Posta Restante
Filhos crescidos órfãos de seus pais são remetentes de uma carta sem endereço.
Quando precisamos enviar uma carta para alguém que não tem como indicar um endereço para recebe-la, a destinamos à Posta Restante. Dessa forma, ela vai para a agência de correios da região mais próxima e espera-se que o destinatário vá buscá-la. Vou ter que lançar mão desse recurso, porque é quase dia dos pais e preciso urgente dar uma notícia importante para o meu.
Acontece que ele se foi para sempre. Estou com o problema dos filhos órfãos, mesmo que tardios, que sequer possuem uma Posta Restante para usar. Há órfãos da vida toda, mas, seguindo o curso natural, esse desamparo próprio da orfandade acaba chegando para todos. Nesses casos, precisamos usar a imaginação, travar diálogos na fantasia para contar as novidades. Queria muito contar ao meu pai que seu neto, meu sobrinho portenho, acabou de se formar. Ele agora é segundo psicólogo da sua geração na família. Como fazemos quando os pais já não têm como ficar sabendo dessas coisas?
Sei que há genitores indignos de serem chamados de pais, que são narcisistas, malucos, destrutivos ou indiferentes à vida dos filhos. Por sorte, são minoria. Já os que vestiram a camiseta da paternidade são os maiores entusiastas, interessados nas gracinhas iniciais, assim como nas conquistas posteriores das suas crias. Ao longo da vida teremos que dar jeito de angariar novos públicos: amigos, amores, colegas, filhos, mas com os pais já temos a garantia, de saída, de uma plateia inicial.
Pior, que fazer conosco nos dias de homenagem, quando não há a quem presentear? Há substitutos: figuras paternas que nos inspiraram, nos cuidaram ou nos amaram, mas o tempo vai nos roubando também a estes, deixando-nos à deriva, como uma carta sem endereço.
Com meu pai, nos últimos anos, desenvolvemos uma forma intimista de comemoração: em alguma hora do domingo íamos a um café conversar e passávamos a vida a limpo. Era um engenheiro, homem de relatórios, objetivos claros. A formatura desse neto estava entre suas metas, iria alegrar-se muito, mas para onde mando o relato minucioso do evento?
Nossa forma de celebração servia para lembrar que a vida dos filhos é o melhor presente para seus pais. Muito mais difícil de oferecer do que um objeto de loja, é a continuação de seus ideais que eles gostariam de receber em troca do tanto que sonharam em nós. Embora esse tipo de oferenda pareça uma missão irrealizável, na verdade a falta dela acaba sendo muito mais difícil de suportar. Pais são aqueles a quem destinamos nossas notícias, enquanto os filhos são os remetentes. De um jeito ou de outro, sempre resta algum lugar para onde postar. Mesmo que em pensamentos.
Não perturbe
Quartos de hotel são um limbo necessário.
Terra de ninguém, isso é um clássico quarto de hotel. Os quadros serão meramente decorativos, o ambiente tem que ser paradoxalmente impessoal e acolhedor, sem marcas dos habitantes anteriores. Como uma prostituta dos ambientes, não entregará nada além do previamente pago e acordado. Recebe-nos com competência e nos expulsa com constrangedora objetividade. Numa espécie de vingança, deixamos para trás lixo e bagunça sem dó, mas percorremos os cantinhos temendo esquecimentos. Os lugares ocupados tornam-se ciladas, gavetas e armários parecem querer roubar-nos, prevalecer-se da confiança que lhes depositamos.
Há uma cena no livro As Horas, de Michael Cunningham, na qual Laura, uma dona de casa grávida e desmotivada aluga um quarto de hotel por um tempinho: busca um lugar onde não tenha que desempenhar nenhum tipo de papel. O hotel é não estar em parte alguma, imperturbável, a imaculada ausência de cheiros, o ir e vir vigoroso, impassível. Tira os sapatos e, sobre a colcha esticada deita-se para retomar sua leitura de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Na verdade, pondera sobre o suicídio, cometido por um ex-combatente traumatizado e enlouquecido, personagem do livro e por sua autora.
