Felícia reabilitada
O amor, quando insiste em fazer do outro o que imaginamos, independente do que ele é, pode ser perigoso! No meu caso, algumas pequenas vidas pagaram o preço dessa aprendizagem!
Essa é uma história para corações fortes. A confissão é difícil: sou uma Felícia reabilitada. Como a personagem dos cartoons, torturei com meu afeto criaturas indefesas. Carrego a consciência pesada das mortes trágicas de pequenos animais. Não fui uma criança má, apenas vivi um tempo em que eles não eram tratados com a consideração que mereciam. Faltava-nos a compreensão das suas peculiares condições de vida.
A primeira delas foi uma tartaruga, daquelas verdinhas, do tamanho de uma moeda, comprada de uma miserável bacia de ambulante. Estava já graúda e gordona quando achei que ela sentia saudade dos seus mares. Antes de sair para a escola, transformei a pia numa piscina generosa para que pudesse passar a tarde nadando. Só que com meus sete anos eu não sabia bem que tartaruga não era peixe e, ao voltar, encontrei-a boiando, morta de cansaço.
A vítima seguinte foi outra tartaruga, para quem numa noite muito fria resolvi costurar um pijama. Amarrei em seu redor uns trapos que lhe atrapalhavam o movimento e a pus a dormir quentinha, comigo. Morreu sufocada pelas cobertas.
Minha terceira vítima foi um hamster. Newton chegou na minha vida quando era jovem e muito ocupada. Cresceu selvagem e solto, um rato bonito que corria pelo apartamento. Era furtivo, mas um dia tomou coragem e tentou entrar na geladeira, fonte de suas apetitosas verduras. Sem notar sua presença fechei a porta num movimento brusco, que esbarrou no pescoço do pobrezinho, morto em busca do seu tesouro.
Para a maior parte das crianças contemporâneas, a diversidade de ecossistemas, espécies, culturas, assim como a inclusão, fazem parte do currículo. Isso pode salvar o planeta, difundir a tolerância, mas é uma aprendizagem importante também para o convívio íntimo, onde também amamos e nos vinculamos sem perceber as diferenças uns dos outros.
Você já pensou quantas vezes confundiu liberdade com abandono? Certamente era eu que sentia falta de “outros mares”, não minha tartaruga que precisava era de um repouso para respirar. Quantas vezes sufocou e colocou sobre um ser amado alguma camisa de força letal? Oferecer nosso calor não quer dizer prendê-lo e, em geral, esse é um aconchego do qual estamos nós mesmos carecendo. Quantas vezes você foi cego aos movimentos do outro, incapaz de perceber sua aproximação, como fui com o discreto Newton?
Acho que ao longo da vida também maltratei algumas pessoas que amei, deixei morrer alguns afetos, provavelmente houve vínculos que poderiam ter crescido saudáveis e sucumbiram. Continuo aprendendo, mas faço votos de que essas pequenas alminhas animais não tenham morrido em vão.
Panelas e carrinhos para tod@s!
Crianças com brinquedos do “sexo oposto”, chocam por opor-se exatamente ao que?
Uma menina e um menino trocam tiros, disputam corridas de carro, alimentam seus bebês, dividem a bancada de uma marcenaria de brinquedo e partilham as panelas de sua cozinha de plástico. Uma bazuka de água é propagandeada por uma garotinha, enquanto um garoto passeia fofos lulus brancos de pelúcia.
Essas imagens de igualdade de gêneros na hora de brincar provém de um catálogo de brinquedos suecos, da marca Top-Toy e ainda são impensáveis por aqui. Seguimos apegados à rígida divisão de imagem e hábitos entre os gêneros: retratar uma menina com uma arma de brinquedo e um garoto que usasse uma varinha de condão nos é chocante.
Hoje homens trocam fraldas e acordam à noite para dar mamadeira, enquanto mulheres dirigem caminhões e países. Como fazê-lo sem nunca ter-se preparado para isso? As crianças ainda brincam e vestem-se aprisionadas em feudos imaginários de gênero, enquanto os adultos já experimentam fronteiras muito mais sutis.
