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Voyeur de leituras

Espiar o livro alheio é indiscreto, mas irresistível!

No ônibus, tal era meu empenho em descobrir a identidade do livro que uma moça estava lendo que pegou mal. Num solavanco, quase caí sobre ela. Imagine a posição esdrúxula que a missão requeria. A pobre vítima da ostensiva curiosidade fechou o livro, colocando a mão em cima da capa (maldita!), e proferiu um ofendido “com licença!”. Percebera a indiscrição, reagia como se estivesse lhe espiando o decote. Apesar da natural resistência, o nome do livro acabou sendo descoberto: era evangélico. Foi um banho de água fria. Senti como se tivesse sido expulsa de uma comunhão imaginária, composta pelos que navegam no mesmo universo de fantasias. As escritas religiosas não me tocam, a empatia com aquela leitura era impossível. Uma tristeza, meus esforços haviam sido inúteis.

Sou capaz de ridículos estratagemas para descobrir qual é o livro que alguém esteja lendo em um local público. A capa contém a chave desse mistério, desvela a alma do leitor, é o acesso para um acervo potencialmente partilhável. Quem lê um livro que conhecemos deixa de ser um desconhecido. Porém, essa curiosidade abusada é uma imperdoável profanação da intimidade. Eu devia, como psicanalista, suportar estoicamente a introspecção do próximo. Só me revelariam seus pensamentos quem quisesse.

A leitura é uma intimidade portátil, podemos carregá-la na bolsa, no bolso. É uma experiência onírica controlável, nesse sentido melhor do que as fantasias rebeldes dos sonhos noturnos. Se empolgante, nos possuirá, mas também podemos abandoná-lo para divagar, assim como postergar o clímax. Não é por acaso que a leitura foi acusada de substituta ou incentivadora do onanismo. Sim, trata-se de um prazer solitário: o de embalar sonhos.

Um livro pode livrar-nos do ambiente tenso de uma sala de espera, da imobilidade angustiante da viagem ou do vazio de uma conexão. Na cafeteria, ele mantém afastados os conversadores indesejáveis. Livro é o antônimo de um cachorro, quem sai à rua com seu animal de estimação tem papo garantido. Ao contrário, leitura é refúgio, defensora da solidão aprazível. Por que, então, essa deselegante intromissão na leitura alheia?

Meter-se no livro do outro é voyeurismo, do tipo clássico. O mesmo que leva a criança a espiar seus pais, ou que alimenta a pornografia. O prazer alheio observado ou imaginado, revela e ensina, o voyeur viaja na cena, imagina-se parte dela. De forma segura, já que o espião se protege no anonimato. Olhando, aprendemos os caminhos que o desejo almeja percorrer. Da mesma forma, descobrir a obra que alguém lê é participar da sua cena imaginária, de suas fantasias, adivinhar seu sonho acordado. Não passa de uma devassidão pueril, mas a moça tinha razão de ficar furiosa: é uma desagradável invasão de privacidade. Incontrolável, no meu caso.

Meninas de Ouro

Vontade de ter tido um melhor relacionamento com os esportes…

Nossos gladiadores do futebol encontraram prata, o que não é pouco, mas a medalha dourada deste sábado ficou por conta do voleibol feminino. Um pequeno grupo de jovens mulheres em campo, numa sintonia de olhares, braços em vez de pernas, entrosamento total, um fascinante sentimento de equipe. Um jogo lindo, que me trouxe evocações interessantes.

Entendo os esportes até por aí. Assistindo, irrito a família com perguntas impróprias. Como jogadora escolar era garantia de ponto para o adversário. Mão furada total, era a bola que me achava e não o contrário. Numa carreira de catástrofes esportivas, o vôlei era a modalidade em que mais me doía ser tão lesa. Uso óculos, passei a muito custo do metro e meio. Apesar de pouco dotada pela natureza para ele, esse é meu esporte não praticado favorito e lamento as partidas que não joguei.

Um time de vôlei é como um malabarista de vários corpos, as asas da bola são os braços que chegam em auxílio uns dos outros. O ponto é fruto da precisão do olho do gavião caçador, desce fulminante sem tempo de fuga para a vítima. Só que o vôo dessa ave é mantido por esses muitos braços que funcionam a um só gesto. Apaixonados pelo futebol poderiam me dizer que um gol funciona porque foi armado por muitos toques, vem de várias pernas os passos que o levaram lá, o que é verdade. Mas o choque dos adversários no mesmo campo, a marcação, evocam mais a guerra do que o equilíbrio coletivo da bola aérea do vôlei.

Sequer pratico a modalidade esportiva de poltrona, em tempo de olimpíadas incomoda semelhante alienação, entristeço com as opções que não fiz. Em verdade, as que fiz, pois tomei a inépcia para os esportes como estilo, fiz dele um tipo, louvei-lhe a personalidade. Convém lembrar: inabilidade não é destino. Sempre é possível praticar em casa, sovar a ponta dos dedos até que aprendam a dizer à bola o que fazer.

O fracasso às vezes é cultivado, vira parte preciosa da nossa identidade, também exige treino e dedicação. Não nego que dons existem, é bom para o esporte ser alto, forte, ágil, ter olhos rápidos. Porém, o corpo humano é muito plástico. Não há milagres, mas a imagem corporal tende a traduzir um roteiro inconsciente que traçamos para nossa vida. Fiquei com pena de não ter aprendido o suficiente para brincar, participar do jogo sem dar tanto prejuízo à equipe. Por enquanto, só me resta agradecer às atletas olímpicas pelo resgate da adrenalina da beira do campo, torcendo pelas amigas. Torcer devia ser também modalidade olímpica, pois vale ouro.