Ali, naquele lugar peculiarmente vazio, ela escolhe continuar existindo. Morrer seria uma maldade com os seus, um gesto que abriria um buraco na atmosfera, através do qual tudo aquilo que criou seria sugado. O suicídio não a tentava de fato, apenas queria viver por escolha.
Dormir fora, mas sem estar na casa de ninguém, conecta-nos com certa autenticidade: é onde não somos ninguém que melhor nos conhecemos. Ali podemos terminar trabalhos pendentes ou descansar das jornadas turísticas, entregar-nos à intimidade sexual, ou mesmo viver angústia da eminência de uma palestra, reunião ou encontro e voltar com a ressaca do dever cumprido. Tenho duas amigas escritoras que acham hotéis inspiradores para pensar, como fez a dona de casa frustrada. Roupas sujas, souvenirs, sacolas de compras, shampoos ruins e toalhas sempre pequenas demais…
Talvez, das sempre desejadas férias, os hotéis (ou similares) sejam uma das partes mais importantes. É neles que ficamos à vontade no anonimato, que é a melhor parte das viagens. Precisamos ser amados e importantes, mas isso também exaure. Os vínculos exigem-nos estar à sua altura deles, alimentam mas também sugam, até o ponto em que não temos a menor ideia de por que vivemos. Um quarto de hotel é um limbo necessário. De tanto em tanto é preciso sair da vida, olhá-la de fora, o que é diferente de morrer. Só que na volta é sempre bom ter algo à nossa espera, nem que seja o cheiro peculiar da nossa casa e a confiança nas gavetas.
Floreando os pensamentos
Para que fazemos dramalhões ridículos
Sempre me considerei uma daltônica funcional. Entro em pânico quando necessito combinar cores e estampas. Ninguém avaliou o desgaste que significa produzir bons encontros cromáticos a cada manhã, com o cérebro ainda adormecido. Só o preto salva. Essa dificuldade também comparece quando compro móveis e tapetes.
Ao trocar as poltronas do meu consultório escolhi umas de tecido alegre quadriculado. Na minha sala já havia um divã vermelho, floreado, mas ignorei o provável excesso de referências e me apaixonei pela vivacidade do tecido. Depois veio o rebote. Móveis levam um tempo para serem entregues, durante o qual quadriculados de cores berrantes e flores gigantes dançavam na minha mente, caçoando de mim.
Até que as poltronas chegaram: tinham uma estampa suave, e em nada conflitavam com o detalhe sutil das flores do divã. Meu mau gosto não seria, desta vez, denunciado. Agora quem ria de mim era a realidade, revelando a inutilidade de toda aquela ansiedade.
Apesar do vasto currículo da minha própria neurose, da faina de psicanalista com as caraminholas alheias, a capacidade de complicar que temos ainda me assombra. Os neuróticos sofrem de excesso de sentido, emprestam demasiada carga aos pensamentos. Em agoniados devaneios, revestem de caráter dramático e transcendental certas miudezas ou diálogos insignificantes. Não há banalidade da vida frente a tanta criatividade.
A salvação dos psicanalistas, e dos neuróticos, está na descoberta de que não há pensamentos inúteis, apenas deslocados ou disfarçados. Minha preocupação com esses móveis é nada mais do que expressão da face exibicionista que tenho, mas renego. Quero que achem meu consultório um charme, mas me escondo atrás de argumentos pragmáticos como os bons preços, a ergonomia necessária. São aspectos fundamentais de levar-se em conta, mas o desejo que me envergonha é de causar admiração, se possível até inveja. Por isso, flores e quadrados tornaram-se enormes, do tamanho da importância que gostaria que tivesse, e não tem, a mera troca de móveis de um recinto.
