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Quero uma penseira

A esta altura, estamos sobrecarregados de um enorme acervo de rostos, vozes, eventos, ideias e fantasias. É muita gente e muita coisa para manter vivo na memória, óbvio que algumas delas terão que descansar em algum tipo de bastidor leitoso e prateado.

Prezado Papai Noel:

Provavelmente não mereço, mas queria pedir um presente, ou melhor, um presentão. Não fui boa menina: pratiquei poucos exercícios, estudei pouco, comi muito, encontrei menos minhas pessoas queridas do que considero importante, queixei-me da situação política e econômica mais do que ajudei a debelá-la. Mas, mesmo assim, vou lhe dizer o que desejo.

Queria muito uma “penseira”. Como talvez o senhor não seja leitor de Harry Potter, lhe explico do que se trata o objeto cobiçado. O jovem bruxo desta saga estuda numa escola chamada Hogwarts, na qual seu diretor, Alvo Dumbledore, é um ancião muito sábio e sobrecarregado de preocupações. Estou eu também tornando-me uma senhora madura cheia de preocupações, embora a sabedoria seja questionável. Pois bem, para administrar a sobrecarga de pensamentos importantes, Dumbledore dispõe de uma penseira em seus aposentos.

Trata-se de uma bacia de pedra rasa, contendo em seu interior uma substância leitosa-prateada sempre em movimento. O diretor encosta sua varinha na têmpora e retira alguns dos pensamentos dos quais não necessita no momento. Eles saem sob a forma de uma espécie de raio e são depositados na penseira, onde ficam disponíveis para serem consultados quando necessário.

Pessoas dos cinquenta em diante, como eu, tendem a fiscalizar sua memória com a atenção de um cão pastor e o pânico de um animal acuado. Qualquer falha liga o alarme das fantasias do envelhecimento e da demência. Por outro lado, a esta altura, estamos sobrecarregados de um enorme acervo de rostos, vozes, eventos, ideias e fantasias. É muita gente e muita coisa para manter vivo na memória, óbvio que algumas delas terão que descansar em algum tipo de bastidor leitoso e prateado.

Quando não conseguimos lembar algo, mesmo que seja o nome de um ator coadjuvante de um filme dos anos setenta, entramos em pânico: é o Alzheimer batendo! Por isso, penso que se tivesse uma penseira saberia onde está tudo aquilo que não consigo evocar imediatamente quando preciso. Assim, poderia tranquilamente revolver a penseira com a varinha e resgatar a memória fugidia, considerando natural de que ela esteja lá e não dentro de mim. Teria certamente a calma que me falta quando começo a procurar a memória que não se apresenta à consciência com prontidão. Qualquer um sabe que aquilo que buscamos com angústia tem a teimosia de se esconder.

Na verdade, na falta de um objeto mágico desses, desenvolvi a paixão por cadernos, caderninhos e cadernões. Os tenho para todos os fins: anotações de leituras, horários, sonhos, pautas para colunas, finanças, planejamentos variados. Adoro essas minhas memórias auxiliares e os consulto o tempo todo. Portanto, caro Papai Noel, se não encontrares penseira no mercado vou precisar de mais caderninhos…

Filhinhos da mãe

Há uma forma de ser mulher que está em declínio: a da mulher que materna seu homem e realça com sua dependência o poder dele. Os viúvos dessa feminilidade em extinção estão ficando desamparados e violentos.

Os cariocas estão correndo o risco de eleger como prefeito um homem que repetidamente espancou sua esposa. Em sua defesa, o candidato a candidato perguntou: “quem não tem uma briga dentro de casa? Quem não tem um descontrole?” De fato, tampouco conheço casais que jamais tenham discutido, mas palavras e lágrimas costumam dar conta do recado.