Brincar serve para fazer de conta que o futuro chegou ou que temos super poderes. É um contraponto providencial para quando somos pura promessa e nos sentimos frágeis e desamparados. As fantasias com as quais se brinca são a projeção de um ideal que a criança pode vestir de mentirinha. Pode-se fazer de conta que se é grande, mas também pode-se dispor de raios fulminantes, palácios suntuosos, animais mágicos, voar e fazer viagens intergalácticas, lutar contra monstros, morrer e acordar, tudo isso com a simples ajuda de objetos inertes e imaginação.
Brincar nos prepara para sonhar caminhos, desejar vocações, para ousar amar e ser amados. Infelizmente, ainda hoje meninos e meninas são condenados na infância a evocar apenas meio futuro através da imaginação lúdica. Mulheres fortes e corajosas e homens sensíveis e prendados são uma referência ainda tímida.
Na realidade a vida das mulheres já rompeu com os limites da casa e do instituto de beleza. Os homens até já podem cozinhar, cuidar dos filhos e expressar seus sentimentos. A possiblidade de transitar entre as identidades de gênero é uma tendência global, embora ainda estejamos longe da erradicação das desigualdades e da violência.
É interessante perguntar-se pelas razões do apego às identidades de gênero, cujo questionamento, como temos visto, causa muita polêmica. Uma das razões pelas quais a profanação dos limites entre esses territórios nada definidos produzem tanto xilique é a insegurança. A primeira fonte de inquietude é oriunda dos próprios desejos: ninguém está a salvo de alguma forma, mesmo que muito velada, de desejo homoerótico. Ela fará parte do amor entre os amigos do mesmo sexo, da relação das meninas com a mãe e dos meninos com seu pai, da relação com os filhos nascidos do mesmo sexo, do amor por professores ou professoras que não vem a calhar serem do sexo oposto. Em segundo lugar, está a ideia, verdadeira, de que a identidade de gênero é de muito difícil transmissão: na lucidez da intimidade, nenhuma mulher sente-se verdadeiramente feminina e não há homem que se julgue totalmente viril. Sendo assim, como ter alguma segurança de passar esses dotes de gênero aos descendentes? As ambiguidades que nossos filhos possam eventualmente demonstrar são provas da incompetência, que todos sentimos ter, para ser autenticamente um homem ou uma mulher. Horroriza nos mais jovens, ou mesmo nos diferentes do padrão atribuído a um dos dois gêneros, o retrato das nossas incertezas. Por isso, tentamos desde pequeninos produzir as garantias de que não teremos reveladas essas fragilidades através deles.
O futuro já começou e, quer você goste disso ou não, nossos clichês de gênero estão fadados à extinção. Por hora, os nascidos no sexo masculino crescem cercados de cuidados para lhes garantir a virilidade, homem tenta não chorar, enquanto a infância das fêmeas é tingida de cor-de-rosa. Porém, seus descendentes de ambos os sexos manejarão igualmente panelas e furadeiras, veículos e bebês, e ainda vão achar muita graça dos preconceitos da nossa época.
Mamãe posso ir?
Por que as mulheres não se libertaram dos torturantes saltos altos?
Lembra aquela brincadeira infantil, em que se fazia a pergunta: – mamãe posso ir? Se a “mamãe” dissesse que pode, seguia-se nova questão: – quantos passos posso dar? Ela dizia um número qualquer. Aí o “filho” novamente perguntava: – De que? Ao que ela designava um bicho: passinhos minúsculos de formiguinha, saltados de canguru, grandões e pesados de elefante, rastejantes de cobra. Ia-se avançando conforme a boa vontade da criança que fizesse o papel da progenitora.
É mais o menos esse o diálogo imaginário que muitas mulheres mantêm com seus sapatos antes de sair de casa. Vou ficar sentada o dia inteiro? Passinhos de princesa em saltos altos. Vou andar de ônibus, metrô, sair, andar à pé? Passos largos em calçados baixos e cômodos. Como se vê, os sapatos femininos são acompanhados de um dilema cotidiano de mobilidade.
