerreiro, tão celebrado a cada setembro, é a fantasia glamourizada de um peão que nunca existiu.
Homens e mulheres vivem nos Centros de Tradições Gaúchas (aliás, espalhados por todo o país), no Acampamento Farroupilha e nos desfiles comemorativos do 20 de setembro, uma espécie de carnaval de primavera. Fantasiados de gaúcho e prenda, fazem danças típicas, acrobacias eqüestres, e festejam por vários dias o mútuo reconhecimento. Depois falamos da longa duração e da entrega popular aos orgiásticos e ostensivos carnavais baiano ou carioca, como se os prolongados festejos sulistas nos ocupassem menos. De qualquer modo, durante essa época os nativos sentem-se felizes e tranqüilos, assim fardados e comportando-se conforme os clichês da personagem. Umas poucas insígnias resolvem as inquietudes de que tanto padecemos.
Fora da festa, a vida é mais hostil: o papel viril e feminino não cessam de ser questionados, a sabedoria dos pais não vale um vintém e, diferente do Patrão do CTG, ninguém ousa dizer aos mais jovens o que vestir, cantar e pensar. No baile à fantasia tradicionalista, basta envergar o traje regulamentar e todas essas incertezas são banidas, gaúcho corretamente fardado é macho, prenda com saia de armação e flor no cabelo é mulher. As dúvidas do século XXI são resolvidas com o imaginário do XIX e estamos conversados.
“Não há como ser original, se não for com base em uma tradição”, escreveu o psicanalista Winnicott, aludindo ao fato de que partimos de uma base, que nos alicerça, justamente para transcendê-la. Nesse sentido, é sempre bom lembrar que, apesar do aspecto tranqüilizante da festa regional, nossa cultura só mostrará sua riqueza enquanto for tributária do maior acervo de referências que pudermos adquirir. Jorge Luis Borges, que muitas histórias de homens do campo escreveu, já dizia que “nossa tradição é toda a cultura ocidental”, “nosso patrimônio é o universo”, e que “não podemos aferrar-nos ao argentino para ser argentinos: porque o ser argentino é uma fatalidade e nesse caso o seremos de qualquer modo”.
Ele propunha, como contraponto, que “se nos abandonamos a esse sonho voluntário que se chama criação artística, seremos argentinos e seremos, também, bons e toleráveis escritores.”. O mesmo vale para nós, gaúchos. Só para lembrar que nosso movimento tradicionalista organiza uma boa festa popular, mas a arte e a cultura das quais nosso povo pode se orgulhar são muito maiores do que isso.
Frankenstein on drugs
Sobre o filme “Legado Bourne” e o vício em extrapolar limites
O cara não se sente à altura do cargo, teve a sorte de ser selecionado, mas se acha infra-dotado. O trabalho é insano, seus colegas também estão alucinados, todos fazem coisas além das suas capacidades, superar limites é o mínimo que se espera. Conhecem-se pouco, para a organização são números, importante é o sucesso da missão. Só há um jeito de garantir a eficiência: drogas. Consumidas garantem um desempenho perfeito. Os outros também usam, todos temem a abstinência, sem elas nada feito.
O discurso acima serviria para o mundo dos negócios, do entretenimento, da vida social, mas no caso trata-se de um filme, no qual agentes americanos, a serviço de missões secretas, são submetidos à manipulação bio-química. É Legado Bourne, o quarto filme da série inspirada nos livros de Robert Ludlum, agora sem o charme de Matt Damon, mas ainda divertido. A novidade desse episódio é a conexão das capacidades superlativas do herói com as substâncias que lhe são administradas, o que o torna um dependente químico. A corrida toda, que é a luta da criatura contra o criador, característica dos episódios anteriores, agora circula em torno desses remédios. O herói atual sonha em libertar-se deles, mas não sem antes garantir o efeito permanente dos poderes que lhe emprestam.
Os filmes sobre o agente Jason Bourne são variações sobre o tema da história de Frankenstein. Desde o monstro de Mary Shelley (1818), surgiram muitas versões dessa criatura.Todos eles, a exemplo dos Replicantes de “Blade Runner”, são fruto de um sonho transformado em pesadelo. O enfrentamento entre cientista e sua obra, a criatura, é sempre terminal e o arrependimento pela empreitada determina a eliminação da experiência. Victor Frankenstein recriou a vida, reanimou tecidos mortos e horrorizou-se com seu ato no mesmo momento em que seu monstro abriu os olhos. No caso dos Replicantes, de vários robôs da ficção e destes agentes secretos turbinados, produzem-se seres de potência incontrolável, que pecam por ganhar autonomia e desobedecer. Mas o importante nesta série de reaparições do mito, é investigar as novas formas que ele assume.
Neste caso, o que a criatura quer é eficiência. Para tanto, precisa das drogas da eficiência, legais ou ilegais, que fazem parte da nossa cultura. Na missão de vencer, distração é pecado, os outros são inimigos ou rivais, limites são para os fracos. Se falhar, a fila anda, você está morto. Hora de reler Frankenstein, pois a história começa com um aviso: a obsessão por ignorar os limites torna-nos seres assustadores, irreconhecíveis aos próprios olhos.
