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O gato e a montanha

Leitura é também repouso, intervalo para pensar.

Quando vejo certas entrevistas feitas a personalidades, fico fantasiando o que aconteceria se algum dia eu fosse suficientemente importante para que me perguntassem sobre minhas preferências. Qual seria meu livro preferido, filme, prato, palavra, lugar? Respondendo mentalmente à entrevista que nunca me fizeram, costuma dar branco. Não lembro de nada que li, de nenhum filme especial. Nada a declarar.

Mas esses dias respondi a uma dessas perguntas, numa mesa com amigos, sobre o livro que levaria a uma ilha deserta. Ocorreu-me: “A Montanha Mágica”, clássico do escritor alemão Thomas Mann, publicado em 1924. O livro é sobre um engenheiro que vai parar em um sanatório para tuberculosos, do qual não se anima a sair, embora não esteja propriamente doente. Quando fui justificar a escolha, não me ocorreu nada sobre o conteúdo da obra, nem sobre seu estilo, mas sim sobre a quantidade astronômica de tempo que levei para lê-la. Sou leitora lerda e dispersiva, por isso leio muito menos do que gostaria.

Na época da leitura da “Montanha”, na minha década dos vinte, eu tinha um gato chamado Koshka. Como bom felino, ele acreditava ser o centro do meu mundo e via no livro de Mann um rival e tanto. Não porque eu de fato lesse muito, mas porque passava longos períodos divagando, com ele no regaço. Só que na opinião do gato meu colo era possessão sua.

Iletrado, Koshka não sabia que a maior parte do tempo eu estava só sonhando. Resolveu mostrar sua supremacia frente ao suposto inimigo: deixou-o impregnado daquele cheiro horroroso de xixi de gato. Não havia remédio, o exemplar foi para o lixo tive que terminar a leitura num emprestado.

Folheando a obra anos depois, senti o mesmo tédio a respeito das longas discussões filosóficas das personagens que me ocorria na época. Mas minha empatia era com o sem sentido da vida daqueles enfermos, confinados num sanatório nas montanhas. No livro, o cotidiano reduzido às rotinas do corpo, onde quase nada ocorre, contrasta com grandes polêmicas e expressivas emoções. Esse paradoxo me engatava.

Eu me sentia como Castorp, o personagem principal, que nãoqueria ficar bom, covarde para voltar à sua vida. Em certa cena, vê-se o protagonista distraído, divagando sobre o braço da mulher atraente que via repousado na cadeira da frente durante uma palestra. A imaginação podia voar, seu dono estava seguro no retiro disciplinado do sanatório, pobre em fatos mas rico em pensamentos. No meu caso, a própria leitura desse livro funcionava como uma “Montanha Mágica”. Por longo tempo significou repouso, intervalo para pensar. Foi graças a Koshka que sua natureza se revelou: marcando território, tratou o objeto como se fosse um lugar. Gato sabido: um livro é uma terra de sonhos.

O que é bom dura pouco

Pobre felicidade, a mais incompreendida e maltratada dos sentimentos.

Minha amiga fez uma reforma dentro de casa. Deviam incluir reformas, principalmente aquelas nas quais se permanece habitando um lar semi-destruído, nos testes psicológicos. Se o morador do imóvel em escombros não enlouquecer, dificilmente perderá o equilíbrio em situações extremas: seria um caso de saúde mental comprovada. Um casal que sobrevive a uma reforma será feliz para sempre. Pois minha amiga, sua família e os dois gatos superaram isso e passam bem. Ninguém pediu a opinião felina do Quincas e da Frida, mas tenho certeza de que eles discordam da necessidade de ter feito tudo aquilo.

Quando fui visitá-la para ver as melhorias prontas, a casa estava tão bonita e agradável que imediatamente instalou-se o sentimento de que sempre fora assim. Comentamos que é uma pena, mas o período em que comemoramos as novidades boas passa demasiado rápido.Também quando algo piora, estraga ou deteriora, aos poucos adotamos naturalmente os caminhos necessários para contornar o problema: a luminária queimada será evitada, a janela emperrada será menos utilizada, o liqüidificador estragado decorrerá na eliminação das receitas que o necessitem.