Numa velha história, um projeto de vida

um reencontro surpreendente: conseqüências inesperadas de uma leitura infantil

Há muito esperava esse reencontro, mas nunca o fazia acontecer. Afinal, pedi o exemplar em um sebo virtual. Estava curiosa, mas foi sinistro, constrangedor até. Fazia quarenta anos que não tinha notícia dessa história, mesmo considerando-a como minha predileta. Trata-se de “Uma casa na floresta”, o primeiro volume dos nove escritos por Laura Ingals Willder, contando a vida difícil dos pioneiros norte-americanos, a sua própria. Li a série no início da puberdade, numa biblioteca, nunca tive os livros embora os adorasse.

Quando o pacote chegou, tão pequeno, pensei ter me enganado: vai ver que pedi uma edição adaptada. Nada disso, “texto integral”, dizia na capa. Na lembrança era maior. Além disso, nesse relato não havia nada de encantador, o livro era chato. A surpresa era outra. Aquelas páginas eram como uma carta que houvesse enviado para mim mesma do passado. A missiva tinha data para chegar e era agora, com as filhas crescidas. Ali estavam descritos, prescritos, sonhos do passado que realizei sem clareza de que os tinha.

A menina Laura e sua irmã Mary viviam numa cabana de troncos na floresta. Há intermináveis páginas sobre o cotidiano severo, de escassez, rezas, obediência, chatices domésticas identificadas com aconchego. O pai caça para alimentar a família, o preparo da carne salgada e defumada e das conservas para atravessar o inverno. As brincadeiras e o calor da casa quando a neve chega, a boneca de pano, um presente inesquecível. A animação fica por conta do relato das aventuras do pai, que conta da floresta onde enfrenta panteras, ursos e lobos. Dentro de casa proteção, fora o perigo.

Essa vida rudimentar meticulosamente narrada evoca a nostalgia de algo que na verdade nunca existiu: uma família antiga e amorosa, onde há um pai poderoso que se ocupa das filhas mulheres, veja só. Um verdadeiro “Refúgio num mundo sem coração”, como Christopher Lasch, em seu livro com esse nome, descreveu o ideal em que se inspira a família nuclear.

Sem lembrança consciente do livro, nem dos seus efeitos em mim, construí uma família com várias alusões a essa história. Dei à minha primogênita o nome da autora e protagonista da obra, minha porta sempre teve um bulldog, como o velho Jack da saga, montando guarda e minhas duas filhas cresceram ouvindo histórias sentadas no colo do seu atencioso pai. Errantes pelo mundo, sempre nos resta a nostalgia de um ninho imaginário. É isso que queremos para nossos filhos, eu bem que tentei. Como se vê, leituras infantis são perigosas, no bom sentido.

01/08/12 |
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Coringa. o vampiro de Denver

O Coringa é uma carta cuja identidade depende do jogo, os assassinos como o do cinema em Denver também são personagens miméticos. Que jogo revela a população civil americana fortemente armada?

Os filmes de super-heróis têm padecido da síndrome das origens: heróis e vilões tiveram seu passado investigado e com Batman não foi diferente. Corretamente, o cinema bate na tecla de que somos fruto da nossa história. O caso do atirador de Denver, que matou 12 pessoas durante a estréia do filme Batman, também nos leva a tentar compreender suas razões, a origem da sua deturpada personalidade.

Teóricos apressados, assim como a ficção, adoram encontrar traumas. De fato, existem traumas, mas não há uma forma unívoca de reagir a eles, tudo depende do que fizemos a partir do que a vida interpôs em nosso caminho. No caso de Holmes, o atirador da vez, não há traumas visíveis. Ele era reservado, mas não sofria bulliyng. Americano, branco, estudante de medicina e neurociência, bem apessoado até, eis um monstro que foge aos nossos clichês.

Na falta de conjecturas melhores, Batman, o super-herói do filme, foi levianamente acusado de estar na origem da motivação do evento, e o assassino reforçou essa tendência ao comparar-se ao vilão Coringa. Por que não se teve tanta urgência em questionar a paixão norte-americana por armas? Não há como esquecer que Holmes vive nos EUA, um país onde a população convive com um arsenal de pólvora e testosterona sem aplicações práticas, um campo minado. Dentro de casa, armado até os dentes, qualquer medíocre, obscuro e fracassado pode se imaginar soldado de uma guerra imaginária, um cowboy à espera dos bandidos e sair atirando. Por que somos tão condescendentes com a realidade das armas e severos com a fantasia do cinema?

Num baralho, o Coringa é uma carta-camaleão. Convém tê-la, mas só vale no contexto, assumindo a identidade em função das que a acompanham. Se Holmes está se mimetizando, vale pensar com o quê. Coringa é um bom nome de vilão para esses psicopatas, pois são como vampiros: alimentam-se da morte, migram do anonimato para a fama a partir das vidas que suprimem. Atiradores malucos, assim como assassinos de celebridades, ganham vida eterna na mídia. Alguns sugam a fama daqueles que matam, como os assassinos de Kennedy e Lennon, outros apostam no atacado das vidas inocentes. São modos vampirescos de angariar reconhecimento na sociedade do espetáculo. A personagem Kevin, de um livro e filmes recentes sobre um desses atiradores de escola americanos, agradecia a seus crimes a fama alcançada, pois ninguém iria falar dele se tirasse boas notas em matemática.

Mas de que “traumas” são tecidos? Quase na totalidade homens, esses assassinos que se tornam personagens da mídia talvez reflitam uma fragilidade contemporânea nas identificações viris. Quanto mais rudimentar uma personalidade for, mais ela vai precisar de identidades alheias, totalitárias e violentas para se mimetizar. Provavelmente é para alimentar fantasias de virilidade, de reconhecimento social e de controle sobre a morte que tantos homens anônimos e insignificantes querem ter seu arsenal doméstico. Se as cartas são essas, não é difícil saber a cara que o Coringa terá.

