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Médico & monstro

Esperamos que eles derrotem a morte, por isso a humanidade dos médicos acaba parecendo imperdoável.

Dizem que o filho de Deus teria resolvido voltar à terra para sentir de perto a realidade de seu rebanho. Em busca de uma identidade secreta, a de médico do SUS pareceu-lhe conveniente, pois curar já era um de seus atributos. Num posto, recebeu um paralítico a quem ordenou – “levanta-te e anda”, e o paciente saiu do atendimento livre da cadeira de rodas. O pessoal na sala de espera o indagou-o sobre o que achara do novo doutor. Ele respondeu que era como os outros: – “imagina, nem me examinou, só olhou e já me mandou embora”.

Essa piada ilustra o papel de deuses que atribuímos aos médicos, assim como da eterna insatisfação dos pacientes. Afinal, entre nós e a morte sempre há um deles. Ao fardo de situar-se no limite da existência, os profissionais têm reagido de diversas formas, muitos com seriedade e humildade, outros com soberba.

Só que há algo que está acima da condição individual, que diz respeito ao papel social superdimensionado da categoria. Depositamos neles uma expectativa quase delirante: imaginar a imensidão do seu poder convém, nos protege do medo da doença e da morte. Veneramos seu saber e os desprezamos e odiamos quando nos sentimos por eles desamparados. Infelizmente, alguns médicos e pacientes esquecem-se de que trata-se apenas de trabalhadores da saúde, fundamentais, mas de forma alguma divinos.

Entregamos enorme poder imaginário aos médicos pelo tanto que deles dependemos, mas principalmente pelas fantasias que temos a seu respeito. Eles fazem o que podem, usam sua ciência e competência a nosso favor, mas são gente como nós. Quantas vezes os odiamos justamente porque os endeusamos?

O médico que deixou seu filho Bernardo Boldrini em estado de indigência emocional, a ponto de ser assassinado pela madrasta, deixa-nos estarrecidos. Certamente porque espera-se de um pai o oposto do que ele fez. Porém, o constrangimento em torno deste caso provém de que o menino pediu ajuda à justiça, mas a casa de um doutor provavelmente parecia um lugar improvável para tanto mal.

Daqueles de quem esperamos, apenas, que nos livrem da morte, não seria perdoável que fossem perversos, omissos, corruptos. Foi o caso do nazista Josef Mengele, cuja monstruosidade se multiplica aos nossos olhos quando associada à sua profissão. Na fantasia, coube ao Dr. Frankenstein, imbuído do desejo da divindade, conceber a criatura horripilante feita de cadáveres. Na mesma linhagem fantástica, Dr. Jekill, também um médico, teve que ser o alter-ego destinado a encobrir a sanha assassina de Mr. Hide, o monstro.

Dos médicos, tão sobrecarregados pelo nosso imaginário de doentes apavorados, espera-se que tenham preparo para lidar com essa massa de sentimentos e expectativas. Por sorte, apesar dos que se iludem e acreditam na própria divindade, há muitíssimos outros, tão humanos como você e eu. Quanto a nós, pacientes, precisamos ter a coragem de livrar os doutores da onipotência que atribuímos a seu ofício.

Um psicanalista suficientemente narrativo

resenha do livro “A infância através do espelho” de Celso Gutfreind

Não é preciso ser órfão para ser adotado. Que o diga o escritor Celso Gutfreind, que cansou de “ser adotado” por escolas inteiras. Os alunos costumam ler e discutir algum dos seus livros (são 31, muitos deles de literatura para crianças), até o grande dia do encontro com o autor, onde conversam e o questionam.

Em um desses eventos, ele comentava a história de um personagem, um garoto que sofria de rejeição amorosa – Liana, sua amada, não aceitara o convite para dançar – quando um aluno fez uma pergunta fulminante. Questionou se, caso Liana pedisse para ele se matar, acederia. Assustado, o autor, que também é psicanalista de gente grande e miúda, respondeu que não, até o amor tem limites. Os olhos foscos do pequeno interlocutor não disfarçaram a desilusão: essa não era a resposta certa. Por essas intuições que os psicanalistas e os poetas têm, sim o autor também é poeta, ele tentou outra resposta: – Puxa, se é por amor, tem seu charme.