A vida é movimento e somos muito plásticos, adaptamo-nos às circunstâncias, expediente que permite a sobrevivência até em condições extremas. Mudamos o tempo todo, nem que seja pelo fato de que a cada dia vamos ficando mais velhos e carregamos a experiência, os temores e sucessos armazenados dos momentos anteriores. Por vezes, mudamos para muito melhor, por outras enfrentamos perdas ou mesmo a triste constatação de um esforço inútil, como diriam o Quincas e a Frida sobre as novidades na casa da minha amiga.

Mas nada é à toa, devo discordar dos gatos. Eles são uns ranzinzas e prefeririam que nada se alterasse nunca, tanto que existe a expressão “mais nervoso que gato em dia de faxina”. Queria lembrar àqueles dois gorduchos peludos que agora eles têm mais luz e espaço em vários cômodos da casa, mas eles vivem um eterno presente, assim como costuma acontecer conosco.

No fim do ano fazemos balanços. Até os que alardeiam que isso é ridículo, pois o primeiro de janeiro é exatamente igual ao trinta e um de dezembro, que nada recomeça, são atropelados pelas retrospectivas do ano na mídia, pelo ambiente de promessas e esperança.

O resultado dessa avaliação anual sempre é prejudicado pela dificuldade de perceber as mudanças e, principalmente, de comemorar as boas novas. Reagimos como um bebê: quando está com fome berra como se nunca tivesse sido alimentado e ao ser bem cuidado ronrona um prazer que parece contínuo. Quando a felicidade chega, olhamos para ela como certos pais que recebem as boas notas dos filhos e, em vez de elogiar, dizem que ele não fez mais do que a obrigação. Pobre felicidade, a mais incompreendida e maltratada dos sentimentos. Depois de amanhã, último dia do ano, pode dispensar a lentilha, os fogos, mas não abra mão da gratidão pelo que melhorou. Por outro lado, se algo piorou, acredite, de algum modo vai passar.

Escutando os fogos

Abaixo a euforia imposta no grito nas festas do fim do ano!

Sou filha e neta única. Minha família de origem é minúscula, talvez por isso tenha desenvolvido a vocação para transformar amigos em parentes. Meus melhores amigos são como irmãos ou cunhados, seus filhos são meus sobrinhos. Entre os parentes, cultivo alguns laços que transcendem as obrigações familiares, tenho prazer em vê-los.

Lembro que meus pais tinham sobre a estante da sala uma caneca com a seguinte inscrição: o acaso faz os parentes, a escolha os amigos. Leitora recente quando encontrei a frase, ela nunca deixou de ecoar. Pouco valorizamos a força das primeiras palavras que decodificamos por conta própria, saboreadas com paladar virgem. A leitura das primeiras frases, então, impõe verdadeiras jornadas filosóficas aos iniciantes.

A frase da caneca, enigma que morava na estante, tomei-a como promessa. Era como se me fosse dito: não importava ter tão poucos parentes, melhores são os amigos que a gente escolhe. Apesar desse consolo, meu marido me presenteou com uma grande família, que faz festas natalinas com tudo a que se tem direito, nas quais esta judia que vos fala passou a ser incluída. Ele brinca que dei o “golpe da árvore de Natal”, ou seja, que o escolhi só para poder montar uma. Ele está enganado, eu também tinha interesse nos ovos de páscoa e nos parentes-amigos com quem festejar. Somadas as tradições de ambos, temos um calendário atribulado.

Quando pequena passava as festas de fim de ano somente em companhia de minha avó. Meus pais ficavam no Brasil trabalhando e eu veraneava na praia uruguaia onde ela vivia. Após o jantar sentávamos no pátio e nas noites festivas também ficávamos ali, em silêncio, escutando e assistindo os fogos. Era melancólico, mas é uma lembrança pacífica e aconchegante.

Nos anos seguintes, adolescência em diante, experimentei do que se considera devido no Natal e Ano Novo, todas as modalidades: entre amigos, com familião, romanticamente em casal. No fim, descobri que qualquer estilo pode ser bom, nem que seja uma avó e uma neta, caladas ao relento. Sentimo-nos em dívida com as imagens populares e publicitárias: muito vermelho e dourado, as ceias, crianças maravilhadas, a parentada bem vestida, música, amigos, sensualidade e a alegria dos brindes. Mas vamos e convenhamos, essas festas marcam o fim de um ciclo e concluir é sempre no mínimo complexo. São eventos que arrastam consigo algum balanço, e as contas da vida nunca fecham. As esperanças sempre ganham das realizações.