A história do macaco

Sobre a paranóia nossa de cada dia, essa que nos cega para a solidariedade e os bons encontros!

Um sujeito dirige de madrugada por uma estrada erma quando descobre que está com o pneu furado. Pior, está sem macaco. Desesperado, enxerga uma luz ao longe. Deve ser uma casa, pode pedir ajuda. Começa a caminhada rumo à salvação, quando lhe ocorre que o julgarão inconveniente por acordá-los àquela hora, sendo um estranho e pedindo um macaco. Talvez atirem pensando ser um ladrão. Pode estar interrompendo um casal que namora e irão odiá-lo. Segue seu rumo imaginando cenários terríveis e que irão lhe negar o pedido, mas mesmo assim bate na porta. Quando ela se abre, nosso viajante já está furioso com os moradores e convicto que irão maltratá-lo. A primeira coisa que ele diz é: “Quer saber de uma coisa, pegue esse seu macaco e enfia…..!”.

Esta é uma anedota antiga, mas muito bem nos ilustra. Quantas vezes ocorre estarmos precisando de uma mão amiga e supomos antecipadamente que nos será negada. Ao invés de pedir ajuda, agredimos a quem nos quer bem, mal interpretamos seus atos, convictos de que traduzem rejeição ou má vontade.

Quando infelizes, olhamos tudo e todos com as lentes do mau humor e do ressentimento. Alguém deve ser culpado pela tristeza que sentimos. Sem perceber, odiamos todo mundo. Por que, então, não haveriam eles de sentir o mesmo em relação a nós? Melhor ainda, preferimos pensar que são os outros que odeiam. Aos próprios olhos, somos anjos que só querem o bem do próximo. Atribuir seus sentimentos ao outro é uma “projeção” – sentir que vem de fora o que está dentro – é assim que os psicanalistas chamam esse mecanismo. Considerar-se alvo de intenções ruins por parte dos outros não deixa de ser uma paranóia, forma da loucura que se serve fartamente da projeção.

Paranóico é o sujeito que acha que o mundo conspira contra ele. Nessa visão delirante, tudo gira em torno de si. Ele possui a certeza de ser o umbigo do universo. Alguém tão importante só pode ser a reencarnação de Jesus, John Lennon, Joana D’Arc ou Napoleão, conforme o gosto do freguês e o momento histórico. Dizemos que ele tem delírio de perseguição, pois de fato trata-se de alguém sempre alerta, que precisa ficar esperto para não sucumbir.

Mais triste é dar-se conta da paranóia cotidiana entre aqueles ditos normais. Na maior parte do tempo os outros não querem nosso mal, tampouco nosso bem, simplesmente estão ocupados com outra coisa que não nossa digníssima pessoa. Os outros são como os moradores sonolentos daquela casa, até abrir a porta e escutar o que queremos, não estão nem aí para nós. Mas, uma vez informados dos nossos pedidos, necessidades e queixas, em geral há em volta gente boa com quem contar. Teremos o macaco de que precisamos e, não duvido, ajuda para trocar o pneu.

Ruiva indomável

Sobre o filme “Valente”, aventuras da identidade feminina.

Com indescritível assombro, pois não há experiência tão mágica quanto o parto, dei à luz a uma princesa ruiva. De signo de fogo, me disseram. Signo ou não, mostrou-se um fato, desígnio de suas cores. Poucos anos depois, uma vigorosa morena já saiu opinando de minhas entranhas, assim segue pela vida. Os anos passam, a vida das três mulheres que somos se entrelaça, nos transformamos. Meus cabelos brancos evidentemente cobiçam o viço das belas jovens que aqueles bebês se tornaram. Mas há muito mais que uma bruxa invejosa na alma das mães de mulheres contemporâneas.

Na dúvida, assista “Valente”, um filme de animação infantil. Se quiser indagar o futuro, busque seus sinais no rumor do cérebro daqueles que hoje ainda são crianças. Os que tentam cativá-las com produtos culturais já não são crianças, mas certamente usam a bússola dos desejos delas como roteiro de suas tramas, são atentos a infância como poucos. Novos tempos pedem novas ficções, novas mulheres precisam de novas heroínas. Temos testemunhado isso com a transformação da tradicional Branca de Neve, de Rapunzel e outras, assim como o surgimento de novas formas de ser princesa.

Trata-se do recém estreado filme dos Estúdios Disney, com roteiro elaborado por duas mulheres. Nascida da linhagem de princesas de cabelo vermelho, que já tinha em Ariel (A pequena sereia) e Fiona (Shrek) boas representantes, a jovem princesa Merida é uma dona de indomável melena ruiva e cacheada. Aliás, em Portugal o título original do filme – “Brave”- foi traduzido para “Indomável”, expressão que melhor lhe cabe. Seu espírito é como seus cabelos, prefere o arco e flecha às lides domésticas, é exímia nessa arte. Em casa, se compraz nas narrativas de lutas do pai, um gigante ruivo que perdeu sua perna no combate com um urso. Ela é uma legítima filha de seu pai, partilha-lhe as cores e os prazeres viris, reconhece-se melhor nele do que na doçura severa e contida da mãe.

Chegada a idade casadoira, vê apavorada a chegada dos herdeiros dos clãs aliados do reino, candidatos à sua mão, dos quais nenhum remotamente se assemelha a um príncipe desejável para seu gosto. Rompendo com a tradição, para desespero da mãe, ela conquista a própria mão no torneio de arco e flecha, fugindo para a floresta, coberta de ódio pela tentativa desta de submetê-la ao detestável destino de esposa.