Muitos legisladores, maridos e namorados estão mostrando-se irritados e inseguros com a desobediência e as exigências das mulheres. Amantes ciumentos espancam e até matam aquelas que, em seu imaginário, só poderiam estar interessadas em outro homem. O que não ocorre a esses senhores destemperados é que elas possam querer tantas outras coisas que independem da presença masculina. Podem desejar a dignidade que eles lhe negam, um clima agradável no lar, a liberdade de não ter filhos, enfim, coisas para as quais elas se bastam. Menos habituadas ao prestígio, criadas para ser mais cuidadoras que cuidadas, as mulheres estão melhor preparadas para a jornada solitária.

Há uma cruzada em defesa de uma feminilidade que está em declínio. É a que corresponde à ideia da que elas existem para funcionar como um espelho que reflete a imagem do homem duplicada, agigantada pelo olhar  feminino de admiração. Aliás, essa metáfora é de autoria da atualmente difamada Simone de Beauvoir. Como poderão eles ser grandes homens, sem uma grande mulher por trás?

Curioso, porque mulher grande mesmo é a mamãe: aquela giganta que faz seu menininho sentir-se o maior tesouro que a vida lhe deu. As esposas submissas são sua forma de sobreviver na vida dos homens adultos. O patriarca falido encontrou seu último reino nos braços da uma companheira que é misto de mãe protetora com criatura dependente. A extinção dessas tristes personagens, um marido ao modo menino mimado e a esposa que é sua sombra protetora, seria uma questão de tempo se não esbarrasse na resistência das próprias mulheres.

Muitas continuam submetendo-se, ou pior, acobertando maridos violentos, por causa da superproteção, que é uma fraqueza tipicamente materna. Alegam que os “coitados” estão numa fase ruim, culpam-se por tê-los irritado. Onipotentemente acreditam que vão domar sua fúria.

Há mulheres na vida dos legisladores que impõe recuos às liberdades femininas conquistadas. Qual o papel delas na tolerância com a violência que as fere e extermina? Esses homens têm mães, esposas, filhas, netas, sobrinhas, colegas, amigas e eleitoras. O primeiro machismo a ser vencido é o das próprias mulheres. São muitas as que ainda reconhecem no lugar da mãe a essência da feminilidade e na construção dos poderes do seu menino sua máxima realização. Seus homens só se comportarão como adultos no dia do ocaso da misoginia feminina.

A menarca assassina

O sangue mais assustador escorre do corpo de uma mulher.

Em 1974 Stephen King teve uma ideia que abandonou porque algo naquela trama lhe dava muito medo. Foi somente por insistência da esposa que a retomou. Detalhe, estamos falando de King, o mais popular escritor de novelas de terror.

Era a história de Carrie, uma adolescente desengonçada, que vivia só com a mãe, uma beata delirante. Sua inadequação já fazia dela motivo de bullying (ainda não se usava esse termo), quando aconteceu-lhe de menstruar pela primeira vez no vestiário da escola. Sem saber o que estava lhe acontecendo, entrou em pânico ao ver o sangue espalhar-se pelo chão do chuveiro. As colegas reagiram aos gritos, fazendo troça e afogando-a numa chuva de absorventes. As reviravoltas da história culminam com a jovem sendo eleita rainha do baile de formatura e recebendo, junto com a coroa, um balde de sangue de porco na cabeça.

Depois de sofrer essa agressão, a jovem, que já revelava seus poderes de movimentar objetos com o pensamento, reage com fúria e desencadeia a completa destruição do baile e da cidade. Carrie provocou incêndios e esvaziou os hidrantes, produziu curto circuitos e caos. Quem não foi queimado, foi eletrocutado e sobraram poucos, principalmente entre seus colegas, para contar a história. Tudo isso só por causa de uma menstruação? Para uma história escrita na segunda metade do século XX, o que há de tão ameaçador no corpo de uma garota?