A afirmação foi arriscada, poderia estar autorizando o suicídio e nunca se sabe. Mas como poetas e psicanalistas vivem de cutucar a fera, conforme escreve ele, acabou falando o que parecia conveniente naquela hora. Depois soube pela professora que o menino era filho de um traficante morto e uma mãe suicida. Foi aí que entendeu que acabara de oferecer a uma criança órfã uma história em que amparar-se. O garoto passou a ser filho de um casal que se amava, onde sua mãe se matara por amor ao pai. Talvez não tivesse sido bem assim, mas era uma boa versão, a melhor possível para ele.

Nos anos de jovem psicanalista, Celso doutorou-se na França, onde conduziu um trabalho com crianças institucionalizadas, privadas de suas famílias. Vê-se que a orfandade lhe é íntima. A estas, propôs uma terapia com contos de fadas, que as deixou menos a sós com suas feridas incuráveis. Neurose e trauma entram onde a poesia falhou, explica-nos ele. Por isso mesmo decidiu que a literatura, forma derramada da poesia, poderia restituir algo do que a vida havia lhes arrancado. Para tanto, nada melhor do que histórias maravilhosas que foram lapidadas e consagradas por séculos. Se não era possível recuperarem os pais, pelo menos ficariam com algo do que eles teriam lhes dado caso tivessem podido continuar com seus filhos.

Para este psicanalista prosador, a narrativa é a forma em que os pais passam de fora para dentro de seus filhos. É como lhes deixam seu legado e os ajudam a nascer subjetivamente. Para tanto, alcunhou o termo “mãe suficientemente narrativa”, neste caso, representando ela o mar de histórias em que somos nutridos, banhados e batizados. Aqui vale contar outra história.

Há uma década atrás, escrevi com Mário um livro sobre psicanálise dos contos de fadas. Foi nessa ocasião que conhecemos Celso, na época já uma referência no assunto. Pedimos para utilizar e mesmo brincar com a expressão de sua autoria, falando de “pais suficientemente narrativos”. Ele aquiesceu, mas atribuiu a origem do termo a um colega francês, a quem já havia recorrido para consultar a fonte da ideia. O detalhe é que aquele tampouco lembrava em que ocasião teria alcunhado a expressão e assim ela acabou referida a uma comunicação oral.

Assim, o que era para ser um conceito, digamos, científico, pois fazia parte de uma séria tese de doutorado, acabou filiado a uma tradição narrativa, onde aquele que conta lega a autoria ao que escuta. É isso que fazem os pais, quando são suficientemente narrativos, é por isso que ele afirma que a mãe é literatura para o bebê. No caso dele, isso não é retórica, é pesquisa acadêmica, mas também é experiência clínica, é a vivência de ser pai e a de autor suficientemente adotado pelos seus pequenos leitores.

Chegamos então ao último de seus livros: A infância através do espelho, que está sendo lançado pela Editora Artmed. São dessa obra as histórias que conto aqui. Ao longo de duzentas páginas, ele tece as várias modalidades de vínculo entre a literatura, que diz ter sido sua primeira psicanálise (e Mário de Andrade um de seus primeiros analistas) e a teoria que hoje é a base de seu ofício de psiquiatra. O livro transita entre contos de fadas, relatos jocosos sumamente divertidos, histórias clínicas e a análise de obras poéticas como a de Emily Dickinson, Bandeira, Drummond. Longe das formalidades, além dos autores consagrados, ressalta o lirismo de uma frase proferida por uma pequena paciente: – Espremi tuas orelhas e saiu leite.

Se das orelhas de um analista pode verter esse líquido fundamental, é justamente graças à arte de transformar lacunas em boas e bem contadas histórias. Por bem contadas entenda-se que não se trata de prêmios literários, mas da eficácia da narrativa. A psicanálise como ciência é a arte da esperança, ensina-nos, e enquanto prática, insiste, é possibilitar o desenvolvimento da capacidade narrativa.

Uma última história para finalizar. Celso tinha um avô que fumava cachimbo, tomava cachaça, contava piada com sotaque polonês carregado no erres. Desde cedo propôs: – Escreverrrás a minha histórrria. O neto esperou, mas a história não vinha. Teve paciência, ficou por perto e entre goles e gols de partidas compartilhadas, o velho foi soltando seus causos, aventuras, guerra, a perda dos pais. Mesmo assim, para atender ao pedido de contar a história dele foi preciso incluir as lacunas, pois nem tudo consegue ser dito. Mas tenta-se. A isso o neto crescido dedicou sua obra.