Na verdade ninguém se importa muito com o que vestimos, como ajeitamos nossa casa, as coisas que dizemos ou pensamos. Quando adultos, percebemo-nos irremediavelmente sós e desimportantes. Crianças pequenas sentem a forte presença dos seus adultos, que costumam evolver-se com tudo que lhes diz respeito. Depois que isso termina, só temos tanto protagonismo em nosso pensamento agoniado, onde tudo se amplifica. É triste ter um público tão distraído, tão exíguo. Para isso servem os pensamentos neuróticos, que floreiam e colorem a mediocridade. Graças e eles, no teatro imaginário onde exibimos a trama da nossa vida os ingressos estão sempre esgotados.
Mãelévola
Amai-vos umas às outras, esse é o novo feitiço da ficção infantil!
“Fujam da enlouquecida paixão, lembrai-vos como os homens vos têm por frágeis, frívolas, facilmente manejáveis e na caça amorosa estendem armadilhas para prender-vos em suas redes como animais selvagens.” Essas palavras de alerta foram escritas em 1405, por Christine de Pizán, na pré-história do feminismo.
A nova vítima dessa sedução é surpreendente: a própria Malévola, a terrível bruxa da história de Bela Adormecida, caiu nessa cilada, apaixonou-se e pediu a seu amado que “fosse suas asas”. Até agora ela era apenas uma figura poderosa e desagradável do reino mágico, responsável pela maldição de sono da princesa.
Os Estúdios Disney fizeram em 1959 uma versão desse conto que emprestou uma imagem definitiva para esta personagem, transformada numa atraente vilã, de aparência gótica e olhos irresistíveis. No recém lançado Malévola, um lindo filme, eles bancam uma virada na história clássica: agora a bruxa é soberana das fadas, reina em harmonia com a natureza, sem hierarquia nem autoritarismo. A descoberta do amor a fragiliza e, sem escutar o alerta de Pizán, encontra a destruição nos mesmos braços em que pretendia repousar. O ressentimento amoroso é o motivo da maldição, pois a princesa é a filha daquele que literalmente lhe cortou as asas.
Em Malévola os homens não prestam: são abjetos, beligerantes e traidores, quando bons são servis ou insignificantes. Pelo que vemos, a ficção infantil caiu aos pés dos encantos femininos. O grande desafio desta história é, como sempre, um encontro amoroso, mas esqueça o príncipe: amai-vos umas às outras, essa é a ideia. É a mesma inovação que começou comValente e segue com Frozen, neste caso entre duas irmãs.
A disputa entre as mulheres pelo amor do pai, assim como por ser escolhida a mais bela entre as mulheres, faz parte da tradição dos contos de fadas. A entrega, seu único destino, alimentou essa competição, tantas vezes desleal. De fato, para mães, assim como para os pais, é uma derrota fenecer enquanto o sucessor floresce. Mas há algo a legar e o orgulho dessa herança compensa pelas perdas. Sem valor social, às mulheres essa contrapartida até agora estava vedada.
Através da vilã, embelezada por Angelina Jolie, somos levados a supor que a maldição é o romantismo que enfraquece, corta-nos as asas e leva-nos à vilania. Livres dele, seríamos portadoras de uma visão de mundo mais justa e harmônica do que a que foi alimentada pelo machismo. Essa promessa é uma novidade nos novos contos de fadas. Neles as mulheres resgatam o apreço pelas antepassadas e umas pelas outras, o que ainda é um feitiço necessário.
Entardecer de domingo
Em algum momento, em geral à tardinha, o domingo nos crava os dentes, sem morder…
Os domingos tem dentes. A expressão é da jornalista Eliane Brum em seu último e tocante livro Meus desacontecimentos (Ed. Leya). O significado dessas palavras qualquer um é capaz de sentir na própria carne. Há domingos que até passam suaves, despercebidos, encontram-nos distraídos. Mas em geral, em algum momento, principalmente à tardinha, o sétimo dia nos crava os dentes, sem morder, é só um aperto quase indolor. Acusamos o golpe discretamente, disfarçamos a instalação dessa farpa de medo que nos cutuca a cada passo, até adormecer.