Mamilos femininos numa praia são uma afronta, até amamentando não são bem vistos. Já os masculinos mesmo que proeminentes e marombados são exibidos com liberdade e orgulho. A visão do sangue menstrual é proibida nas redes sociais, mas se a imagem mostrar uma virgem vertendo lágrimas de sangue tudo bem. A mulher é potencialmente suja, perigosa, diz-se que sua imagem provoca impulsos sexuais e agressivos incontroláveis nos homens. Por isso seria a culpada pelos abusos que sofre. Ela deve se encobrir. Se ficar grávida, mesmo que seja fruto de um estupro, deve gestar e parir o filho de um monstro. Acaba de ser aprovado um projeto de lei que lhe impede o acesso ao remédio que a livraria disso. O corpo da mulher não lhe pertence. O que há de tão ameaçador no corpo de uma mulher? Em pleno século XXI?

A história de Carrie continuou sendo re-filmada, a última versão é de 2013. Isso prova que a fantasia da feminilidade poderosa e demoníaca segue viva no inconsciente do nosso tempo. Triste persistência, num tempo em que a vida das mulheres começaria em tese a respirar ares de liberdade: estamos nos tornando uma legião de médicas, advogadas, pedreiras, pensadoras, líderes, soldadas e o que mais quisermos ser. Pelo jeito, ameaçamos levar nossos perigosos fluidos menstruais para contaminar a sociedade e destruir tudo, que dizer dos nossos seios, dos nossos ventres nada livres? Em pleno século XXI.

publicado em ZH em 8.11.2015

Verdades que divertem

Divertida Mente é um filme para crianças, quem diria…

Expus ao meu priminho Gonçalo, seis anos, uma questão que tenho escutado várias vezes: o filme infantil Divertida Mente é de fato para crianças? Com a seriedade dos pequenos, que nunca estranham que um grande lhes peça opinião, ele ponderou que sim, já viu duas vezes. As crianças de hoje não têm temores nem constrangimentos para abordar assuntos delicados. Uma vez informados do que se trata, não há sobre o que não possam, a seu modo, opinar: morte, justiça, famílias, velocidade dos carros, ecologia, religião.

A ficção infantil não precisa escolher temas fáceis ou soluções planas, se for bem feita, será bem-vinda. Isso garante o sucesso de filmes como Up, que trata da velhice, dos antigos Bambi, no qual a mãe de um bebê é assassinada, Rei Leão, que enfoca a morte do pai e a autoculpabilização do filho por isso, Os Incríveis, em que um pai super-herói sofre da depressão do desemprego, Shrek, que prega a valorização da autenticidade da imagem, e tantos outros.

O público adulto finge, bate palmas por convenção, tem medo de não saber discernir entre um espetáculo difícil e um ruim. As crianças fazem uma avaliação direta: se a peça, show ou filme forem cativantes, ficarão atentas, se não, a bagunça se instala. E não sejamos injustos achando que só aprovam pastelão, lutinhas e cantorias edulcoradas. Divertida Mente está aí para demonstrar o contrário.

Nessa história, as personagens não poderiam ser mais abstratas: a Alegria, o Medo, a Raiva, o Nojo e a Tristeza. Dentro da cabeça de uma garota de 11 anos que precisa enfrentar o desafio de mudar de cidade, eles cumprem seus papéis e, principalmente, disputam com a Alegria a condução da vida de Riley. A trama leva-nos a concluir que o protagonismo da Tristeza é decisivo para a adaptação dela. Sem as lágrimas necessárias, que também se devem ao fim da infância e à constatação de que os pais estão igualmente atrapalhados, não acontece a elaboração das perdas. O filme também é bem claro de que tudo o que não for enfrentado, por ser doloroso, levará consigo para o esquecimento as preciosas memórias. Aquilo sobre o que não se pensa tampouco é lembrado, pois enfocar algo significa descobrir em que parte da nossa mente vamos guardá-lo.

É fundamental para as crianças ver seus conflitos psíquicos tratados com empatia e seriedade. É um alívio ver seus pais recebendo desse filme a lição de que elas têm direito à tristeza e não precisam bancar os bobinhos da corte. O dever de ser feliz e de gozar a vida é um fardo para a infância contemporânea. Como lucro suplementar, verão que, por dentro, é comum que os adultos tenham as mesmas minhocas, pois elas percebem nossas fragilidades. É como no teatro infantil: não adianta enganar ou ser falsamente simplório, seja verdadeiro e elas aplaudirão.