O Dr. Gutfreind se explica: Até hoje a narração é cheia de silêncios, criptas e nós. Até hoje ela é poesia, mesmo quando se propõe a ser ensaio. É poesia para os vãos da prosa do meu avô. É fundamental saber dessa história para compreender o estilo da escrita marcada por essa missão. Ela legou, sem sombra de dúvida, um psicanalista suficientemente narrativo.

O ano da procrastinação

O que ganhamos adiando as tarefas?

O verão é uma época em que nada se resolve, nada se entrega, nada termina. Não adianta crescer, para sempre ficaremos esperando uma espécie de volta às aulas. Só que este ano, o Carnaval adentrado em março, prorrogou o início do ano para meados do terceiro mês. A complicação do calendário atrapalha negócios, prazos e tarefas, mas vem a calhar para nossa mente procrastinadora. Procrastinar é uma palavra empolada e útil, quer dizer postergar, adiar, evitar a realização de uma tarefa. Vou tentar explicar nossa familiaridade com esse funcionamento.

Imagine que tenho que visitar uma tia idosa gravemente doente, uma parente dessas a quem  deveríamos, mas não conseguimos, nos sentir ligados. Sinto que devo ir ao hospital, mas não vou. Graças a esse comportamento omisso, a cada coisa que faço fico pensando que em vez disso deveria visitar a tia doente. Se tivesse ido, a esqueceria e só voltaria a evocá-la quando alguém me avisasse do fim do sua agonia.

A cena que fabulei acima serve para todas as pendências às quais nos apegamos. Há tantas tarefas marginalizadas que acabam ocupando nosso centro, de tal modo que fica difícil fazer outra coisa. Ruminações e pensamentos obsessivos são uma cachaça: culpamo-nos, ficamos pensando compulsivamente em que estamos em falta, nos distraímos do essencial obcecados por tarefas que só se tornam relevantes se não as fizermos.

Pode parecer estranho, mas há certa conveniência no sofrimento pelo fracasso antecipado. Não cumprir com a obrigação vem a calhar para cultivar a culpa e fazer-se inúmeras auto-acusações. Afinal, isso acaba sendo mais cômodo, pois se já estamos condenados mesmo, nem adianta tentar, deixa assim! A tia nunca será visitada, o trabalho não será escrito, o relatório não ficará pronto, a encomenda nunca chegará ao destino, a arrumação pode esperar e assim por diante.

Para que servem essas situações desagradáveis? No caso da tia doente, por exemplo,  provavelmente não passa de covardia, medo de pensar no fim, no próprio envelhecimento, ou dos pais. Se for um trabalho que não se realiza, ou nunca se termina, podemos sempre imaginar que sairá perfeito. Enquanto não começamos ele é potencialmente uma obra prima. Na prática somos falhos, enquanto em hipótese somos geniais.

Há uma personagem de Melville, o escrivão Bartelby, que representa caricaturalmente a recusa a tudo que se pede a alguém. O sujeito empregou-se numa repartição mas esquivava-se a qualquer tarefa. Frente a qualquer mínima solicitação, ele invariavelmente respondia: “acho melhor não”. Às vezes nos parecemos a ele.

A procrastinação e a culpa andam juntas. A paralisia que elas nos impõem é uma cilada, achamos melhor não fazer algo vida real para ficar cultivando alguma preciosa fantasia inconsciente. Azar da titia, e principalmente nosso. Já estamos em abril e pesa sobre as costas tudo o que nos determinamos a resolver no mês passado, um início postergado do qual esperávamos tanto. Falar nisso, acho melhor não terminar nada antes de julho, este ano só vai começar depois da Copa.

Noites no Aqueronte

Há utilidade e até poesia sutil em certas bagunças renitentes.

Ao lado da cama, sem perceber, eu havia ancorado um minúsculo barco de metal. Dentro dele uma moeda esquecida. Um dos tantos objetos sem sentido que preenchem uma casa. Já reparou que sempre há algumas quinquilharias que nunca vão para seu lugar? Sabe por quê? Porque aquele é o seu lugar. Foi assim com meu barquinho despropositado.