Eis então, numa série de reviravoltas, que ela inverte vários papéis das princesas dos contos de fadas tradicionais. Em primeiro lugar, com ajuda de uma bruxa mercenária, é ela que dá um alimento enfeitiçado para a própria mãe, similar à maçã envenenada da Branca de Neve. O objetivo do ardil é transformá-la para que ela fosse levada a compreender os desejos diferentes da filha. A magia produz um efeito inesperado: transforma a mãe justamente num temível urso, principal inimigo do pai, o que a coloca em grande risco.

A partir desse resultado, ambas terão uma jornada de aprendizagem. À filha cabe descobrir o poder feminino, oculto sob a camada de docilidade e submissão da esposa e mãe. Constata que o reino, sem a sabedoria da rainha (que estava ausente, transforma-se num pandemônio de testosterona desgovernada. À mãe cabe, na vida e neste filme, o papel civilizatório de domar os bárbaros para que se alimentem, se limpem e comportem feito gente e não como animais.

Já à mãe, sob a nova forma animalesca, está reservada a aventura de experimentar na pele a liberdade que sua filha tanto quer preservar. Como ursa descobre-se poderosa em combate (nunca duvidamos da fera que sabe ser uma mãe em defesa de suas crias), enquanto se apraz da desenvoltura de um corpo despido das amarras do pudor e da mímica contida do cotidiano das mulheres.

A tradição do conto de fadas têm várias histórias de “noivo animal”, das quais “A Bela e a Fera” é a remanescente delas. Neste caso, temos a inédita versão de uma “Mãe Animal”. No reino mágico, freqüentemente a personagem passa por transformações no corpo que vão ilustrando o caminho das mutações da alma. A passagem pela identidade animal nessas histórias costuma ter fins educativos, é uma espécie de lição, como na história da Fera, que perdeu a identidade de um belo príncipe para obrigá-lo a despir-se da soberba. Aqui, a mãe perde a delicadeza, assume uma forma masculina, poderosa, é obrigada a sentir-se na pele daquele que assombra até o próprio rei. O urso, versa a tradição folclórica, precedeu o leão na condição de rei dos animais. A rainha, mãe de Merida, que não lhe compreendia a identificação viril, é obrigada pela filha a vivenciar o outro lado da moeda das identidades sexuais em sua forma mais selvagem. Aprende-se duramente nos velhos e nos novos contos de fadas!

A sina desses feitiços somente se encerra quando uma expressão de amor revela-se maior do que qualquer repulsa que a versão animalesca possa suscitar. Neste caso, para mãe e filha. Ambas precisaram fazer esse percurso para aprender a amar-se. A filha viu surgir na mãe essa forma primitiva, uma ursa. Esse enorme animal tem um igualmente grande potencial simbólico: também se presta para a representação da maternidade. Não é totalmente estranho ver a maternidade misturada com algo ameaçador, pois essa mesma natureza que nos expulsou para a vida não raramente ameaça nos reincorporar. Por isso mesmo muitos homens desenvolvem dificuldades sexuais em relação àquelas que, outrora desejadas, tornam-se mães. A ursa, gigante peludo que hiberna para dar à luz, é uma tentadora figuração da mãe, acolhedora e protetora.

Cobiçadas e temidas, subjugadas e imprevisíveis, há séculos as mulheres iniciam suas filhas nessa arte do poder invisível. A princesa ruiva de “Valente” espera viver sem esse espartilho dos bastidores, da dissimulação, antigo campo de força das mulheres. Agora, a liberdade de movimentos e de opções, as escolhas e realizações que não dependem do amor e muito menos de um homem são, sim, opções válidas para as garotinhas que hoje comem pipoca no cinema. Já o são para suas irmãs mais velhas ou jovens mães. Às mulheres mais velhas viram o arco e flecha tomar o lugar da linha e da agulha e tiveram que suportar a transformação das suas filhas em seres livres, desgarrar-se da identidade clássica feminina associou-se assim a uma libertação da mãe. As herdeiras das conquistas feministas sentem-se permanentemente na contramão de suas mães. Mesmo que estas sejam poderosas, políticas, executivas, cientistas, artistas, sexualmente livres, separadas, mães solteiras, enfim, vivam quaisquer das novas formas de vida das mulheres, as filhas ainda as questionam, suspeitam-lhes uma servidão interior da qual se querem libertas.

Neste filme, a descoberta da jovem princesa passa por encontrar amor e admiração pela mãe, tudo aquilo que julgava ter descartado enquanto opção de identificação. A identidade viril é uma coletânea de certezas, gestos de afirmação e vitórias mensuráveis, numa cultura pautada pela legitimação de seus feitos. Nessa arena, as novatas têm se revelado exímias, como Merida com seu arco, mas ainda sentem-se estrangeiras, ilegítimas. Talvez essa condição de eternamente párias deva-se ao fato de que sacrificaram a identificação com a mãe. A princesa ruiva porta os traços do pai, carrega a certeza dessa filiação em suas paixões pelo domínio do que outrora era vedado a seu sexo, mas precisa saber o que fazer com o legado feminino. Nele, não se reconhece a priori, a aventura neste caso é a de saber-se mulher e por isso agora o desafio encontra-se do lado da mãe. Desta vez, a progenitora abandona o tradicional papel de rival, para tornar-se o mistério a ser decifrado, um amor a ser reconhecido.