Dizem que caminho com a graça de um pinguim, motivo pelo qual nunca fui elegante em delicados calçados de saltos e bicos finos. Além disso, são raras as ocasiões em que fico disposta a condenar-me aos passos claudicantes dos sapatos tipicamente femininos. Já vi mulheres que correm como gazelas mesmo dentro de improváveis saltos altos, plataformas e tirinhas, nunca serei uma delas.
Há locais de trabalho que exigem das funcionárias que compareçam usando saltos. Devem apresentar-se sensuais e atraentes, mesmo que a função exija que permaneçam em pé ou se desloquem bastante. Executivas, diretoras, CEOs, não se concebem sem seus scarpins. Os saltos lhes dão uma sensação de envergadura e elegância, sem perder a delicadeza que se espera dos pés femininos. Dores, doenças e contraturas são recorrentes na vida dessas trabalhadoras. Por que elas não se revoltaram contra essa forma de tortura, herdeira do espartilho e da saia de armação, que sufocavam e imobilizavam suas antepassadas?
A alvura da pele, assim como a delicadeza das mãos e dos calçados, foram associados à nobreza. Eram sinais de distinção, pois significavam que não faziam trabalhos braçais. O bronzeado artificial e o corpo perfeito, ambos investimentos onerosos, hoje cumprem a mesma função. Ser inútil e fútil era um valor, pelo jeito isso não mudou tanto.
No tempo das nossas avós, a dependência, fragilidade e enfeites das suas filhas e esposas sublinhavam a glória do seu provedor. Eram prisioneiras, era ruim para sua reputação circular sem supervisão masculina ou materna. Ao libertar-se, elas puderam usar cabelos curtos e calças compridas, ir aonde quisessem, ser cidadãs. Mas, apesar do incômodo, continuaram apegadas a algumas dessas insígnias femininas de distinção de classe – saltos altos, unhas compridas. Apesar do tanto que já andaram, as mulheres ainda precisam ganhar mobilidade: praticar outros passos, sem ter que pedir licença para ninguém.
Amigos até que a morte nos separe
Amizade, hoje mais eterna do que o amor. Eis o segredo do sucesso de Friends!
Há vinte anos estreava Friends (setembro de 1994 a 2004), uma série cômica norte-americana que segue na nossa memória. Seus personagens são comuns, gente como a gente, não se pode dizer que corram riscos, cumpram missões, tenham inimigos, destinos ímpares ou uma visão de mundo relevante. Com poucos cenários, alguns pequenos apartamentos, cujos móveis e objetos os fãs conhecem como se fossem seus, e uma cafeteria onde se reúnem, a série retrata o cotidiano de um grupo de seis amigos, jovens adultos ainda em fase de aprender a amar e trabalhar. Eles têm o viés cômico do precursor Seinfeld (1989 a 1998), mas são mais pueris. O valor de Ross, Rachel, Monica, Chandler, Joey e Phoebe para prender boa parte do planeta durante uma década em frente à tela da televisão é a amizade como laço afetivo fundamental.
Quando vislumbro o horizonte da maturidade que se avizinha, penso em um futuro povoado de amigos. Por muitos anos a vida adulta nos centra no trabalho, que exige um aprimoramento profissional ou intelectual, e na família, quando formamos uma. São jornadas pesadas, noites mal dormidas, temporada de incertezas, ao longo da qual não priorizamos os laços com o grupo de pares que eram o centro da nossa vida adolescente.
No fim da infância os amigos esperam do lado de fora de casa com o coração aberto para suprir o buraco deixado por aqueles que eram nosso mundo até então. O pai deixa de ser herói, o amor da mãe torna-se sufocante, os irmãos já não importam tanto. Quando nos tornamos adultos maduros também há esse tipo de perda: os filhos, se os tivemos, precisam cuidar da própria vida, nossos pais enfraquecem ou nos deixam, muitos casamentos se distanciam ou desfazem, o trabalho encontrou alguma estabilidade e o ritmo desacelera. Portanto, tanto para os indivíduos como para os casais sobreviventes, são os amigos que partilham a intimidade e os momentos de lazer. Nessas duas fases, a adolescência e a maturidade, há um movimento similar, onde as fragilidades dos laços familiares são compensadas pelos fraternos.