O enfeite herdei do meu pai, na verdade o recolhi entre seus objetos, depois que ele se foi. Ele não o teria dado, estava usando. Como eu, tinha-o parado ali em seu porto, pronto para levá-lo de volta para casa. Eu não tinha entendido essa missão.

Meu pai veio de barco para a América, fugindo do nazismo. No porto foi a última vez que viu seu pai e seu irmão, mas na ocasião ele não sabia disso. Quem sabe se pudesse navegar de volta àquele momento pudesse evitar, ou mesmo despedir-se com um verdadeiro adeus. Ele partiu com um até logo, que sempre lhe pareceu insuficiente.

Quer sejamos religiosos ou não, imaginamos que nossos mortos sempre estão em algum lugar, no mínimo aquele onde nossos pensamentos os visitam. Talvez para esse fim, ou mesmo para o seu fim, meu pai tenha guardado sua pequena embarcação de metal.

Para os gregos, era um barco que levava para o Hades, terra subterrânea dos mortos, sua última morada. Não era céu nem inferno, apenas um outro lugar. Porém, o acesso não era gratuito: custava uma moeda, entregue a Caronte, o soturno barqueiro incumbido da travessia do rio Aqueronte. Para tanto, na cerimônia de despedida dos mortos, uma moeda era colocada na boca ou nos olhos do defunto, que partia com o pagamento necessário. Precavida, jamais vou dormir sem uma moeda em meu barquinho. Pelo jeito, tomei precauções sem notar, pois não quero ficar navegando a esmo para sempre.

Cada noite de sono é uma visita às margens do Aqueronte. O abandono do corpo, indispensável para dormir, requer também abrir mão da consciência de si. Ficar inconsciente, nem que seja pelas horas que separam um dia do outro, pode dar medo, é como morrer temporariamente.  Meu barquinho representa tudo isso, tão pequeno e tão carregado. A morte de cada noite, o extermínio do qual meu pai fugiu, outros não, sua espera pela viagem final e a minha.

Repare nas suas pequenas bagunças, elas encerram em si muito mais verdades do que os enfeites de nossas casas. Os objetos decorativos são como a cara que apresentamos ao espelho, nossa versão editada. Já os aparentes desleixos, principalmente aqueles objetos que se abancam num lugar como se tivessem vontade própria, esses contém muitas verdades. A minha, é que vivo a cada dia consciente de que estou nesta margem apenas por um tempo. Grata pela sua duração, mas quando for a travessia, quero estar preparada.

Sou cisgênero

Muito além da visão binária, escolha entre cinqüenta opções de gênero!

O garoto, lápis na mão, pergunta à mãe: – o que é sexo? Ela larga o que fazia e começa uma delicada explicação, que envolve amor, sementinhas, talvez algum detalhe anatômico. Entre divertido e surpreso ele acrescenta: – mas o que devo marcar aqui, masculino ou feminino? É quando ela percebe que ele só queria ajuda para preencher um formulário… Essa piada é clássica, revela que sempre pensamos além do que se diz e em geral sobre sexo. Só que hoje ela está deixando de fazer sentido.

Num formulário tradicional, provavelmente as opções seriam Masculino, Feminino ou, adicionado mais recentemente, Outro. Isso se não for o Facebook americano, onde a partir de agora serão possíveis cinquenta opções para você designar sua identidade de gênero. Entre as possibilidades de denominação hoje disponíveis é possível designar-se lésbica, gay, travesti, transexual, andrógino, bigênero, intersexual, pangênero, entre outros, se nos ativermos à identidade de gênero. Quanto à orientação sexual, ou seja, a definição de a quem é que desejamos e amamos, podemos ser não somente ser homo, hetero ou bissexuais;  você poderá ser assexual, pansexual, ou mesmo declarar-se predominantemente homossexual, basicamente heterossexual ou vice versa.

O termo “gênero” surgiu na esteira das pesquisas da antropóloga Margareth Mead, que fez o levantamento de impressionantes diferenças culturais na construção dos papéis feminino e masculino. Elas tornaram inquestionável a posição de Simone de Beauvoir de que ser mulher é algo que não se nasce, torna-se. O que ambas queriam ressaltar é que a resposta para o formulário do garoto é mais complexa e ainda mais complicada do que sua mãe supunha. Diante desses novos debates, as sementinhas ficaram obsoletas.