Festas, as que verdadeiramente ocorrem, em geral são meio melancólicas como aquelas da minha infância e isso não é necessariamente ruim. Só fica patético quando tentamos impor a euforia no grito. Queria mesmo poder contar à minha avó, que partiu há muito tempo, que sinto saudades. Depois de todas essas andanças, nossas noites de fogos e silêncio ainda ocupam um lugar de destaque em minha memória. Ela me ensinou que é preciso pouca parafernália para estar bem. Hoje isso não é um acaso, é uma escolha.

O privilégio do azar

Um pessimismo de bolso que é um tributo ao otimismo

Na fila do caixa do supermercado, por várias vezes, disputei pelo privilégio do azar. Estabelecimento lotado, filas grandes e lentas, escolhemos uma: obviamente será aquela em que vai dar algo errado, o cartão que não funciona, um produto sem preço ou estragado. A fila que não escolhemos sempre anda mais rápido. Quando finalmente nossa vez chegou, a fita da caixa registradora acaba e é preciso parar tudo para trocar. Certa feita, frente a essa situação, declarei em voz alta que só podia ser comigo, é sempre assim! Uma senhora que estava atrás de mim insistia em que o motivo do percalço era a presença dela. Assim, meio rindo, meio falando sério, ficamos discutindo o protagonismo daquele pequeno azar.

Essa demonstração pública de pessimismo, na qual reivindicamos ser a causa do que dá errado, é no mínimo intrigante. Afinal, qual seria a vantagem a ser alardeada de ser o escolhido para coisas ruins, mesmo que de pequena monta? Justamente porque trata-se de vantagem: a idéia de que os pequenos azares substituem os grandes.

É comum ficamos temerosos de que alguma catástrofe virá para acabar com a festa quando algo bacana está para acontecer. Para mim não há viagem de férias em que não tenha pressentimento de que alguma desgraça vai me impedir de partir. É uma espécie de culpa, como se o prazer antecipado devesse ser punido. No fundo me espreita o pânico de que o destino tome providências para impedir a realização desse desejo. Estaria certo usufruir desse prazer? Por que seríamos merecedores de um passeio, de um encontro muito esperado, uma refeição cuidadosamente planejada, uma homenagem recebida? Alguém vai aparecer para impedir, revelar nossos defeitos, nossos pecadilhos, vai levantar a mão como num casamento quando se pergunta se há alguém que se oponha à união. Ficamos culpados, pensando que talvez estejamos cometendo alguma injustiça, será que não haveria outra pessoa que teria mais direito a esse privilégio?

É aqui que entra a utilidade dos revezes insignificantes: não serviriam para aplacar a ira do azar? Como se fossem oferendas, sacrifícios: manda-se para a fogueira da culpa uma bobagem, esperando que ela queime no lugar de uma verdadeira desgraça. Depois disso, o que tinha para dar errado já foi, tudo transcorrerá maravilhosamente.

Esse pessimismo de bolso acaba sendo um tributo ao otimismo. Somos mesmo muito paradoxais. Com esses pensamentos estranhos acreditamos estar controlando o destino, garantindo que será favorável, já que sacrificamos à desgraça alguma cota de tempo, paciência ou dinheiro. É bom saber que, apesar de resmungões, somos otimistas incorrigíveis e perseverantes. Nesse sentido, concordo com Valter Hugo Mãe que escreveu: “Pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende”.

Mulheres assassinadas

Matar em nome do amor, uma epidemia.

Tem sempre o dia em que a casa cai. Elas perderam a esperança porque o perdão também cansa de perdoar. Uma sucessão de abusos, de surras causadas pelo ciúme delirante, finalmente encontrou um basta. Seus maridos e namorados ficam enfurecidos, não compreendem a rejeição. Quanto atrevimento! O que foi que mudou? Na lógica deles, vontade própria não existe nas mulheres, portanto a ruptura deve ser por causa de outro. Abstinentes da relação que lhes sustentava a virilidade, decidem lavar a honra ferida: elas não pertencerão a mais ninguém.

Léia, oito tiros; Eliene, marteladas; Caroline, degolada; Karla, 10 tiros; Bruna, grávida de 15 anos, facadas; Joyce, negou-se a ter relações sexuais com o marido bêbado, 16 facadas; Rosilene, 12 facadas; Elisângela, espancada até a morte; Tânia, esfaqueada, asfixiada e colocada na geladeira; Maria da Guia, pauladas; só para citar alguns dos muitos casos de outubro, recolhidos a esmo, espalhados por todo o Brasil.