O grupo de amigos da série é uma rede de apoio afetivo marcada pela tolerância, as críticas são amorosas e eles sempre estarão uns pelos outros, como diz a música tema do seriado. Pequenos conflitos, erotismo e amor atravessam suas vidas, a ponto de formar dois casais entre eles, mas o tema central sempre diz respeito à preservação da amizade. Seu sucesso, para além do doce bom humor, é também o crescente prestígio desse laço, que é o grande vitorioso depois do ocaso da família extensa, do inverno dos patriarcas e do extermínio do casamento indissolúvel. Friends acabou, mas é inesquecível por retratar um tempo em que a amizade tornou-se o maior e mais duradouro tesouro de uma vida.
Amigo é para essas coisas
Eu quero ter um zoológico de amigos
Você separou, durante semanas chorou no ombro dos seus amigos, derramou toneladas de indignação contra aquela pessoa egoísta e sem caráter que tanto amou. Você arrolou as inúmeras razões pelas quais já devia ter percebido que aquilo não ia dar certo. O amigo acolhe, consola, diz sinceramente que você merece alguém muito melhor. Só que o casal se reconcilia e ao amigo cabe brindar a felicidade dos pombinhos.
Ou ainda, você está entusiasmadíssimo com um novo projeto mirabolante. Vai, mais uma vez, desfazer algo que estava funcionando. É assim que você sempre faz: destrói tudo o que construiu. Ao amigo cabe acompanhar o novo sonho, comemorar mais uma inauguração.
É claro que os amigos tentam avisar, em geral quando consultados, por vezes à queima roupa. Eles alertam que essa relação é nociva, que você se desencanta de tudo o que conquista. Somos grilos falantes, lúcidos no que diz respeito à vida alheia. Sábios de plantão, nos iludimos: tudo indica que finalmente o amigo problemático está escutando a voz da razão. Porém, raramente eles seguem esses conselhos, o que fica na memória não é a esperteza das palavras, é a certeza da presença, do afeto fraterno. Nas verdadeiras amizades o que faz diferença é suportar as besteiras que o outro faz.
É por isso que não é a mesma coisa conversar com um amigo do que com um terapeuta. Do primeiro queremos somente seu amor incondicional, já com um terapeuta falamos porque desconfiamos que há algum significado nas nossas trapalhadas, intuímos estar repetindo erros. Amores tampouco cumprem essa função: sócios na empreitada da vida, o destino daqueles que se comprometem é enlaçado, por isso tendem à intolerância. Já a amizade não é eficiente para questionar, serve para acolher.
Amigos são como um zoológico, onde a variedade valoriza. Há aqueles com os quais rimos só de olhar um para o outro, outros parceiros para viajar, há os que se materializam nos momentos de dor, outros que abrilhantam as comemorações, os interlocutores intelectuais, os com álcool, os que servem para fazer algo juntos, enquanto há os que são legais mesmo para confidências. São de diversos tipos porque também somos incoerentes e multifacetados.
Está certo, além da amizade seguido precisamos de alguma escuta que nos ajude a refletir, assim como andamos sempre em busca de amores que remem junto no barco da vida. A carência é enorme, precisamos de muitos e diferentes tipos de vínculo, por isso vale a pena aprender com a amizade a ser tolerantes: ninguém pode ser tudo, há momentos para paquidermes, outros para felinos, ou ainda primatas, sem falar das pernaltas aves. Sempre me pergunto que tipos de bicho sou para todos aqueles que amo, mas lhes agradeço a infinita paciência.
Teste do Aniversário
O incurável medo de ser esquecidos na porta da escola…
“Teste de aniversário” é uma festa que finge ser secreta. É quando se espera os convidados sem avisá-los e sequer se dá aqueles recadinhos nada subliminares que lembram os queridos da data que não deveriam esquecer. É o mesmo que ocorre com os amantes que sempre querem ser surpreendidos pelas provas de amor do outro, ou quando chegamos sozinhos de uma viagem, depois de fingidamente ponderar que não tem sentido ser buscados no aeroporto ou rodoviária, e sentimos uma pontinha de tristeza pela falta de alguém esperando.