(coluna no jornal Zero Hora, 25 de outubro 2015)

Eu também!

Passamos a noite no ballet das cobertas, num strip-tease de arrebato, mais ansioso que sensual, sendo despertadas por um cérebro sacana quando caímos em sono profundo. O rendimento baixa, o sutiã aperta e temos ataques de comer doce, justo quando engordamos até com chuchu.

A atriz Fernanda Torres teve a coragem de comentar em sua coluna na Folha (25.09.2015) que a menopausa havia chegado, anunciando-se com as cornetas da insônia e das ondas de calor. “Temo tocar no assunto e virar porta-voz de um fenômeno vivido em sigilo pela maioria absoluta das mulheres”, escreveu. Ela sabia que estava mexendo num vespeiro e estou fazendo exatamente o que ela tentou evitar, mas seu gesto abriu precedentes para mulheres menos notórias dizerem: eu também!

Nascer com útero e ovários é ser apresentada desde a puberdade à arbitrariedade dos hormônios que fazem do corpo um relógio, um calendário. Somos regidas por uma sucessão de eventos tanto previsíveis quanto mutantes, tão infalíveis quanto inquietantes em sua ausência. Mensalmente, temos que posicionar-nos frente à fertilidade. A cada aniversário o dilema da maternidade se renova, levando em conta que ela é datada. É uma negociação tensa na qual os desejos e o organismo jogam cada um com sua mão de cartas. Na meia idade, a temida decadência do corpo que lota academias, consultórios de plásticos e dermatologistas, aparece junto com o fantasma de deixar de ser mulher. Por isso todas envergonham-se silenciosa e solitariamente. Fernanda se “surpreende o quanto a menopausa se mantém velada, secreta”.

Conheço bem esses sentimentos, vivo com eles discretamente há alguns anos. Passamos a noite no ballet das cobertas, num strip-tease de arrebato, mais ansioso que sensual, sendo despertadas por um cérebro sacana quando caímos em sono profundo. O rendimento baixa, o sutiã aperta e temos ataques de comer doce, justo quando engordamos até com chuchu.

Há formas químicas de amenizar esses contratempos, além das vantagens de uma vida saudável, que melhora sensivelmente o quadro. Mas não viraremos atletas e ascetas, com um sorriso nos lábios, só porque a menopausa aconteceu. Os vaticínios então são os piores: anuncia-se o ressecamento de tudo e principalmente do desejo sexual. Não é o que dizem as mais corajosas, dispostas a reconhecer seus desejos livres da pressão social do crescei e multiplicai-vos.

Aos homens maduros têm sido dada a opção de sair dessa uivando, lobos encanecidos. Movidos à pílula azul da ereção eterna, saem em busca da jovem caça que lhes devolva a jovialidade. Para as mulheres, parece que o jogo acabou a não ser que se fantasiem de igualmente patéticas Barbies estorricadas. Ao contrário, é a hora de seguir em frente, aproveitando que junto às golfadas de calor costuma vir uma onda de liberdade. Algumas rodadas da vida, bem ou mal, já foram jogadas e algo, bem ou mal, se aprendeu. Ainda somos suficientemente jovens para novas aventuras e já, espera-se, menos ingênuas e fantasiosos. Podemos dar umas gargalhadas juntas, enquanto nos abanamos.

Aprendendo com o Alzheimer

O que é bom lembrar antes de esquecer?

A professora de estudos de gênero da Universidade Cornell, Sandra Bem, Sandy, para os íntimos, pôs fim à própria vida em maio de 2014, cinco anos após seu diagnóstico de Alzheimer. A decisão era morrer antes que sua existência tivesse lhe sido totalmente usurpada pela doença.

Apesar das perdas intelectuais, os anos restantes permitiram-lhe testemunhar a chegada ao mundo do neto, assim como ajudar à filha nos cuidados dele. Para este último, a avó apenas levemente demenciada tornou-se uma querida bubba, que era como as avós eram conhecidas na família. Sob efeito da doença, Sandy apresentava uma doçura e uma leveza que eram estranhas àquela acadêmica de pequena estatura e grandes ideais.