Se um formulário tivesse que se ater a dois campos, hoje seriam talvez assim: (     ) Cisgênero – que você deve assinalar caso sua identidade esteja em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer – ou (     ) Transgênero –  assinalando uma discordância entre o sexo biológico e a sua forma de ser.

Na verdade, a divulgação e até mesmo a oficialização dessas múltiplas alternativas levanta um dos maiores tabus da nossa cultura: a falsidade da dualidade e oposição entre masculinidade e feminilidade. Estas identidades estão a léguas de qualquer obviedade, tampouco representam tudo o que somos e sentimos. Por que temos tanto medo da queda da máscara dos dois sexos opostos? Porque é uma das raras certezas que temos cultivado sobre como se deve ser, fora delas, a liberdade de opções apavora. A mediocridade se alimenta de parâmetros binários.

Longe de temer essas inovações, deveríamos entender que elas carregam uma utopia, um sonho: o de que a identidade sexual não seja uma sina, um peso insuportável de ser carregado. Crescemos inquietos, envergonhados e sempre inseguros de estar à altura de ser verdadeiramente homens ou mulheres. Já está na hora de mudar esse desafio. A certeza nunca virá, mas a violência contra aqueles que abalam as estruturas jamais falta.

Nus e pelados

nudez não é uma questão de roupa

Nus e pelados

Lembro do dia em que descobri o que era a nudez. Era carnaval e não havia baile infantil de clube ou de rua naquela cidade uruguaia, a folia era simples e sem graça: circular pelas ruas mais povoadas do balneário, esperando e temendo ser atingida por uma bombinha d’agua ou um jato. Era isso que os garotos faziam, e eram eles que me interessavam. Com sorte, o banho seria de confetes ou serpentinas, mas eu não conseguia decidir se isso era um mérito em relação à ser atingida pela água, mais incômoda, ou um descaso.

Não sei que idade tinha, mas acho que não havia atingido os dois dígitos. Minha fantasia era composta de um sarongue e um colar daqueles de flores de plástico, usados sobre a parte de baixo do biquini. A parte de cima, naqueles tempos mais ingênuos, sequer era usada na praia. Sarongue, colar e flores para a cabeça, saí toda primaveril para a rua, disposta a brincar de temer ser molhada.

Foi quando notei a presença dos meus seios. Não me refiro aos reais, que nem sugeridos estavam naquela ocasião, mas sim àqueles que um dia apareceriam. Foi naquele dia em que pela primeira vez me senti nua. O fim da infância chegou, sem anunciar- se, em pleno Carnaval.

Meia quadra depois corri para casa de volta, completei a fantasia com o resto do biquíni, mas já era tarde: mesmo oculto meu corpo de criança já tinha o que mostrar. A nudez é um sentimento que pode atingir a pessoa mesmo quando não há nada para ser visto, assim como pode estar ausente quando tudo está explícito. O que me expôs a um olhar cuja existência eu ignorava até aquele Carnaval foi o desejo que senti de ser alvo das brincadeiras dos meninos.

O Carnaval está aí para que a sensualidade possa se exibida, enfeitada, fantasiada, desnudada ou travestida, numa festa civilizada. A exposição dos corpos de passistas e destaques carnavalescos é, no fim das contas, tão educada como uma praia de nudismo, onde pode-se andar sem roupas sem ser incomodado.

Já o desejo que a nudez revela é diferente do direito de andar pelado e rebolar em público, ele se alimenta daquilo que quando visto produz algum efeito, algum rubor, algum frisson nos envolvidos. Pode e costuma ser controlado, mas move montanhas. No começo da vida de todos há esse divisor de águas: aquele momento do surgimento da nudez, no qual o corpo se torna desejável. A partir daí a intimidade é necessária e a porta do banheiro se fecha para os olhos da família.

O momento carnavalesco dessa história de infância foi dado pela oportunidade de parecer uma havaiana. A diversão estava garantida se tivesse continuado o passeio sem ficar envergonhada, mas fui atropelada por um desejo que ainda desconhecia e toda nudez tem algo a ver com ele: a ideia de que o que pode ser visto denunciará as mais recônditas fantasias do portador. Essas fantasias não desfilam, elas costumam sair na calada do sexo, na intimidade dos casais. Os pelados da avenida são lindos, exuberantes, vistosos e sejam bem vindos. Mas nudez, meus amigos, essa é outra coisa e, por sorte, não ocorre somente no Carnaval.