Talvez sintamos assim porque certamente o fim de semana, mesmo que tenha sido maravilhoso, sempre deixa a desejar. Quem sabe porque temos medo das segundas feiras? Quando conseguimos desengatar da locomotiva dos deveres, duvidamos da nossa capacidade de reingressar nos trilhos. Por sorte, de perto o trabalho volta a parecer factível.
A engrenagem cotidiana nos embala numa fieira de dias que vamos vivendo sem pensar, adiará as esperanças de felicidade, que ficam adormecidas até a noite de sexta. O entardecer dos dias úteis desperta a expectativa de prazeres, da merecida recompensa.
A partir desse momento queremos apenas tudo: ficar junto com a família e os amigos, mas evitar compromissos sociais; amar e ser amados, mas não ter que pensar no outro o tempo todo; empanturrar-nos de comer, beber, passear, dançar, mas sem ressacas; dormir bastante e perder tempo, mas ganhar cultura; relaxar, mas organizar nossas coisas pessoais; jogar conversa fora mas ter diálogos transcendentes. Expectativas contraditórias entre si, conflitantes. No fim, a realização de alguns desses desejos acaba sendo pífia frente ao ressentimento pelos que foram preteridos. Um tempo grávido de promessas é condenado ao aborto dos ideais.
A forma como organizamos nosso ócio diz muito de nós, pois é o tempo que liberamos para realizar nossos desejos. Por isso, Eliane Brum tornou-se uma observadora de domingos: Acredito que não se pode conhecer uma pessoa, um grupo, uma aldeia ou um país sem habitá-lo por ao menos um domingo.
Na melancolia dominical, sentimento quase universal, fica provado que tempo livre é como mente vazia, oficina do diabo. As exigências dos desejos podem ser mais inclementes do que as do trabalho. A síntese deles costuma chamar-se de felicidade. Se por ela entendermos a saciedade plena estaremos condenados ao seu antônimo, a insatisfação, ou à sua ausência, a tristeza.
Nos sábados e domingos não temos obrigações: dia de lembrar que não há prescrição ou cota obrigatória de prazeres a serem vividos e ostentados. Felicidade, a possível, é discreta e nunca completa. Bom domingo!
Um brinde!
Apesar do que dizem os clichês, o amor é polimorfo.
Um brinde aos viúvos que não estão dispostos a separar-se tão cedo dos seus fantasmas. Um brinde aos divorciados que conseguem lembrar das ilusões e empreitadas que faliram, mas existiram. Um brinde aos “princesas-adormecidas”, que esperam fazendo-se de mortos, mas acreditam tanto no grande amor que podem fazer isso por cem anos. Também aos amigos apaixonados, que disfarçam seu amor em amizade para não perder de vista seu objeto de adoração. Aos casais que só transam depois de brigar. Aos que viraram sócios, esquecendo-se da intimidade. Um brinde aos que chamam um ao outro de “papai” e “mamãe”. Aos homoafetivos que ainda não se permitiram a entrega. Aos que somente se apaixonam pelo amor que suscitam, aos que se surpreendem quando são amados.
Um brinde aos casais cuja maior intimidade é dormir de conchinha. Aos capazes de orgasmos maiúsculos e diálogos minúsculos. Aos que se encontraram depois de uma comédia de erros. Aos amores espalhados no mapa. Aos que desistem de viver depois de ver morrer sua cara metade, aos que se reinventam a cada novo amor. Um brinde aos casais que só sobrevivem graças às distâncias, aos que se desestruturam quando ficam longe um do outro. Aos que são rivais entre si, aos que amam no outro seu fracasso e aos que dedicam suas fraquezas ao ser amado.
Um brinde aos que quanto mais conhecem os humanos mais amam seus animais. Aos casais que falam línguas diferentes e, nem eles sabem como, se entendem. Aos que gastam o teclado na busca de um grande amor. Aos colecionadores incansáveis, que querem experimentar todas as formas de amar. Às duplas que engordam juntos, aos que malham em uníssono. Àqueles habilitados somente para o ócio partilhado, aos que são parceiros para trabalhar e procriar, mas que se odeiam nas horas vagas. Um brinde aos que descobrem ser amáveis somente nas curvas finais da vida. Aos que sentem o amor declinar com a juventude.