Só fiz o teste do aniversário uma vez e foi um desastre, não recomendo. O momento era dos menos propícios, já que não era minha fase de maior popularidade. Seja por desânimo ou por imaturidade, no meu aniversário de vinte e poucos anos decidi não avisar ninguém. Recebidos os cumprimentos óbvios de pais e namorado, arrumei uns parcos acepipes e fiquei à espera dos amigos, que nunca chegaram. No final da noite, a campainha tocou, mas era um colega pedindo um livro emprestado.
As crianças pequenas temem ser esquecidas na escola e é um alívio cotidiano encontrar seu adulto na hora prevista para buscá-las. Essa espera angustiada pelo resgate familiar, parados na porta do prédio que rapidamente se esvazia, é um bom exemplo do quanto tememos ser esquecidos. Precisamos saber que moramos no afeto dos outros mesmo quando estamos ausentes. Mas “os cemitérios estão cheios de insubstituíveis”, costumava dizer minha saudosa avó. Como ela previa, deixou tristeza ao partir, mas a vida seguiu seu curso. É indigesto saber-nos substituíveis, passageiros.
Os amigos, amores e parentes costumam estar presentes nos momentos difíceis ou importantes, assim como nos ritos de passagem, porque sabem que ficamos frágeis nessas ocasiões de transição. Usar uma nova idade, principalmente as datas redondas, voltar para casa, partir, mudar-se, casar, perder alguém, ter um filho, formar-se, enfim, tudo o que é novo nos encontra inexperientes para o que ainda não somos. O futuro é a garantia de que continuamos, mas enterra um passado mais acolhedor.
A companhia dos seres queridos garante que não nos perderemos de nós mesmos. Por isso, na escola da vida, ao sair precisamos dos outros como de uma mãe acenando na porta e lembrando que ainda temos para onde voltar, que um novo lugar não apaga os anteriores.
Dia 22 de setembro, na Livraria Cultura, às 19:00, estarei lançando um livro de crônicas (muitas nascidas neste jornal) e pequenos ensaios chamado “Tomo conta do mundo: conficções de uma psicanalista”. Já me tornei uma incrédula do teste do aniversário, não ficarei quieta esperando uma prova de amor. Por isso aqui vai o convite, porque ainda tenho medo de ser esquecida na escola.
Os sem chinelos
A fadiga é democrática e universal.
O marido chega em casa exausto. Os chinelos o esperam em frente ao sofá. Sua esposa trabalhou o dia todo para que esse momento fosse perfeito: o toque de recolher silencia as crianças, a comida pronta e fumegante chegará à mesa com precisão suíça. A conversa será amena, preocupações devem aguardar o momento certo para não exasperá-lo com miudezas domésticas. Ela se desespera quando precisa comunicar-lhe problemas, confusões do filho na escola, um conserto que vai custar caro. Sua função é zelar pelo seu repouso.
Mas e ela, a esposa e mãe, que também trabalhou o dia todo equilibrando pratos no ar para que a família e o orçamento funcionassem, quando é que descansava? Donas de casa podiam até ter algum tempo ocioso, mas não era considerado de descanso, porque a ninguém ocorria que elas estivessem cansadas, afinal, “não trabalhavam”.
Faz décadas que essa cena familiar desapareceu da maioria das casas, o feminismo e a democracia familiar derrubaram o senhor e seu castelo. Hoje os chinelos não esperam por nenhum de nós. À noite não ocorre a pais e mães calar seus filhos, pois costuma ser a hora em que se conversa e brinca, num encontro marcado pela saudade e denso de culpa. No lugar do pai reverenciado e da mãe gueixa, a avalanche de tarefas e preocupações, cada dia mais equânimes para ambos. As questões domésticas espreitam o dia todo a volta do casal exausto e caem sobre eles no momento em que abrem a porta.