Eduardo Coutinho, o cineasta psicanalista.

A arte de perguntar, no cinema de Eduardo Coutinho e na psicanálise.

O psicanalista é um anfitrião que recebe pessoas para conversar. Sua arte consiste em colocar as perguntas certas, essas que levarão o assunto para um território novo, de preferencia surpreendente para o paciente. Mas é muito difícil compreender o que faz um psicanalista sem submeter-se à experiência de uma análise. Há livros técnicos, assim como literatura onde pacientes e analistas são personagens, onde pode se matar um pouco da curiosidade. Para tentar entender esse ofício, pelo menos aproximativamente, recomendo assistir “Edifício Master: um filme sobre pessoas como você e eu” (2002).

Este janeiro cheio de perdas deixou-nos sem um poeta do documentário: Eduardo Coutinho, autor desse filme. O Master é um prédio em Copacabana: 276 pequenos apartamentos, onde vivem aproximadamente quinhentas pessoas. A equipe foi visitando os moradores e colhendo suas histórias, das quais Coutinho selecionou algumas para compor o documentário. Estruturalmente idênticos, abrem para uma maravilhosa diversidade quando a equipe bate à porta. O cineasta não é invasivo, mas faz perguntas difíceis, sempre atento aos pontos delicados da conversa, centro de seu interesse.

Os entrevistados abrem o coração, choram, cantam, recitam, gargalham, se queixam, lembram glórias, contam grandes histórias sobre pequenas coisas e, inevitavelmente, fazem um balanço da sua vida. Muitos são velhos, mas há alguns jovens e todos têm uma trajetória para contar. Uma moça que morava sozinha e lamentava a perda do zelo dos pais e avós, conta a história de uma voz de criança que ela escutava através do respirador. Embora curiosa, não conseguia tomar a iniciativa de descobrir o rosto daquela pequena, cuja vida espreitava. Provavelmente essa voz representava a criança que ela estava deixando de ser.

Emoldurada pela câmera toda vida torna-se grande. Aliás, é exatamente isso que fazem os escritores: transformar o prosaico em poético, a vida comum em evento literário. Meu espaço, o consultório, também é sempre idêntico. Ambiente invariável, como são os apartamentos do Master. O que muda são as vidas que passam: relatos de minúcias, queixas, ressentimentos, bravatas, vergonhas, sonhos noturnos e diurnos. Através das histórias que escolhe para contar, ao longo do dia cada um que entra vai ocupando meu espaço a seu modo. A escuta do analista é atenta aos momentos sensíveis do relato. Por vezes é a história de um trauma, um acontecimento marcante, por outras, a vida encontra suas encruzilhadas em sutilezas, como a voz de uma criança no respirador. O cenário pode ser fixo, variadas são as pessoas.

O documentário é uma arte na fronteira entre a ficção e a realidade e Coutinho dedicou-se acima de tudo aos relatos, por vezes longe dos fatos. Pouco importa: sofremos menos dos fatos e muito mais dos pontos de vista, da forma como narramos a realidade. No cinema de Coutinho, assim como no consultório do psicanalista, realidade e ficção são indissociáveis.

Errata

Errei, e agora? Melhor descobrir o que isso significa!

Sabe aquele sentimento terrível, quando percebemos ter feito uma bobagem? Pode ser um comentário infeliz, um mail bomba, o esquecimento de uma data, a perda de um prazo, enfim, todas aquelas situações em que que só percebemos o erro após dito, feito, depois de enviar. Após o gesto ter se tornado irremediável, só resta ao infeliz a certeza de que sua reputação acaba de cair na lama e o chão se abre sob os pés.

Pois foi exatamente o que me ocorreu quando, ao receber a edição da Vida Simples de novembro, constatei que havia trocado o nome do autor da citação que coloquei na frase final da coluna. As palavras eram de Valter Hugo Mãe, mas as atribuí a Mia Couto, ambos escritores que adoro. Poderia ter sido um verdadeiro engano, pois minha memória não é boa para citar nomes de autores, atores, filmes e livros. Nesse sentido já nasci idosa, falo por evocações: “sabe aquele ator, aquele moreno bonitão que fez vários filmes do diretor espanhol cujo nome tampouco me vem à mente?”.