Em todos eles os matadores eram ex-companheiros. É inevitável o choque com o montante de ódio expressado nesses assassinatos. Eles querem muito mais do que cessar aquela vida, precisam invadir, destruir-lhe o corpo. Não é nada rara a freqüência dos tiros no rosto, como forma de apagar aquele olhar que deixou de ser-lhes destinado.

O fim de um amor sempre causa desespero, sentimento de dissolução, perde-se parte de si. Há também a vergonha pública, pois amor e reputação têm seu destino enlaçados. Portanto, homens e mulheres deveriam equivaler-se nas manifestações de despeito, a dor é democrática. Não é o caso: elas se deprimem, podem praticar maldades, maledicência, partilhas litigiosas; já para muitos deles é uma questão de honra, de vida e morte.

Simone de Beauvoir lembrava que o prestígio social da guerra, território masculino, sempre foi maior que o do ato de dar a vida, atributo feminino. Assim, frente à impotência maior de ver-se privado daquela que se julgava possuir, decidir pela sua morte acaba sendo o exercício de um prática milenar.

Nos anos 80 usávamos a frase: “quem ama não mata”, lembrando que não é aceitável qualquer condescendência com os crimes passionais. Melhoramos um pouco na punição dos assassinos de mulheres, que já gozaram de maior prestígio, acredite. Porém, um dos graves obstáculos na prevenção dos assassinatos de mulheres é a resistência delas, assim como das pessoas ao seu redor, em levar a sério as ameaças que sofrem. Elas acreditam que faz parte do amor e conseguirão reverter a situação. Protegem o agressor como se fosse um filho travesso, são incrédulas frente à letalidade do seu homem. A mulher não tem intimidade com a morte enquanto argumento final, atribuem a eles a capacidade que elas têm de duelar com palavras.

Nossas leis são melhores na teoria do que a prática. O amor, em sua face possessiva e descontrolada, continua sendo um serial killer de mulheres. Isso é assim porque no fundo ainda se espera que a mulher se apegue à relação acima de tudo, que ela exerça seu poder através da entrega. São restos, ainda ativos, de um tempo em extinção. O segredo para a erradicação da violência está num trabalho com as potenciais vítimas: é preciso que elas acreditem que serão apoiadas, que maus tratos são inadmissíveis, que correm riscos desnecessários e não devem morrer. Nunca mais.

Flocos de solidão

Solidão é uma forma peculiar de silêncio

Dizem que em 1984 nevou em Porto Alegre. Dizem, porque não vi. Não foi daquela vez que conheci a neve, na ocasião minha descoberta foi a solidão. Era o primeiro dia de estágio obrigatório em uma área na qual eu não tinha interesse. Fui admitida de favor em uma empresa que aceitou a estagiária mais desmotivada do mundo. Sem saber o que fazer com a recém chegada, puseram-me em um cubículo sem janelas com uma enorme pilha de folhetos para classificar. Bateram a porta depois de informar o horário do fim do expediente. Na hora da libertação, no elevador da firma, todos falavam excitados sobre a neve que viram das janelas e alguns desceram para tocá-la. Minha desolação não podia ser maior. Na época não havia celular, muito menos rede social, e ninguém na empresa lembrou ou sabia que eu estava lá. Não havia um colega para avisar a reclusa do fenômeno.

As facilidades tecnológicas de comunicação que temos são frequentemente acusadas de promover exibicionismo e certa falsidade afetiva. Super-conectados, não faríamos mais do que mascarar o isolamento. Discordo: a verdadeira solidão consiste na inexistência de comunicação, ainda que virtual, exígua. Mesmo que no cubículo estivesse a pessoa pior relacionada do mundo, certamente teria sido informada dos flocos rarefeitos, esparsos, mas festejados pelo surpreendente.

Solidão é ausência absoluta de diálogo, nem que seja imaginário. Não basta ver a neve, para entendê-la é preciso poder contar isso para alguém. Seria suficiente uma frase, enviada a míseros dois contatos virtuais.