O convívio com as perdas foi sendo suportável, principalmente graças ao seu bom humor. Até a chegada de um dia em que, ao despedir-se da filha perguntou à cunhada quem era a mãe daquela mulher que recém saíra dali. Obteve a resposta de que era ela mesma e tristemente arremedou: – desconfiava disso. Era chegada a hora. Já havia conseguido por correio a substância necessária, assinou e datou os papéis previamente preparados, eximindo todos seus seres queridos da responsabilidade pelo seu ato e, sem dramalhões, partiu. No espaço que havia destinado para “observações finais” nada conseguiu preencher, sua mente já não tinha esse alcance.

A história de Sandy, contada no texto Juízo final, da Revista Piauí número 106, é mais radical que o filme Para sempre Alice (2015), onde a pesquisadora não conseguiu levar seu plano de suicidar-se até o fim. O filme suaviza o espinhoso tema do suicídio. Na verdade, a transformação da linguista Alice na bobinha acompanhante de sua filha caçula, com quem ainda consegue ter uma postura afetuosa, atenua um pouco o drama da despersonalização tão temida por todos nós.

Recentemente passei o dia todo atrás de uma palavra que não recordo qual era, e tampouco sei se afinal a achei. Estou chegando à idade madura junto com vários de meus amigos e pacientes. Entre nós, sorriso nervoso nos lábios, já falamos por alusões aproximativas como: “aquele ator que fez o Sherlock, o mesmo que fez o cientista gay discriminado que quebrou o código dos alemães, como era mesmo o nome do filme?”. Ficamos, mesmo sem querer, monitorando o declínio visível da memória imediata.

A parte apavorante dessas histórias de Alzheimer é a abreviação do processo de envelhecimento até a vertigem. Alertas, muitas vezes confundimos as bobeiras normais com o desgaste do cérebro, mas como sempre fui avoada, acabo me surpreendendo menos com as lacunas de comportamento e memória. O que realmente esquecemos é que a memória costuma ser esquiva, se entrarmos em pânico não saberemos sequer responder o nome completo. E mais, as pessoas esquecem é que nunca tiveram de fato uma memória prodigiosa. Calma, tudo o que é imprescindível volta. Talvez essa rebeldia das evocações tenha o propósito de nos lembrar que a paciência é a principal aprendizagem que a maturidade nos reserva.

(publicado na Revista Vida Simples do mês de setembro de 2015)

O anel que tu me destes

A premissa do desapego é a descoberta daqueles pertences com os quais fabricamos uma identidade.

Herdei um anel de madeira. Ele foi feito pelo meu tio-avô em uma macabra oficina onde que lhe coube trabalhar. Por sua vitalidade, na hora de repartir os deportados entre a vida e a morte, Ödon foi destinado aos trabalhos forçados em Auschwitz e conseguiu sobreviver. A mesma sorte não tiveram meu avô e meu tio, irmão de meu pai.

Ödon furtivamente entalhou esse único pertence pessoal, um tesouro tanto mais valioso pois desafiava o castigo da impessoalidade, que transformava pessoas em números, sem cabelos nem distinção alguma entre si. A despersonalização era uma das formas utilizadas no campo de concentração para matar a identidade antes do corpo. Como fabricou e salvou o anel nunca soube, mas antes de morrer ele o presenteou a meu pai, seu sobrinho.

Os colegas da instituição psicanalítica à qual pertenço estão criando um museu virtual onde as pessoas podem comparecer com um objeto que considerem especial e descrever sua importância. Nesse museu não haverá nenhuma presença física, só encontraremos histórias e imagens de objetos de relevância pessoal, de preferencia que tenham pertencido a alguém a quem a sociedade de alguma forma silenciou. Terei o privilégio de participar com esse anel.