Porém, neste caso, tenho certeza de que o erro não foi fruto de uma imprecisão da memória. Foi um lapso, que é um truque da atenção através do qual uma mensagem do inconsciente é contrabandeada. Freud citou vários exemplos de lapsos em Psicopatologia da Vida Cotidiana, como o de um sujeito que, ao abrir uma sessão solene, que prevê será tediosa, inútil e interminável, denuncia seu sentimento dizendo: – “declaro encerrada esta sessão”.

No meu caso, a chave do lapso estava nas palavras “Mãe” e “Mia”. Tenho uma mãe muito eloquente, cheia de histórias. Muitas delas, assim como expressões que ela usa, tornaram-se inspiração para meus textos. Considero-a uma fonte inesgotável de narrativas, embora ela diga que distorço tudo, invento palavras como se fossem dela. Cacoete de cronista. A palavra “mia” em minha língua mãe (para ser redundante), o espanhol, quer dizer “minha”. Portanto, através dessa troca de autores, transformei uma afirmação de alguém chamado Mãe em minha. Essa é a apropriação das palavras da minha mãe que costumo fazer.

Ser filho é herdar um acervo de histórias e com elas tecer nossa identidade. Na prática consiste em transformar histórias que são da mãe, do pai ou dos avós em próprias. Usar uma citação e atribuir-lhe erroneamente a autoria é o mesmo: uma desapropriação das palavras do verdadeiro dono, um plágio disfarçado.

Incorporamos à nossa identidade traços que nos interessam, embora também herdemos algumas sinas que repetimos sem querer. De qualquer modo, convêm observar que tendemos a escolher para usar como nosso aquilo que admiramos. Nesse sentido, imploro que Valter Hugo Mãe considere minha falta como uma homenagem sincera. Apesar de que o chão insista em continuar abrindo-se sob meus pés.

Perdidos em Montevideo

Visitando o vizinho Uruguay, remendando a esperança esfarrapada.

Sou a pior navegadora do mundo e posso dar-me a esse luxo graças à boa bússola interna do meu marido motorista. Porém, ela falhou quando ele resolveu entrar em Montevideo por um “atalho”. Perdemo-nos feio. Por longo tempo vagamos por uma parte da cidade que desconhecíamos, feia, pobre e labiríntica, na qual a cada tentativa de sair nos internávamos mais. Além disso, homens detestam parar para perguntar.

Na periferia humilde da capital uruguaia turistas são sempre acidentais. Composta de blocos de moradia popular, casas simples, ruas em obras ou estreitas, sem arborização, era uma paisagem totalmente desprovida do charme que os brasileiros têm buscado cada vez mais em suas férias.

Perto das nossas favelas, a pobreza montevideana seria de fazer-nos derreter de vergonha. Apesar disso, o presidente uruguaio Mujica tem no problema da habitação sua principal fonte de preocupação, a ponto de destinar a maior parte do próprio salário a um programa de moradias populares, sua menina dos olhos.

O passeio foi um percurso involuntário, estávamos em um lugar estrangeiro do país que nos é tão familiar. Lembrei dessa condição de estar deslocado, pouco à vontade em um espaço, ao ler sobre os Rolêzinhos paulistanos: movimentos de invasão ruidosa mas pacífica dos Shoppings por parte de jovens que são visivelmente habitantes da periferia. Não se trata de arrastões, eles nada roubam, vão somente marcar presença, apoiar-se uns nos outros para forçar a entrada em um espaço onde só o fariam enquanto invisíveis.

Na prática, eles já frequentam esses templos de consumo. Ninguém lhes impede a entrada desde que estejam de uniforme, touca, lavando o chão, limpando, cozinhando, consertando, construindo e, principalmente, de olhos baixos. Já se estiverem vestidos de festa, barulhentos e visíveis, serão expulsos, presos e causam pânico nos nativos do centro comercial.

Em Montevidéu fizemos esse Rolêzinho ao contrário, invadindo uma praia que não era nossa. Embora não tenhamos sido escorraçados, estávamos fora de lugar, estrangeiros perdidos numa parte feia da cidade, fora da rota turística. Valeu só para constatar que as diferenças sociais deles são muito menores que nossa abissal divisão de castas, raças e territórios.