Meu pai e os monges de Myanmar
decifrando a última mensagem…
No hospital, no início da derradeira jornada, meu pai me deixou uma incumbência. Ainda na emergência aguardando diagnóstico, eu procurava acalmá-lo. Com o pensamento confuso ele tentava tomar providências práticas, dinheiro, seguro de saúde. Entre as últimas preocupações que conseguiu enunciar ficou a pergunta, que fez com olhos já foscos: “e os monges de Myanmar?”. Frente à nossa impotência, à mercê do corpo que falia, só me cabia responder: “Deixa que cuido deles!”. Fiquei devendo essa parte e, como sempre, quando se perde o pai, tantas outras.
Era agosto de 2007, fazem agora cinco anos. A notícia candente da ocasião era o engajamento dos monges budistas nos protestos pela situação cronicamente precária desse minúsculo e instável país no sul da Ásia. Era tocante a imagem daqueles homens pacíficos, em suas vestes laranjas, enfrentando as potências armadas.
Meu pai vivia o noticiário como algo pessoal. Uma posição compreensível para um sobrevivente da Segunda Guerra. Ele teve a família destruída, o pai e o irmão assassinados em Auschwitz, pela má avaliação política que muitos judeus húngaros fizeram. Subestimando a ascensão do nazismo em seu país, deixaram de fugir a tempo. Dali em diante, a conjuntura nunca mais o pegaria com as calças na mão, espero ter aprendido isso com ele.
Lembrei de tudo isso ao ler o recentemente reeditado livro de memórias de Philip Roth: “Patrimônio: uma história real” (Companhia das Letras, 2012), que narra a etapa final da sua vida com o pai. Ao saber do tumor que mataria Herman Roth, então com 86 anos de idade, o filho Philip foi incumbido de dar-lhe a notícia, ou pelo menos as informações necessárias para conduzi-lo à consulta com o neurocirurgião. A caminho desse encontro, o escritor errou um cruzamento e foi, num lapso, parar no cemitério onde repousava o corpo da mãe. Conduzido pelo inconsciente, desceu, contemplou o túmulo que receberia o pai e ponderou… sobre a vida! A sobrevivência quase birrenta do seu pai – “Ele e a vida vinham juntos de muito longe”- sua compulsão a narrar o tempo todo – “Você nunca deve esquecer nada!” , sempre dizia – marcaram Philip Roth, que tampouco pôde deixar de contar histórias para viver.
Também aprendi que, mais que a morte, é a vida a grande surpresa. A mensagem final do meu pai foi que para mantê-la é preciso olhar em volta, entender o que se passa. Observando o mundo, seus políticos, soldados e os monges de Myanmar, talvez possamos sobreviver e fazer alguma diferença. Disso posso cuidar.
Um lugar para nascer
Sentir-se em casa para dar a luz é imprescindível, mas não necessariamente a domicilio!
Tenho longa história de fascinação pelo parto, por isso queria opinar num assunto que atualmente tem suscitado polêmica: o parto domiciliar. Sou contrária à transformação do nascimento num momento artificial. Sofro com a atual alienação das parturientes do processo, parto não é cirurgia eletiva. Porém, fico intranqüila que o parto ocorra longe dos recursos de um hospital, pois são muitas as ameaças que pairam sobre a dupla mãe-filho no primeiro encontro.
Quando jovem tive várias oportunidades de acompanhar partos, primeiro como curiosa insistente num hospital público, após como estagiária no Hospital Presidente Vargas, onde testemunhei um trabalho exemplar. Não estive lá tantas vezes porque acho o parto um espetáculo fácil. O nascimento é algo demasiado estranho, beirando o traumático, que precisei ver, muitas vezes, para assimilar sua realidade e encanto.
Como um ser humano acontece, do nada ao tudo, dentro de um ventre? Inaugura-se com a loteria da fecundação, o feto segue um programa próprio de transformações, sugando os recursos da futura mãe, sem com licença nem obrigado. O parto, irruptivo, também impõe-se quando for sua hora. O corpo materno se esgaça, a passagem tem que se abrir, quer seja pelos músculos ou pelo bisturi. No ápice de um parto normal, o topo da cabecinha cabeluda se anuncia, surgida de um orifício onde não se acredita que possa passar nada, eis alguém começando seu caminho pela vida!
Hoje não estamos muito preparados para grandes emoções como essa, queremos só as planejadas, susto de parque de diversões basta. Frente aos acontecimentos fortes, não sabemos bem o que pensar, tememos nunca estar à altura. Preferimos planejar, controlar o destino. Santa ingenuidade.
Esquecemos que o parto, assim como a gestação, sabem seu caminho pelo corpo, podemos confiar nisso muito mais do que se ousa atualmente. Marcando cesarianas desnecessárias, muitas mulheres deixam de viver o protagonismo a que teriam direito. É outro o envolvimento de uma parturiente usando seus movimentos, seus músculos, para colocar o filho no mundo, em vez de vê-lo ser-lhe retirado, imobilizada, inerte, cortada.
Por outro lado, também trabalhei com crianças com problemas de desenvolvimento, muitas delas seqüeladas por partos mal-atendidos, gestações mal-acompanhadas. Uma UTI neo-natal é decisiva quando os contratempos se avizinham. Vi mais de uma vez mães e bebês à beira da morte, por complicações imprevisíveis, que se salvaram por estarem em um hospital.
Quero para minhas filhas, amigas e pacientes, para todas as mulheres que amo, o direito a serem cuidadas num hospital. Mas também a que sejam sujeitos atuantes, presentes de corpo e alma ao nascimento dos seus filhos. Participar não significa marcar data, contratar equipes de filmagem, mas sim a possibilidade de acreditar na própria força, parir sem alienação. O parto humanizado é uma antiga e valiosíssima reivindicação, mas não em casa.