Certa vez, sobre um cenário que a impressionou em uma viagem, a escritora Virginia Woolf escreveu que a beleza era tanta que se tornou indescritível. Isso lhe parecia insuportável “como se a natureza tivesse me dado seis pequenas navalhas para fatiar uma baleia”. Em viagens, às vezes fotografamos um cenário assombroso, esperando que a imagem nos balbucie algumas palavras. Na dor a solidão é uma crueldade, mas também nos momentos belos é preciso dizer para crer. Ao ver a neve ou a paisagem inusitadas, carece dividir isso com alguém para entendê-las. Naquele dia ninguém partilhou sua neve comigo.

A solidão é algo muito maior do que a ausência de amigos, família, colegas. Quando ela se apresenta em toda sua dimensão, absoluta como ocorre em certas vidas ou momentos, ela é principalmente uma forma peculiar de silêncio. Precisamos dizer para pensar. As diversas formas virtuais de comunicação funcionam como interlocutores imaginários. São antídotos contra a impessoalidade das cidades, onde é fácil sentir-se invisível, transparente. Nesse sentido, as redes sociais, tão amadas quanto criticadas, acabam sendo imprescindíveis. Todo encontro é válido, sempre é muito melhor que nada.

Machos X Poderosas

Anitta e a guerra dos sexos

Amor e sexo são intimidade e ternura, mas também confronto, duelo, perigo. Deles são aqueles momentos em que se pensa: “eu poderia morrer agora, não importa”, numa aventura radical, em que cada um dos parceiros precisa ultrapassar os limites do outro..

Bataille, em seus escritos sobre erotismo, diz que somos seres “descontínuos”, peculiares por sermos diferentes uns dos outros. Nessa especificidade reside tudo o que sabemos ser. Num movimento contrário a essa diferenciação, amar e desejar são a busca de uma “continuidade”: queremos ser um só em vez de dois.

A entrega amorosa, principalmente em sua versão aguda que é a paixão, viola as muralhas da fortaleza em que habitamos. É um estado de obsessão exigente, pede de ambos que a consciência de si e do mundo se apaguem. Por isso ela anda de mãos dadas com a fantasia de morte, já que significa que só haja vida para essa entrega, todo outro interesse será traição. É por isso que o erotismo brinca nas fronteiras do masoquismo e do incesto. Brinca, como se brinca com monstros: com excitação, cautela e muito medo. Que fique bem claro, isso é totalmente diferente de exercer e atuar qualquer tipo de ato abusivo. Brinca, porque ao amar ou desejar muito, lembramos da violência, na qual perdemos a soberania, ou da infância, em que se depende do outro para quase tudo. Trocando em miúdos, sexo é vertigem.

Para proteger-se desses riscos, homens e mulheres têm construído barreiras, diques, legislado e normatizado o sexo, os relacionamentos e as identidades de gênero. Os homens, que sem exceção começam a vida nos braços de uma mulher, a mãe, deram-se ao direito de por isso mesmo desprezar seu gênero por séculos. Infelizmente muitas mulheres os seguiram.

Nesse sentido, o machismo é a fortaleza construída pelo filho crescido, onde ele se tranquiliza falsamente de que jamais cairá novamente nos braços de outra “dominatrix”, fora a mamãe. Disfarçado de vingança, o machismo também está presente nas mulheres. Embora às avessas, elas não desmontam esse esquema. Mulheres “Poderosas”, como descritas pela jovem cantora Anitta, sucesso viral do momento, entram nesse jogo, mesmo que no outro lado do campo: “Vem, se deixa render
/ Vou como sereia naufragar você / Satisfaço o meu prazer/ Te provocar e deixar você querer / Agora eu vou me vingar: menina má”.

O jogo em questão é a guerra dos sexos: frente ao perigo de desaparecer um no outro, os amantes alardeiam a própria supremacia, como as cornetas e bravatas antes das batalhas. As mulheres querem defender-se com as mesmas armas deles, protagonizando um motim, a revolta dos objetos sexuais contra seus donos. Faz parte dessa guerra a recorrente violência contra mulheres e filhas, como nos abusos e nos incessantes crimes passionais que nunca faltam ao noticiário.

O desafio é aprender a amar sem defender-se nos clichês de gênero. Sem as regras defensivas do macho dominante e da fêmea submissa, ou mesmo da simples inversão desses papéis. É preciso muita coragem para enfrentar a entrega amorosa e sexual. Principalmente para fazê-lo desarmado.

Amor é incompreensão

Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo.