É pelo amor da filha que a mãe volta à forma original, quando a jovem admite o que dela aprendeu. Já a mãe, ressurge marcada pela jornada de questionamento, precisa ver na sua descendente alguém capaz de escolhas, originalidade, opções que revolucionam a vida de ambas. As mulheres têm mudado vertiginosamente nos últimos séculos, mães e filhas sofrem com essa eterna mutação, sua relação é uma montanha russa de sentimentos. Já que indômitas, temos que ser, de fato, valentes para viver juntas tudo isso. Sou grata às minhas princesas irreverentes pelo tanto que seguem me revolucionando, pelo amor com que me permitem ensinar-lhes algo, pela parceria na infinita descoberta do que é ser uma mulher.

Os inúteis

Invejamos os funcionários públicos que recebem salários nababescos para fazer nada? O que isso revela de nós?

Há aqueles que dedicam grande energia a cultivar seu horror à política, seu discurso enojado costuma encontrar eco nas mais variadas rodas de conversa. Recentemente, esses cidadãos queixosos têm encontrado na divulgação dos salários dos funcionários públicos muita brasa para seu assado. Vejo uma espécie de voyeurismo, certa excitação até, ao referirem-se a essa personagem: o servidor público inútil e fartamente remunerado, assim como aos que recebem injustamente obscuras e nababescas pensões. Há, de fato, tristes distorções no salários, além de históricos maus tratos, entre os quais os trabalhadores públicos da educação são sem dúvida as maiores vítimas.

O fascínio com os aproveitadores do erário público têm aumentado e merece nosso olhar. Principalmente, porque vem acompanhado de outro discurso, mesmo uma prática, que é almejar um cargo público para “ganhar muito e trabalhar pouco”. Entre os críticos é comum a observação: – “isso eu queria para mim!”, como se o problema não fosse a corrupção, mas sim o fato de que não estamos sendo beneficiados por ela!

Esse funcionários ocupam o lugar simbólico daquele que, entre os irmãos, recebe mais cuidados e presentes. Pode ocorrer nas famílias que algum dos filhos seja o “estragado”, a quem os pais não fazem exigências, encobrem seus fracassos e transgressões, concedem todo tipo de favores. Não raro, esse tratamento produz toxicômanos, desajustados ou filhos eternos. Apesar disso, aos que não foram distinguidos com essa triste sina resta um sentimento de injustiça: por que tanto é dado ao pródigo? Não há reconhecimento por méritos e esforços?

Puxa sacos, safados e mafiosos dedicam a vida a uma obra que nada tem a ver com trabalho, atenção ao outro, construção de conhecimento ou qualquer realização. São como esses filhos atrofiados: vivem para cultivar relações escusas, fazer pactos de mediocridade. Um filho que nunca cresce entristece seus pais, mas jamais os abandona, nunca se sentirão descartáveis. A felicidade é ver os filhos tornarem-se capazes, mas o contrário, o filho dependente, é um destino tragicamente comum.

No fundo, gostaríamos de não ter que lutar tanto na vida, de não precisar ficar provando nossas capacidades em troca de parco retorno. Esquecemos que, assim como os filhos inúteis, os funcionários corruptos têm que conviver com essa triste versão de si mesmos. Nunca conhecerão o prazer da realização, da conquista, da superação. Antes mesmo de serem denunciados, já são condenados ao pântano da mediocridade, à pobreza de espírito. É apenas uma outra forma, ainda que invejada, de fracasso.

É isto um jovem?

Após a era nuclear, há uma vacância na posição dos adultos, que se abstém como referência. Aos jovens, resta o preconceito, a inveja, são objeto de pensamentos apocalípticos. O livro de Rose Gurski questiona essas posições.

(Este texto é o prefácio do livro: “Três Ensaios sobre Juventude e Violência”, de Rose Gurski, Ed. Escuta)

Depois de ter visto e vivido o inominável, o escritor Primo Levi estruturou sua mais famosa narrativa da vivência como prisioneiro nos campos de concentração a partir da pergunta: “é isto um homem?”. Inconformado com a banalidade do mal, ele buscou os restos de humanidade dos envolvidos nessa experiência limítrofe: eles restavam nos pequenos gestos de solidariedade e cumplicidade. Foi também na própria capacidade de narrar sua jornada pelo horror que esse escritor, um judeu italiano, reencontrou-se, tentando recuperar os danos da sua dignidade usurpada.

Não surpreende que Rose Gurski faça eco a essa pergunta, ao interrogar qual é a humanidade que resta em certos jovens contemporâneos, capazes de matar e agredir friamente. Ela arrola vários desses casos que constituem uma realidade assustadoramente próxima da alegoria de Laranja Mecânica, de Kubrick, que estuda junto a filmes, muitos deles num território limítrofe entre a ficção e o documentário. Os casos e obras analisados pela autora não a conduzem a uma visão apocalíptica, ela não se une à vozes que caracteriza como tomadas de “pânico moral”, identificando a juventude com problema social.

A demonização dos jovens, tantas vezes considerados sem qualidades e portadores de todas as leviandades que seus críticos conseguirem arrolar, caminha junto com a incapacidade dos adultos de nosso tempo para se compreender e questionar. A tradição acabou sendo associada com um peso que os adultos não estão em condições de carregar, o passado dos contemporâneos parece estar povoado de vergonhas e fracassos. Curioso, pois estamos aterrizando do século XX, e nunca aconteceu tanto em tão pouco tempo. Mas nem só de maravilhas da ciência e comportamentos liberados, que são ganhos indiscutíveis, vive nosso passado recente. Temos muita vergonha a carregar, principalmente a guerra e os massacres. Além do holocausto, já mencionado, a bomba atômica liquidou com chave de ouro a segunda grande guerra, onde provamos a enorme extensão da nossa capacidade destrutiva. E ainda assombra tanto que adolescentes sejam cruéis? Além disso, as maravilhas científicas, a saúde e o bem estar que elas proporcionam, continuam convivendo sem aparentes contradições com a extrema miséria. Seria, então, tão dissonante que jovens desmiolados agridam um mendigo?