Hoje falamos muito em desapego, um debate imprescindível em uma sociedade que vive produzindo lixo, cercando-se de objetos descartáveis comprados por compulsão. Como a identidade nunca foi tão frágil e avulsa, acabamos sentindo-nos representados pelo que possuímos. Cada um amontoa sobre si uma miríade de coisas através das quais espera se valorizar. O problema é que como nenhuma delas faz efetivamente uma marca, tornam-se obsoletas e vão para o lixo as inúteis tentativas de ser alguém por seu intermédio.

É fundamental saber descartar e dar-se conta da inutilidade do acúmulo. Isso passa também por escolher quais são nossos verdadeiros pertences. Os mendigos talvez tenham algo a ensinar: eles costumam ter sempre consigo uma trouxinha ou sacolinha que, aos nossos olhos, estaria cheia de lixo. Muitas vezes ela está mesmo, contém trapos sujos e jornais amassados, que somente possuem o significado de representar o único pertence daquele que é nada. Não é estranho que os que se sentem como um nada preencham sua trouxa com coisas que também são nada. Já os bebês, que ainda sabem ser pouca coisa, apegam-se fortemente a um trapo ou brinquedo encardido que é seu primeiro pertence pessoal.

Provavelmente, para Ödon, a construção desse anel fez parte de sua estratégia de sobrevivência. Encerrada sua longeva existência, em outro continente, uma descendente que ele nunca conheceu pessoalmente o escolheu para esse museu de objetos peculiares. Como ele, também tentarei deixar algo que possa ser usado pelas gerações futuras para contar uma história.  “É interessante, como dentro do essencial, recordo principalmente de pequenos detalhes que ganham importância e se fixam na memória”, escreveu Ödon a meu pai.

(Coluna da Revista Vida Simples do mês de agosto de 2015)

Somos todos estrangeiros

Quem discrimina arranja no grito e na violência um lugar para si.

Volta e meia, em nosso mundo redondo, colapsa o frágil convívio entre os diversos modos de ser dos seus habitantes. Neste momento, vivemos uma nova rodada dessas com os inúmeros refugiados, famílias fugitivas de suas guerras civis e massacres. Eles tentam entrar na mesma Europa que já expulsou seus famintos e judeus. Esses movimentos introduzem gente destoante no meio de outras culturas, estrangeiros que chegam falando atravessado, comendo, amando e rezando de outras maneiras. Os diferentes se estranham.

Fui duplamente estrangeira, no Brasil por ser Uruguaia, em ambos países e nas escolas públicas por ser judia. A instrução era tentar mimetizar-se, falar com o menor sotaque possível, ficar invisível no horário do Pai Nosso diário.

Certamente todos conhecem esse sentimento de sentir-se estrangeiro, ficar de fora, de não ser tão autêntico como os outros, ou não ser escolhido para o que realmente importa. Na infância tudo é grande demais, amedronta e entendemos fragmentariamente, como recém chegados. Na puberdade perdemos a familiaridade com nossos familiares: o que antes parecia natural começa a soar como estrangeiro. Na adolescência sentimo-nos estranhos a quase tudo, andamos por aí enturmados com os da mesma idade ou estilo, tendo apenas uns aos outros como cúmplices para existir.

O fim desse desencontro deveria ocorrer no começo da vida adulta, quando trabalhamos, procriamos e tomamos decisões de repercussão social. Finalmente deveríamos sentir-nos legítimos cidadãos da vida. Porém, julgamos ser uma fraude: imaginávamos que os adultos eram algo maior, mais consistente do que sentimos ser. Logo em seguida disso, já começamos a achar que perdemos o bonde da vida. O tempo nos faz estrangeiros à própria existência.

Uma das formas mais simples de combater todo esse mal-estar é encontrar outro para chamar de diferente, de inadequado. Quem pratica o bullying, quer seja entre alunos ou com os que têm hábitos e aparência distintos do seu, conquista momentaneamente a ilusão da legitimidade. Quem discrimina arranja no grito e na violência um lugar para si.