Não faz muito tempo o Uruguai sofria uma estagnação econômica, uma visível decadência que expulsava os jovens para fora de suas fronteiras. Hoje, angariando a simpatia mundial, o pequeno país lidera em qualidade de vida, liberdade e tolerância. Eles ainda têm muitos problemas, mas há um clima de mudanças, fruto da coragem da população e dos governantes por ela escolhidos para fazer diferente. Recomendo, seja por caminhos achados ou perdidos, uma visita ao Uruguay. Tão longe do Maranhão miserável e feudal, nossa vergonha nacional, essa pobre, mas próspera, parte de Montevidéu deu-me uma lição de esperança. Parece possível apostar em um país onde seus habitantes não estejam condenados a viver em guetos, entrincheirados pela miséria, pelo preconceito e pelo medo.

02/02/14 |
(3)

O prazo do luto

Luto: a hora de deixar os fantasmas tornarem-se lembranças (a propósito de um ano do incêndio da boate Kiss, amanhã)

Abandonamos quase todos os rituais. Hoje eles são uma caricatura do que foram em um passado recente. Se vivêssemos décadas atrás, agora, no aniversário de um ano das mortes da boate Kiss, estaríamos levantando o luto, o período previsto para sofrer estaria cumprido. Voltaríamos a usar roupas normais e estaríamos liberados para as alegrias da vida. Podemos objetar, e com toda razão, que um prazo assim é arbitrário, um luto dura enquanto dura, é um tempo subjetivo, pessoal. Cada um sabe quanto precisa para juntar seus cacos e seguir em frente, qual é a hora de dar-se conta de que há outros que contam com sua presença. Talvez fosse mais fácil fazer um luto quando ele era tabelado, cercado de prescrições que só nos cabia seguir. Mas os tempos de hoje são de uma maior solidão para esse processo, não existem parâmetros, cada um tem que inventar sua maneira de lidar com a dor.

Enquanto vivemos possuídos pelos efeitos da perda, nossos mortos sobrevivem nos sentidos: são vistos e escutados. Aliás, não é à toa que na ficção há tantas casas assombradas: é na intimidade que as lembranças ganham corpo, as casas são os cemitérios preferidos dos nossos sentimentos. Juramos ter visto uma sombra, que se favorece dos jogos de luz, os ouvidos detectam os passos, a chave na porta, o quarto vazio guarda ecos de ruídos ausentes. A imagem preservada pelo amor substitui o corpo que fomos obrigados a nunca mais ver.

Com o tempo os fantasmas se transformam em lembranças. Estas têm uma característica inquietante, que é sua aparente arbitrariedade, pois nunca temos certeza de que são verídicas. Sua natureza é contrária à realidade, só existem porque algo deixou de existir. Lutamos contra essa transformação com todas as forças, agarramo-nos aos fantasmas, única presença possível de alguém que se tornou ausência. O maior apoio dessas aparicões são seus objetos, seus cômodos se tornam mausoléu onde celebrar a perda irreparável. O que ontem era deixar de usar as vestes negras, sinal de um luto oficialmente encerrado, hoje passa a ser o momento de desfazer-se de objetos, roupas, ninharias, de reconhecer que já não há sequer um fantasma que reclama um lugar para morar.

Nesse processo de abrir mão dos restos materiais daqueles que perdemos, há algo que reencontramos: voltamos a notar a presença daqueles que restam vivos ao nosso redor. São pais, irmãos, filhos, netos, sobrinhos, maridos, esposas e amigos que precisam sentir-se importantes, fazer diferença. Entregues à dor demonstramos que só nos importava aquele que partiu. Infelizmente, no sofrimento somos egoístas, negando qualquer valor aos outros vínculos que não foram perdidos. Por amor aos que não morreram é preciso deixar o morto tornar-se lembrança, tirar da alma os trajes negros, resignar-se a viver.

Um certo exagero da mídia em falar do assunto é também uma resposta coletiva para ajudar em problemas individuais. Como já não temos regras do que vestir, como portar-se, como sofrer, o compartilhamento social ajuda a cada um dos familiares e amigos. Acaba sendo uma forma nova para um problema velho, uma ajuda para seguir em frente depois de enterrar pessoas amadas.