Entre os filmes mencionados neste livro, gostaria de focar nossa atenção sobre Rebel without a cause, no qual há uma cena que muito pode nos ensinar. O clássico de 1955, traduzido entre nós por Juventude transviada, faz parte da iconografia fundadora do mito do adolescente contemporâneo. James Dean, faz o papel de um jovem inquieto que busca valores e interlocutores até na polícia. Ele quer revelar a virilidade oculta sob o manto da covardia do próprio pai e alguma qualidade no vínculo entre seus pares, entregues à mediocridade das disputas de reconhecimento. Em suas caras de escárnio, melancolia e desamparo, na sua jaqueta vermelha e topete inspirou-se uma era de futuros adultos, que hoje são pais e avós.

A cena em questão, é um diálogo baseado num equívoco em torno da palavra inglesa “age”, que é cheio de pistas para esta nossa reflexão. “Age” serve tanto para uma época da vida, uma idade, quanto para uma era, um tempo da humanidade. Nele, a moça vivida pela atriz Natalie Wood, futura namorada do herói, aproxima-se de seu pai durante uma refeição familiar e tenta beijá-lo na bochecha, como fazia quando criança. Este a rejeita, resmungando que aos dezesseis anos ela já não deve ter esse comportamento (ele diz: “girls your age don’t do things like that!”). A filha protesta a perda do amor paterno, como se este tivesse que ser abandonado com a infância. Depois que ela sai batendo a porta, dizendo que essa não é mais sua casa, a mãe consola o pai atônito com a frase: “she’ll outgrow it, dear, is just de age!”, ou seja, que ele fique tranqüilo, a filha vai superar essa crise, trata-se apenas de uma idade, uma etapa, uma loucura temporária. O irmão menor da personagem estava por ali, brincando com uma arma espacial de plástico e arremeda, enquanto atira para cima: “yeah, it’s the atomic age!” (“sim, é a era atômica!). Na seqüência, a mãe segue o diálogo com o marido e acrescenta: “It’s just the age where nothing fits” (“é bem a época em que nada serve”).

O pequeno, tal qual uma voz de coro de teatro grego, informou o que os adultos estavam falando sem saber: a juventude da irmã transcorria nos escombros psíquicos de um trauma recente. Os pais dos Estados Unidos pós-guerra, mesmo na condição de membros da nação vitoriosa, não sabiam o que fazer com os filhos quando estes atingiam a idade dos antigos combatentes. A família da personagem de Dean, optava por manter o filho protegido, tratando-o como criança, enquanto a da moça tentava ignorar a fase em que a que a filha deixara de ser criança e não era ainda uma adulta, como se fosse um mal passageiro.

Embora os jovens pareçam bastante perdidos e principalmente tristes, a adolescência é neste filme um notório incômodo para os adultos. Os jovens ainda tão respeitosos e cerimoniosos dessa história já antiga, mesmo assim eram caso de polícia para essa sociedade de baby-boomers, tanto que um deles acaba morrendo. Trata-se de um crime estúpido, cometido por um policial estabanado, que extermina a vida de um garoto solitário e desajustado que só queria um pouco de atenção. Bem nos lembra Rose que os estudantes rebeldes do maio de 68 francês reivindicavam: “não nos mandem polícia, eduquem-nos!”.

Essa “era atômica” de que falava o garotinho, transcorrida nos anos da Guerra Fria, encontrou pulverizados todos os valores pelos quais seus protagonistas lutaram. Os heróis desse tempo eram mais traumatizados que orgulhosos, a reconstrução da Europa bombardeada desenterrava cadáveres de traição e indignidade. Quando os jovens de um mundo pacificado, voltado para o bem estar, começam a questionar o sentido da vida, esses pais encaram a melancolia juvenil como ingratidão: eles deveriam apenas aceitar a boa sorte e aproveitar as oportunidades de segurança que seus antepassados não tiveram. Ao contrário disso, os garotos do filme travam duelos letais com carros e canivetes, reproduzem em pequena escala a passagem do jovem pela guerra, e a experiência da proximidade da morte para fazer-se homens.

Jim Stark, personagem de Dean, reclama constantemente da covardia do pai, um marido submetido pela autoridade da mulher e da sogra, e lança-se num duelo em defesa da honra, após ser chamado de “chicken”. Mais uma vez, os jovens encenam em pequena escala os esqueletos no armário de seu tempo: a paz em que eles viviam era uma fina casquinha sobre a constante ameaça de um confronto terminal, a guerra atômica. Como queriam que aqueles garotos seguissem adiante, como gado, ignorando o conflito silencioso e totalizante, sobre o qual se estruturava a falsa calmaria? A quem queriam enganar aqueles adultos, exigindo que os jovens não se colocassem as questões terminais que seus pais, graças à guerra, puderam formular? Para que viver? Em nome de que lutar? Quais são os verdadeiros amores, os vínculos autênticos, capazes de sobreviver à adversidade?

Num instigante percurso teórico por autores como Hannah Arendt, Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Maria Rita Kehl, Eric Hobsbawn, Jacques Lacan, Ana Costa, Contardo Calligaris, entre tantos outros, costurado pela análise de filmes como Aos treze (2003), Cama de gato (2002), Alpha dog (2006) e Os sonhadores (2003), este livro nos conduz a interrogações profundas. Simplesmente horrorizar-se com os jovens cruéis e transgressores, ou mesmo ignorá-los, esperando que seja um desajuste temporário, seria reproduzir as condutas dos adultos do filme. Pais, educadores e policiais em torno de Jim, fizeram de tudo para abafar a atitude adolescente enquanto uma forma, direta ou velada, de questionar.