Um brinde aos que não juntam amor e sexo na mesma pessoa e aos que não conseguem escolher entre duas pessoas. Aos que se fazem adotar pelo outro, como cães abandonados. Aos bons encontros que demoraram vários casamentos para acontecer. Aos que constataram ter jogado fora irremediavelmente o grande amor de sua vida. Aos colegas de jardim de infância que se reencontraram nas redes sociais. Aos que se uniram graças às artimanhas dos amigos ou de alguma comunidade que os apresentou. Aos casais improváveis, que ninguém entende em que ponto se ligam. Aos que nunca se apaixonaram mas souberam amar um ao outro. Um brinde a todas as formas do amor.
Tantas coisas a fazer antes de morrer
Preciso menos do que 1001 razões para seguir vivendo.
Um amigo me enviou um lindo vídeo editado com 1001 filmes que não posso morrer sem ver. Fiquei aliviada, pois a percentagem das cenas que reconheci, que pertenciam aos que já havia visto, era menor que a metade. Feitos os cálculos, devo ter mais do que cinco centenas de filmes que devo ver antes de poder morrer, o que me pareceu uma espécie de garantia de que terei certo prazo para fazê-lo.
Existem também listas com centenas de lugares aos quais devo ir, livros que tenho que ler, músicas que seria imprescindível escutar. Estarei muito ocupada tomando essas providências, espero, pelas próximas décadas. São tarefas bem atraentes, pelo qual chego também à conclusão que terei vida longa e muito divertida. Isso é melhor do que notícia de cartomante!
Adoro ir ao cinema, viajar, ler. Também gosto que me recomendem oportunidades de fazê-lo, pois hoje as possiblidades são tantas que ficamos perdidos. É angustiante pensar que só poderemos ler um numero restrito de livros, seria melhor então não errar. Só que é inevitável certa imprevisibilidade, certa errância em relação aos encontros com as coisas que vão nos sensibilizar. É como no amor, com o qual tantas vezes esbarramos e nos deixamos encantar.
Lista é sempre da ordem da obrigação, do tipo que marcamos itens realizados. Vendo do lado positivo, quem faz uma lista está planejando-se, enfrenta o momento seguinte com razão e eficiência. Por isso gosto de fazê-las, embora em geral me esqueça de lê-las. Outro prazer associado a elas é o de dever cumprido: ver aquela página cheia de “okeis” ou de itens riscados é muito compensador.
Por outro lado, as listas deixam a vida com cara de gincana. Essa parte eu passo. Apesar de serem compostas de deliciosas propostas, essas prescrições culturais envolvem um tipo de fruição que me parece angustiado, desesperado. Algo como aqueles programas de agência de viagem que ajudam a “fazer Europa em quinze dias”, onde se visita tudo e, por isso, nada. Há muito para ver e sentir sem distanciar-se do lugar onde se nasceu e há tantos que vão longe e nada veem. Talvez haja perdão para perder Bergman ou Dante se tivermos oportunidade de saborear outras obras de arte.
Se tivesse que elaborar uma lista, minha prioridade são as marcas deixadas nos outros. Prefiro imaginar que minha presença alterou em alguma dimensão àqueles com quem tive o privilégio de conviver. Mais do que obras ou lugares, gostaria de não perder a oportunidade de perceber minhas gentes, temo passar por elas apressada, distraída. Centenas de bons encontros são o que acima de tudo quero fazer antes de morrer.
Foto de comida
Por que colocar foto de suas refeições nas redes sociais?