Quando se ama, o pior inimigo não é, como dizem por aí, o costume. Ele pode ser traduzido em intimidade, à guisa de elogio. A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma, lugar onde ancorar a salvo do medo. A mesmice do outro não é chatice, é repouso. A repetição de seu ser nos envolve e acolhe como o café fumegante depois do almoço, ou o banido cigarro depois do sexo.

A duração de um amor não esbarra nisso, é a idealização das escolhas que a abala. Somos tolos como insetos em volta da lâmpada. Ficamos trocando de parceiro, renovando a expectativa de algo maior, relançando as apostas num encontro absoluto. Balela, amar é combater o desencontro a cada dia. Escute Clarice Lispector: “pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente”.

O convívio não destrói o mistério, pelo contrário. Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo. Não nos saciaremos um no outro. Ele nunca chegará a nos pertencer definitivamente. Um rio separa os amantes, travessias são possíveis, mas as margens não se fundirão.

Gulosos, consideramos que a felicidade seria fazer-se um: queremos mais do que encaixe, o objetivo é zerar a distância, anular a diferença, virar uma só laranja. Nesse caso, melhor casar com o espelho ou seguir em busca desse par perfeito, pulando de promessa em promessa, procurando no amor o tesouro escondido da felicidade.

O problema é que Amor e Felicidade sofrem da mesma sina. São inflacionados, acima de tudo incompreendidos e costumam não ser reconhecidos quando estão presentes. Por natureza, eles são discretos, deixam-se estar, suaves, dispostos a um bom papo, uma tacinha de vinho. Mas em geral são ignorados. Depois de um tempo, partem incógnitos. Os que não souberam reconhece-los sequer têm motivo para lamentar por isso, a ignorância protege.

Já a a Paixão e a Euforia nunca passam despercebidas, causam furor quando chegam e todos querem ser vistos e fotografados a seu lado. São barulhentas, jogam confetes em si mesmas e somem sem que se saiba quando foi que a Ressaca tomou seu lugar.

Os amantes ingênuos são mais afeitos ao estilo destas últimas. Como num parque de diversões eterno, esses insensatos ficam em longas filas, por dias, meses, anos, na chatice da espera, para viver aqueles instantes de furor, vertigem. Não gosto de vertigem. Prefiro gastar meu prazo tomando um vinho com a Intimidade. Essa, vos asseguro, é mais próxima da Felicidade. Acho que nunca terminarei de comemorar a permanência do amor como um presente que recebo a cada dia. Um pacote de presente que nunca abro. O mistério de seu conteúdo faz parte da felicidade de tê-lo em mãos.

Balão Mágico

O balão roxo fez sua aparição em um debate da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Cheio de gás, voava a meio metro do chão, a gana de subir domada pelo peso do cordão. Surgiu detrás do palco e fez uma entrada triunfal sob os holofotes, chamando a atenção do público. Satisfeito com o […]

O balão roxo fez sua aparição em um debate da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Cheio de gás, voava a meio metro do chão, a gana de subir domada pelo peso do cordão. Surgiu detrás do palco e fez uma entrada triunfal sob os holofotes, chamando a atenção do público. Satisfeito com o efeito perfilou-se, ladeando a primeira cadeira.

O lugar era do tradicional mediador de evento, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que gostou da surpresa. Espirituoso, primeiro olhou de lado, depois sorriu para o recém chegado e tocou-o como se fosse a cabeça de uma criança. Seguindo seu percurso exibicionista, o balão roxo postou-se na frente da jornalista Luciana Savaget, também apresentadora do evento, que o tomou nas mãos e lhe desenhou um rosto. Agora mais expressivo, ele foi encarando cada um dos palestrantes, causando graça até nos mais concentrados. Num grand finale, por conta própria, voltou para junto de Loyola, era seu lugar. Ficou ali parado, mudo mais saliente.

A jornada enfrentou seu primeiro ano sem o escritor Alcione Araújo, um dos seus mais tradicionais mediadores, morto faz um ano. Era naquele palco que, junto a seus colegas, ele imprimia uma condução que dava ritmo, tempero e coesão aos debates, numa parceria que durava desde 2001. Luciana cochichou ao ouvido de Loyola, que partilhou sua observação com o público: – “o balão é o Alcione”. A comoção, óbvio, foi geral. Estávamos frente a uma aparição, uma alusão lúdica, que naquele momento fazia o papel de fantasma.