Sempre alertas, vivemos como as antigas donas de casa: nunca descansamos. As diversas formas de comunicação virtual eliminaram as barreiras entre dentro e fora de casa, dificultam a intimidade e ajudam a instaurar o dia sem fim. Não há refúgio, toca, retiro.
Para nossos avôs patriarcas, o direito ao repouso era consequência da satisfação do dever cumprido. A submissão dos outros membros da família que transmitiam tal seriedade ao seu bem estar era como uma condecoração diária, um reconhecimento silencioso dos seus méritos. Ao chegar em casa era recebido como herói, presidente, general, mesmo que no trabalho nunca tivesse passado de peão.
Hoje ficamos dia e noite tentando acertar, numa jornada acompanhada de cruéis autocríticas, saudosos de parâmetros. Mas não nos cabem saudosismos daquelas famílias rígidas e injustas. Sobre o descanso que garantíamos aos patriarcas repousavam nossas certezas, ao preço da vida sem trégua das mulheres, que hoje é a de todos nós. Foi só o (péssimo) costume que nos ensinou a confundir hierarquias rígidas, valores religiosos repressores e preconceitos com algum tipo de paz interior. Nosso castelo não será mais em terra firme, assentado sobre essas pedras fundamentais. Agora teremos que aprender a amarrar as redes e calçar os chinelos em nossas ilhas flutuantes de incerteza. Que podem ser lindas.
Filhos marcianos
A dura vida dos estrangeiros digitais
Quem decide formar família numa terra estrangeira estará fadado a considerar seus filhos como traidores. Isso pode acontecer em famílias de diferente nacionalidade, mas também entre pais do interior e filhos urbanos, pais religiosos fundamentalistas com filhos ateus. Os descendentes serão vistos como traidores porque buscam formas de adaptar-se, comunicar-se na escola, no trabalho, fazer amigos. No cotidiano com aqueles que não pensam, falam, nem agem como seus pais, acabam transformando-se. Falarão a língua local sem sotaque e com a gíria do seu grupo, desenvolverão outro paladar, novas crenças. Serão, portanto, estrangeiros frente à própria família de estrangeiros.
No momento há uma terra estrangeira para a qual todos os adultos estão sendo obrigados a emigrar. Ela não tem lugar físico, nem meios de transporte reais. Chega-se a ela mentalmente, através de dispositivos eletrônicos, como computadores, tablets, smartfones. É um território tão mutante que se este texto for lido dentro de um ano, talvez os aparelhinhos mencionados acima já sejam sucata eletrônica, mas certamente ela, a Internet, continuará sendo um recém descoberto Novo Mundo, um verdadeiro lugar.
Para os mais jovens, sites são, como diz o nome, lugares onde algo pode de fato estar. Contatos virtuais são reais, o que está na tela tem valor de papel impresso e não sentem-se desconfiados ou paranóicos em comunicar-se e fazer transações via a rede. Para nós, estrangeiros digitais, é um lugar ainda estranho: falamos com sotaque, ficamos com cãibra nos polegares e cometemos gafes, ignorantes que somos da cultura reinante que inclui uma nova etiqueta.
Esta última envolve regras de educação que ainda estão em fase de construção. Ainda precisamos estabelecer os limites entre o público e o privado, as condições possíveis para o anonimato e a necessidade crescente de separar em diferentes esferas a massa de “amigos”. Por hora nos custa diferenciar o que se pode conversar com parentes, amores, confidentes, colegas, alunos ou clientes. Como território novo, é ainda bastante selvagem, talvez por isso nele estejam acontecendo tantos episódios de violência sexual, racial, de intolerância ou mera brutalidade verbal.
Sempre brincávamos que, com o fim do mundo, íamos acabar vivendo em Marte, o que não nos ocorreu é que criaríamos aqui mesmo um novo planeta, de colonização recente, para o qual se mudaram todos os membros mais novos da Terra. Os pais terráqueos estão nesse processo de emigração involuntária. Para torná-la possível, seria bom que parássemos de fazer uma oposição alarmista, vendo perigo e devassidão em todos os cantos da rede. Principalmente, precisamos parar de considerar traidores aqueles que abandonaram o mundo analógico em extinção onde seus antepassados nasceram.