A juventude está intrinsecamente associada ao tema do novo, onde aqueles que estão se tornando grandes de tamanho, embora ainda pequenos de experiências, inventariam seu legado, decidem o que levarão adiante e o que deixarão pelo caminho. Mas, lembra-nos a autora: “não é o jovem que ainda é pobre em experiência, é a sociedade que é pobre na capacidade de transmiti-la”. É sobre a diferença traçada pro Benjamin entre “vivência” e “experiência” que ela baseia suas reflexões, sendo a primeira apenas a memória de uma série de atos e acontecimentos que só podem ser assumidos e incorporados pelo sujeito mediante a transformação na segunda, Benjamin, ensina Rose, coloca a narrativa enquanto catalisador, instrumento de elaboração, tal como fez Primo Levi. Mas não se conte com os mais velhos para conduzir ou propiciar esse discurso, essa reflexão! Os jovens contemporâneos são filhos de gente que cresceu e envelheceu incapaz de tornar-se um adulto, determinados a jamais deixarem-se superar pelos mais jovens.

Não importando a idade, os que se sentem privados da própria juventude são incapazes de assumir a posição dos que, em vários aspectos, já tiveram sua vez. Já gastaram algumas fichas, mas mantêm os olhos postos apenas no que ainda gulosamente querem viver, sempre mais e muito. Como se a era atômica tivesse nos legado uma vida imediatista, sem passado nem futuro, numa eterna véspera de fim de mundo que o desarmamento nuclear não desbaratou.

Numa cultura onde a vaga de adolescente é disputada por gente de todas as idades, ficando essa época da vida associada a um imaginário (dos adultos) de oportunidades e prazeres (nada mais distante da realidade), resta pouco lugar para questionar. Alem disso, questionar a quem?

No filme Aos treze (também estudado por Rose) por exemplo, todos os personagens estão em busca de alguma razão de ser, mas enquanto os mais velhos se anestesiam com drogas e álcool, os mais jovens lançam mão à aparência, aos objetos, etiquetas e marcas. Não há nenhum adulto no filme, já que os mais velhos são visivelmente fascinados pelas promessas de gozo que atribuem à juventude. A mãe assiste a mutação da menina com alguma preocupação, mas ao mesmo tempo mostra-se paralisada, hipnotizada pelo personagem que surge daí: seu patinho feio tornando-se cisne, a mulher bela e sem limites. Mas quem não ficaria seduzida pela invocação destes poderes? Não é apenas um filme sobre uma adolescência difícil, é sobre os revezes de crescer num tempo em que poucos têm coragem de ser adultos.

Trata-se do fenômeno, caracterizado pela autora deste livro como de “erosão da adultez”, onde para os mais velhos que hoje trajam a fantasia da juventude eterna a reflexão é impossível. Como estes não permitem que o verdadeiro jovem os olhe como diferentes, nunca se estabelece a distância necessária para ver melhor, enxergar de fora.

Exatamente como nos afastamos de um objeto para lhe conhecer melhor as formas, os jovens precisam distanciar-se dos adultos para compreende-los melhor, decifrá-los e com isso conhecer-se. Analisando seus familiares, governantes, educadores, artistas, enfim, todos aqueles que teriam que ter algo a dizer ou mostrar a partir das escolhas que fizeram na vida, os novatos poderiam conhecer melhor suas possibilidades, ponderar sobre os erros que não querem repetir e os sucessos que gostariam de imitar. Dessa forma, seria possível aprender algo com a experiência dos mais velhos, que teriam transformado suas vivências em experiências, caso isso tenha ocorrido. Para tanto, é preciso dar uns passos para trás, estabelecer um espaço, uma diferença entre maduros e jovens, a qual não vem sendo permitida. Nesse sentido, a autora teoriza com Lacan que a agressividade, contida nessa violência juvenil que tanto assusta, é diretamente proporcional à necessidade do sujeito de demarcar seus limites, estabelecer seu território nem que seja a dentadas, como os animais.

A juventude é época agoniada, de impotência, de covardia, onde nada nos prova que seremos capazes de fazer alguma coisa, quanto mais algo que seja melhor do que já está. No entanto, esse é o desafio, pois se não tivéssemos a expectativa de superar, transcender o estabelecido, fazer algo novo, nem valeria a pena começar. Talvez por isso vê-se tanta gente moça desanimada, já que não há um ponto de onde começar, uma referência. É como se os adultos fizessem eco àquela frase jocosa de para-choque de caminhão: “não me siga, também estou perdido”.

A partir da modernidade uma existência tem se fazer valer, deixar sua marca na vida, pois o céu deixou de ser uma meta atraente e a manutenção da tradição não é um objetivo plausível. Arendt já questionava o que se lega aos descendentes, quando os ideais são engajados na esteira da ruptura, da revolução, nunca na manutenção do estabelecido. Rose Gurski aposta na narrativa, que ocorre nos momentos em que o adolescente é escutado, por exemplo. Nessa experiência discursiva torna-se possível equacionar uma relação com a herança recebida, sobre a qual eles possam então criar o novo, fazer suas revoluções, sempre bem vindas. Ela acredita no poder de um verdadeiro olhar adulto que não se negue a enxergar o sofrimento do adolescente. Estes são, enfim, três ensaios sobre a cegueira dos adultos e um chamado a abrir os olhos. O que temos a ver é doloroso mas belo, pois ao mesmo tempo em que nos sabemos passageiros, descobrimo-nos fonte de inúmeros tesouros, nossa herança para ser deixada tem que ter seu valor reconhecido. Afinal, o holocausto nuclear acabou (ainda?) não acontecendo. Há esperança.