Minha avó gostava de domar uma carne por horas. Provava tantas vezes aquele molho de aparência ferrosa, que quando chegava à mesa declarava haver gastado a fome. Sentava-se à cabeceira, distraída das conversas que não abordassem suas delícias. Elogiar era bom, mas não repetir era ofensa. Materialista, ela acreditava em fatos mastigados. Ficava em silêncio, os polegares girando um em torno do outro, expressão da ansiedade que animava seu desejo de ser uma cozinheira apreciada.
Quando vejo tanta gente postando foto de comida nas redes sociais lembro dela. Não gosto de ver fotos do que os outros estão comendo. É rabugice injustificável, pois também divulgo coisas irritantes. Mas vou tentar explicar meu preconceito. Em primeiro lugar, meu apetite responde a comandos olfativos, a imagem de um prato não mobiliza a gula. Aliás, é sempre o retrato do prato ainda intacto, anúncio de um prazer que teremos, mesmo porque depois ele se transforma em louça suja. Já para a velha senhora, assistir o esvaziamento dos pratos era uma homenagem. Da comida, portanto, esperava algo bem diferente do que o gosto de consumi-la.
Talvez esse chamado a testemunhar a refeição alheia seja sinal da imensa solidão em que vivemos, principalmente no que diz respeito à grande família: há menos mães, tias ou mesmo pais que cozinham, são poucas as mesas coletivas familiares como a que tanto divertia minha avó.
Quando se prepara um prato, é uma forma de dar para receber: oferece-se um prazer ao outro para ser amado e admirado. De certa forma, aquele que cozinha vê-se aceito da forma mais primitiva, incorporado ao corpo do que se alimenta. Não há nada que faça uma mãe mais feliz do que ver seu bebê rapar o prato. Nessa época da vida os fantasmas da obesidade não assombram e tudo o que ela quer é seu filho crescendo graças aos seus auspícios. Para o filho, comer com gula é uma forma de lhe dar prazer. Cansei de repetir mais do que aguentava para fazer dona Irene feliz. Quem compartilha seus prazeres à mesa nas redes também está buscando um tipo de mãe que se alegre com eles.
A mesa familiar era o mais tradicional lugar de encontro. Era frente aos pratos que os lugares de cada um naquele grupo se demonstravam, se negociavam. Hoje essa é uma cena rara, em transformação. Nessa gigantesca mesa coletiva e disforme que é a rede social não sabemos mais qual é o lugar de ninguém, mas ainda precisamos muito de que alguém se importe com o que comemos. Minha avó faz falta para muita gente.
Olhos nos olhos
Atravessando as barreiras dos gêneros e das idades.
Sábado de sol, o jovem pai empurra um carrinho de bebê. É aquele tradicional passeio antes do almoço cedo, seguido do primeiro soninho da manhã. Quem conviveu com bebês conhece a rotina. O carrinho está, como costuma, carregado com mamadeira, panos, bico e brinquedos, assim como as sacolas de compras que pegam carona. O bebê faz um comentário, o rapaz circunda o carrinho e, abaixando-se na sua frente, conversa com ele. O diálogo era inaudível, mas a resposta aparentemente satisfaz o pequeno interlocutor. Feito isso, retoma-se o passeio, não sem antes ajeitar qualquer coisa na roupa do filho.
Você percebe quantas novidades há nessa cena? Certamente evoluímos. Não creio que esse pai estivesse com seu filho por ter qualquer questão com sua virilidade. Tampouco estaria “tapando um furo” da mãe ocupada com outra tarefa. Pela naturalidade de suas reações, imagino que ele entendia sobre bebês, sabia trocar fraldas, dar banho, suportar noites de febre, compreender os diferentes choros. O leitor dirá que os homens não se transformaram tanto assim. É claro, não todos, mas já são em grande número e, lhe asseguro, são a imagem do futuro.
Além da postura “maternal” daquele homem há outra novidade na cena: é o diálogo com um bebê, uma criatura que ainda não tem linguagem clara. A maioria de suas palavras são de fabricação caseira, somente acessíveis aos iniciados. Juntam-se em frases lacônicas, compreensíveis mediante a observação da mímica corporal. Por isso a comunicação com os bebês torna-se possível somente quando fazemos o gesto daquele homem: nos colocamos na altura deles, atentos ao que dizem com voz e gestos. Não faz muito tempo que falamos com as crianças e faz muito menos que o fazemos com os lactentes.