Cortázar, que faria cem anos amanhã
Homenagem ao grande Cronópio através do qual aprendi a me sonhar.
Nos anos cinquenta, em Paris, um escritor anonimamente espera um tempão, sentado num bar, o suposto aparecimento do seu ídolo um pouco mais velho. Como previsto, pois era seu hábito, o enorme homem surge e ocupa sua mesa para trabalhar. O admirador conta: “Fiquei vendo ele escrever durante mais de uma hora, sem uma pausa para pensar, sem tomar nada mais do que meio copo de água mineral, até que começou a escurecer na rua e ele guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno embaixo do braço como o escolar mais alto e mais magro do mundo.”
No excelente ensaio Último telefonema para o Cronópio, na revista Piauí de agosto, seu autor, o prolixo e debochado Reinaldo Moraes, é que narra esse episódio. Júlio Cortázar, o Cronópio que faria cem anos amanhã, é o aludido grande (em todos os sentidos) escritor dessa cena parisiense. Já o referido silencioso admirador, que fica esperando para ver o outro escrevendo, era nada menos que Gabriel García Márquez, mestre colombiano do Realismo Mágico, que perdemos neste ano, marcado por sucessivos lutos literários.
Parece um jogo de espelhos de escritores: Moraes conta, de uma ocasião em que Márquez observa enquanto Cortázar escreve. O grande Cronópio teria gostado dessa confusão. Na verdade, Gabo e Cortázar depois tiveram oportunidade de verdadeiro encontro, de modo que ele aprimorou a descrição anterior: “Era o homem mais alto que se podia imaginar, com uma cara de moleque sapeca dentro de um interminável sobretudo preto que mais parecia a sotaina de viúvo, e tinha os olhos muito separados, como os de um bezerro, e tão oblíquos que poderiam ser os do diabo se não estivessem submetidos ao domínio do coração” (Piauí, Pg.88)
De ambos, Cortázar e Márquez, tenho roubado sonhos ao longo da vida. Visitei Macondo, cidade imaginária de Cem Anos de Solidão, mais de uma vez. Mas nunca pretendi escrever ficção. Sou pobre de imaginação, tão chata que até meus sonhos são burocráticos: cumpro tarefas ou me martirizo por tê-las esquecido, perco objetos, digo bobagens, isso nos piores pesadelos. Nos melhores sonhos, dos quais raramente me lembro, faço percursos pueris. Tem quem sonha sagas, que dariam filmes de ação, terror, ficção científica, amantes que se desencontram ou se seduzem. Invejo-os.
Mais do que Reinaldo Moraes, autor do ensaio e ele próprio um ótimo escritor, e de Gabriel García Márquez, seria eu que teria motivos para assistir a essa cena do ato da criação literária, desabrochando em plena luz, com fervor. De certo modo faço isso quando meus pacientes brindam nosso trabalho com seus sonhos, nos presenteiam com pequenas peças de ficção dignas do País das Maravilhas, através das quais percorremos juntos os melhores caminhos das suas análises.
Talvez por essa mente burocrática à qual sou presa, admiro tanto quem torna nossas bobagens cotidianas em fantasia e encontro uma saída onírica para tomar emprestada no universo fantástico cortazariano. Para ele, a realidade está sempre à beira do sinistro: um sujeito pode morrer sufocado dentro da própria blusa, quando o ato de vesti-la pela cabeça torna-se uma tortura letal, como se a peça de roupa guardasse más intenções; o relógio que mais do que medir controla o tempo da nossa vida, deixa sua possessão bem clara através das marcas de pequenos dentes que ficam no pulso quando retirado; alguém sente-se incomodado por involuntariamente vomitar coelhinhos brancos num apartamento emprestado, eles constrangem o sujeito, menos por vomitar esses roedores fofinhos, o que ele trata como se fosse natural, e mais porque está bagunçando um pouco o ambiente pelo qual deveria zelar; de tanto observar um peixe estranho num aquário publico, pelo qual o visitante havia desenvolvido certa obsessão, um dia o curioso descobre-se preso do lado de dentro do vidro, havia se fundido com seu objeto de interesse; os admiradores de uma atriz famosa se organizam e a liquidam para que não decline do auge da carreira, em pleno palco, provando o caráter demoníaco dos fãs; poderia contar muitas mais histórias de Cortázar, algumas são brincadeiras lógicas, outras de linguagem, mas em boa parte delas a fantasia nos prega uma peça.