Contar para não repetir

sobre uma psicanalista na Comissão da Verdade

A Comissão da Verdade vai investigar e divulgar trechos omitidos de nosso passado, mas o trabalho desse grupo não tem poder de fazer justiça. O surgimento da verdade sobre o que ocorreu nos porões da ditadura é sem conseqüências práticas. Então, para que dar-se ao trabalho de trazer à tona velhas dores?

Boa pergunta para um psicanalista, que por ofício torna o passado eloqüente. Brinca-se que numa análise tudo acaba em Édipo. De fato, “o passado condena”, mas nem só de gregos parricidas ele é feito. Se as respostas fossem óbvias não haveria tratamentos psicanalíticos. A princípio sempre julgamos o mundo externo, “os outros”, culpado pelas nossas mazelas; com certo percurso, percebemos que tivemos algum papel nesses males. Por fim, impõe-se rever a própria história: como foi que cheguei até aqui?

Contar a vida que se teve não vai apagar a experiência de uma família maluca, a sina de ter nascido no lugar de um irmão morto, a horrível experiência de um abuso, mortes, falências, ódios. Os fatos do passado não mudam só porque foram rememorados, mas, lembrados conscientemente ou não, influenciam o presente, alteram o futuro. A eficácia de um tratamento psicanalítico provém de escutar-se contando a própria história. Uma nova versão de nós mesmos permite reposicionar-se frente à vida. Só assim resolvemos pendências, ressentimentos, nos libertamos de ter que repetir o mesmo papel.

É assim com os indivíduos, assim com os povos. Em seu livro “18 crônicas e mais algumas” (Boitempo Editorial), a psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão da Verdade, conta como isso acontece. Ela exemplifica através da persistente conivência com certa violência policial. Infelizmente, ainda encontramos práticas de tortura e de execuções sumárias. Os porões, como se vê, sobrevivem. Em geral, as vítimas são pobres, considerados culpados sem direito a julgamento. Não seria uma repetição, autorizar-se a punir fora da lei? Aparentemente, aquilo que do passado não se elabora vai sendo re-encenado, assombra outros tempos. Na contramão desse silêncio pernicioso, a Comissão da Verdade vai propiciar que histórias omitidas ou deturpadas sejam faladas, contadas e, com isso, elaboradas.

Quando chamada para fazer parte da comissão, Maria Rita perguntou-se: por que eu? Sem dúvida por ser psicanalista e a escritora engajada. Também porque “o sentimento do mundo me pega não com a doce melancolia do poeta, mas como um paralelepípedo na testa” escreve ela em outra crônica. Para nossa sorte, de leitores, ela acrescenta: “a elaboração do texto é uma espécie de cura para o impacto (traumático?) do acontecimento”. Viver, contar. Por isso foi – muito bem – escolhida.

Mentiras sinceras me interessam

Frente a todo elogio, nos consideramos uma fraude. Já as críticas, ganham credibilidade imediata!

Noite, pai e filha param numa loja de conveniência para uma compra rápida. A menina se impressiona com as moças exuberantes que estavam ali, e pergunta ao pai se elas, tão altas, não seriam modelos. Num momento de distração da garota, o pai aproveita para transmitir a observação dela às duas travestis, que ficaram naturalmente encantadas. Seu trabalho exaustivo de montar uma bela e convincente imagem feminina fora recompensado.

As travestis são biológicamente homens, mas sentem-se mulheres e têm que carregar o fardo do sexo em que nasceram. Costumo brincar que o melhor filme sobre mulheres, para quem lhes quiser conhecer os segredos, é: “Priscila, a rainha do deserto” (Stephan Elliott, 1994), onde os protagonistas são duas travestis e uma transexual. Afinal, ninguém sabe melhor do que esses abnegados cultuadores da condição feminina, que ninguém nasce mulher, torna-se. Naquele encontro, graças ao involuntário elogio da filha do meu amigo, parecer femininos é um desejo deles que se realizou. O estranho é que elogios são sempre assim: quando os recebemos nos sentimos enganadores, como se houvesse alguma falsidade ali, uma ilusão que alimentamos, uma mentira.

O que temos de positivo é, aos nossos olhos, vivido como uma farsa, ridícula imitação dos nossos ideais. Um dia seremos desmascarados. Se alguém louva nossa obra, aparência ou valores, está, pensamos secretamente, redondamente enganado. Quando imaginamos algo que vamos fazer, as fantasias sempre incluem algum tipo de vitória, algo grandioso, frente ao qual qualquer realização parece indigna de nota. Quanto à beleza, não é à toa que ela se chama de “aparência”. Lembro da Claudia Schiffer, dizendo que depois de acordar levava mais de hora para ficar com cara de Claudia Schiffer. Os valores morais, então, são os piores candidatos à autenticidade: um mínimo de intimidade consigo mesmo revela a condição egoísta, mesquinha e violenta dos nossos anseios e pensamentos. Por sorte, na prática é outra coisa.

É justamente essa consciência dos próprios bastidores que faz com que as críticas não sofram o mesmo descrédito que os elogios. Qualquer observação que nos desmerece ou diminui é tomada imediatamente como verdade absoluta. Se alguém der a entender (ou mesmo se achamos que essa pessoa pensa assim) que somos chatos, medíocres, incompetentes ou feios, levamos fé e faremos coro com essa voz. A crítica habita nosso interior e quando encontra aliados, reais ou pressupostos, se fortalece, se agiganta. Talvez as travestis se assemelhem mesmo às belas modelos, pois aquilo que forjamos, com trabalho e superação, é uma autêntica e admirável conquista. Aplausos são para o que conseguimos fazer com o que a vida nos deu. Somos mentiras sinceras, verdades construídas. Palmas para elas.