Sigo com minhas suposições sobre a dupla encontrada na rua: acredito que ao lado desse pai, haja uma mãe menos sobrecarregada e que soube repartir velhos privilégios. O conhecimento das lides maternas era reserva de mercado feminino – ele não leva jeito para isso, eu é que sei – diziam as antigas.
Ceder espaço libertou as mulheres, mas também democratizou conhecimento: permitiu que os homens saíssem da alienação doméstica em que viviam. Eles podiam ter até poder, mas na intimidade eram dependentes e ignorantes do essencial. Os dons parentais agora podem circular, há pais muito capacitados para oferecer aconchego e mães que se revelam mais destras do que eles em colocar limites. São novidades bem vindas, porque o resultado é uma criança que conta com dois adultos que a escutam e olham nos olhos.
Nemesis
O lado lúdico (e útil) da rivalidade.
No esporte, o Jogo Limpo, mais conhecido como Fair Play, garante uma bela disputa, vitórias justas, derrotas vividas com dignidade. A vida seria bem mais fácil se isso vigorasse sempre. Mas nem sempre conseguimos ser tão construtivos. Na contramão disso, infelizmente, identifico em mim ideias que não trajam essa elegância esportiva. Costumo sentir inveja por rivais imaginários, em geral escritores com quem travo disputas dentro do meu pensamento. Estes, superiores em todos os sentidos, sequer sabem da minha existência.
Quando encontro textos publicados por eles, almejo-lhes o fracasso ou a mediocridade. Se o escrito for incriticável fico mordida, reconheço a derrota e conduzo-os, de mau grado, ao merecido pódio. Caso haja qualquer brecha para pensar que eu faria melhor, ou mesmo, suprema glória, que já escrevi de forma mais interessante sobre isso, eis a vitória esperada.
Em língua inglesa essa rivalidade tem um nome: é Nemesis. Originalmente esse é o nome da personagem mitológica responsável pelo controle da soberba, e a personificação da vingança. Em inglês, diz-se que um herói tem sua Nemesis quando possui um inimigo admirável, como o professor Moriarty é o contraponto à altura de Sherlock Holmes.
Não passa de uma inveja recreativa. Tanto que ela praticamente não surge em minha atividade profissional, a psicanálise. Os baixos pensamentos se confinam à escrita, meu trabalho das horas vagas. Meus Nemesis-escritores servem para escoar minhas rivalidades. São como o time adversário para um torcedor fanático.
Quem tem irmãos praticou essa competição saudavelmente ao longo da vida sem dar-se conta. A disputa fraterna é construtiva, graças a ela ninguém pode almejar a perfeição, os rivais nos ressaltam as fraquezas. Sem isso, qualquer um se acha a cereja do bolo, o queridinho da mamãe, mas o nascimento de um irmãozinho costuma lembrar que o reinado é passageiro. Quando se tem irmãos mais velhos, serão um parâmetro, um ideal instigante. Como eles, meus escritores-rivais certamente ajudam a aperfeiçoar a escrita.
Sei que muitos dirão que há lugar para todos, pregarão um coração pacifista. Concordo com estes pensadores na prioridade da vida interior que leva ao constante questionamento de conceitos e valores, sem medir-se com ninguém. Porém, não há como negar que fazemos parte de um e vários grupos.
Na sociedade individualista nossa condição de seres sociais não tem muito prestígio. Ignoramos com prazer os laços que nos atam aos semelhantes e aos ancestrais. Cada um de nós gosta se imaginar um lobo solitário, um self made man, figura adorada do capitalismo, que não depende nem deve nada a ninguém. Quanto a mim, deixem-me com meus Moriartys, graças a eles posso pretender ser uma espécie de Sherlock.