Os mais controlados de imaginação são medrosos, como eu. Tememos cair no Maravilhoso poço de Alice e de lá nunca mais voltar. Estou entre os que são demasiado atentos à fragilidade da vida, ao cotidiano sempre a ponto de colapsar, e para deixar-se sonhar livremente há de conhecer-se os abismos, mas também os meios de sair deles. Os escritores de verdade têm em sua arte as cordas, escadas, balões mágicos e tudo de que precisam para sair e sobrevoar mesmo as paisagens oníricas mais assustadoras. Meus heróis intelectuais são os que não temem a loucura, deixam que lhes brotem Macondos, tiram coelhos brancos da cartola da voz. Vou passar o resto da vida como Gabo, sentada àquela mesa, observando maravilhada o ato da criação.
Seu Lobo não vem!
Crescemos sem abrir mão do Lobo Mau!
Preocupada, a menina perguntou ao adulto mais próximo se havia o que temer: – “o Lobo, ele vem?” Ele bem que tentou estar à altura, soar protetor, e, além de garantir que não havia tal risco, acrescentou que esse monstro não era de verdade, o que para ela resultou inaceitável: – “o Lobo não existe?”
Ciente da cilada, ele percebeu na hora que se decretasse a falsidade do vilão, muitos heróis também teriam sua sobrevivência ameaçada. Quem conta essa história é o escritor uruguaio Mario Levrero, grande ficcionista, que obviamente não queria ser responsável pelo desaparecimento do Papai Noel e dos Reis Magos. Tentou um remendo: – “Antes – eu disse sublinhando a palavra – antes existia. Agora não está mais. Ele morreu”.
Não adiantou, tapando os ouvidos, a criança saiu correndo e começou a gritar: – “Ele vem igual!”. Pode soar estranho, ela deveria respirar aliviada, pois estava a salvo e a fantasia preservada. Por que então o desespero? É que, escreve Levrero, um Lobo fantasma é muito mais ameaçador: “não se pode deter, não se pode matar, porque está morto. E vem igual”.
Todos sabemos que o diálogo não versa sobre um canídeo selvagem qualquer. É um Lobo específico, nome próprio do personagem que se tornou famoso após engolir uma vovó, uma Chapeuzinho, sete cabritinhos e outras iguarias
Mesmo seres imaginários precisam estar vivos para poderem ser mortos. A pior ameaça provém de uma entidade abstrata, o mal que nos habita, nosso Lobo interior. Como essa menina carecemos de um personagem palpável para representar o perigo. Se ele tem uma imagem, um habitat e uma história que lhe dê contornos, pode ser identificado, detido e morto.
Mesmo que não tenha muita consciência disso, ninguém está livre de temer as assombrações que rondam os próprios pensamentos. São ideias inadmissíveis, agressivas, depravadas, incestuosas até. É um alívio quando podemos supor que todas essas coisas monstruosas estão fora da nossa mente, imaginá-las vivas, movendo-se furtivamente sobre suas patas peludas.
Para nossa tranquilidade, o noticiário policial oferece doses diárias de histórias de Lobos: pais ou amantes assassinos, mães desnaturadas, alunos exterminadores, além da variada gama de psicopatas. Graças a eles podemos sentir-nos bons, a salvo dos maus pensamentos. Queremos os vilões vivos, para que possamos matá-los. Eles existem, eu sei, mas são muito mais numerosos na nossa imaginação do que nas cidades.
Por sorte, nossos Lobos interiores só latem, não mordem. Poderíamos prescindir do culto do medo, do fascínio pelo sensacionalismo sanguinolento que infesta a mídia. Seu Lobo não vem! Saia de casa, ande pelas ruas a pé, e, quem sabe, num dia de sol até dá para passear na floresta.