Uma ausência só se torna compreensível quando ela contrasta com uma presença. Se há algo indigesto na morte é seu caráter definitivo: como assim, alguém passa a não estar em lugar algum? Como é que não há data prevista de reencontro, de volta? O nunca, o jamais, o para sempre carecem de registro, o pensamento colapsa. O buraco deixado pela morte é puro nada, mas através de pequenos encontros, detalhes, evocações do ser perdido, bordamos seus contornos, cerzimos uma cicatriz que, essa sim, jamais desaparece. O morto se eterniza nos que ficam. Encontrando restos deixados dentro de nós por aquela vida, andamos um tempo como bêbados, trôpegos de lembranças, enquanto a falta física ainda lateja. Para alguns, muitos desses achados são manifestações de um espírito que nos observa e pode se comunicar. Para mim são conjugações do luto, momentos em que a dor se materializa, fica visível. Fizemos do fortuito, como no caso do balão roxo, o solene embaixador da ausência de Alcione.

O luto só se encaminha para o território do suportável quando finalmente conseguirmos nos apropriar das memórias do ser perdido. O alívio só vem quando elas passam a ser nossas, tesouros internos, heranças resignadas à inexistência do seu protagonista. Porém, isso demora, arrasta suas correntes barulhentas pelos corredores da nossa mente. Enquanto o morto está ainda partindo em nós, fica pairando, à meia altura, encarando os envolvidos. Ele encarna nosso incômodo: queremos saber como é que a vida pode seguir, mesmo depois de se provar tão frágil.

Casulo de Tristeza

Casulo de tristeza: habitat das nossas transformações

Tristeza tem fim sim, mas é inevitável e, uma vez que ela chega, deve ser tratada como hóspede importante. Não adianta fingir que ela não está ali, no meio da sala com suas malas ao lado, pronta para passar uma temporada dentro nós. Melhor acomodá-la, fazer um café e ver o que ela tem para contar. Trata-se de visita que nunca aparece sem uma missão, se for levada em conta, mais cedo parte.

Ela surge bem cedo na vida, só que não é dado às crianças ficar suspirando por aí. É na puberdade, fase cheia de desânimo, que ela aprende a se instalar. A partir daí, volta e meia dá medo de viver e é preciso procurar abrigo. Há outros jeitos de desconversar a desesperança, mas não se cresce sem essas visitas. Carece construir um bom casulo de tristeza: ele é como um escudo protetor, um lugar onde se recolher para temer, questionar e olhar o mundo de fora. Entramos nessa espécie de abrigo em diferentes fases da vida, passa a ser o habitat das nossas transformações. Pensando assim, a tristeza parece algo bem menos pernicioso e assustador.

Quando perdemos um ser querido, certamente é hora de voltar para dentro. No luto, a morte espalha seu absurdo sobre cada detalhe da vida. Cada gesto, cada fato, cada idéia alardeiam ausência. Se conseguimos invocar uma presença hipotética daquele que partiu, supondo o que diria, do que gostaria, o que faria em tal ou qual situação, seu caráter imaginário de fantasma acaba se revelando e a tristeza nos engole. O mesmo ocorre com outros tipos de perda: o desemprego, uma separação amorosa, o exílio, só para citar alguns. São longos períodos de dor, nos quais continuamos nos surpreendendo com a falta da pessoa, do lugar, da ocupação. O trabalho do luto, ou seja, da tristeza, consiste em acreditar, aos poucos e a contragosto, no insuportável e incompreensível. A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim, como diz Caetano, e emenda: tudo demorando em ser tão ruim.

Recentemente, na nova edição do DSM, apelidado de “Bíblia da Psiquiatria”, incluiu o luto na patologia da depressão. A depressão é diversa do casulo de tristeza, de onde saímos superados e diferentes. Ela se parece mais com uma toca, da qual não se quer sair por nada e sequer se sabe bem como foi que se acabou lá. O manual tenta estabelecer prazos, no caso duas semanas, para diferenciar um luto necessário daquele que seria depressivo. Entendo esse esforço de compreensão do sofrimento, mas no que diz respeito à tristeza, as regras psiquiátricas parecem não falar sua língua. A música sim soube dizê-la: o samba é pai do prazer, o samba é o filho da dor, o grande poder transformador. Ao regulamentar a tristeza, ao suprimir seus aspectos positivos com remédios, ficaremos privados do casulo, da dor e de seu poder transformador.