Conviver com as diferentes cores de pele, interpretações dos gêneros, formas de amar e casar, vestimentas, religiões ou a falta delas, línguas, faz com que todos sejam estrangeiros. Isso produz a mágica sensação de inclusão universal: se formos todos diferentes, ninguém precisa sentir-se excluído. Movimentos migratórios misturam povos, a eliminação de barreiras de casta e de preconceitos também. Já pensou que delícia se, no futuro, entendermos que na vida ninguém é nativo. A existência de cada um é como um barco, no qual fazemos um trajeto ao final do qual sempre partiremos sem as malas.

A casa do gigante

Vendo o mundo desde diversos pontos de vista nos tornamos mais sábios, ou menos truculentos…

Gosto de imaginar uma espécie de instalação chamada “A casa do gigante”, um lugar para ser visitado pelos adultos. Seria como uma casa normal, ou mesmo só um cômodo dela, onde todas as superfícies estivessem acima da altura dos nossos olhos. O único modo espiar em cima delas seria subindo em uma cadeira muito alta, que tenha que ser escalada. Ali nos sentiríamos tão pequenos em relação ao ambiente que em nosso horizonte apareceriam somente pernas, sapatos, barras de saias e os sons das vozes viriam de cima, entrecortados, confusos. Se pudéssemos viver isso, nem que seja em uma experiência sensorial, lúdica, talvez nos tornássemos mais capazes de compreender as crianças.

Isso foi antes de conhecer o incrível trabalho do escultor australiano Ron Mueck e seus gigantes hiperrealistas. Ele cria figuras humanas enormes, representando gente normal, fazendo coisas corriqueiras, ao lado das quais uma pessoa crescida sente-se do tamanho de uma criança de dois anos, no máximo. As exposições de sua obra atraem multidões, acredito que em busca da sinistra sensação de viverem algo que um dia já nos foi familiar.

O mundo ao qual as crianças são apresentadas não é do seu número, o que as leva a um modo peculiar de cognição. Elas constroem suas teorias a partir do que literalmente lhes cai de cima. Recolhem migalhas de cenas, de frases, observam o sapateado, o movimento das mãos e a sonoridade das vozes sem entender com exatidão o que se passa. Tentam decifrar a mímica facial, a linguagem dos gestos, prestam atenção em tudo, embora estejam brincando e parecendo alheias. Vão montando suas hipóteses, fazendo suas colagens, entendendo a seu modo quem são seus adultos, quais vínculos eles têm entre si e em relação a ela.

Como os bichinhos, seus personagens prediletos, elas também ficam de fora e estão mais próximas do chão. Por isso, quando era pequena gostava de “morar” numa casinha feita com um pano jogado em cima de uma mesa, um lugar que me acolhia por ser na minha medida.

Falar com uma criança exige do adulto uma atitude que será decisiva para o tipo de relação que estabeleceremos com ela. Se falarmos do alto, olhando para baixo, estamos optando pela distância, pela hierarquia. Ao levantá-la, podemos içá-la, como se fossemos um guindaste e ela se entregará passivamente como um saco de batatas. Por outro lado, é possível oferecer nosso corpo e braços de forma a que ela suba, embarque ativamente, e possa em nossa companhia contemplar a paisagem do alto. Por último, se nos sentarmos ou acocorarmos, encontraremos seus olhos e partilharemos seu ponto de vista.

Na relação entre gigantes e pequeninos, há uma dança de corpos, um jogo de olhares, um esforço de encontro que precisa vencer o desajuste de tamanhos, de visões. Frequentemente nos surpreendemos com as coisas incríveis que as crianças dizem e ficamos abismados com sua esperteza. É que desde sua perspectiva acabam percebendo sutilezas, enxergando o que nossa percepção viciada deixa escapar. Quando as diferenças são respeitadas, todos os envolvidos aprendem.

(publicado na revista Vida Simples do mês de julho)

Desventuras do Jacozinho

os homens podem controlar o mundo, menos seu membro mais ilustre.

“Por que não consigo controlar algo tão próximo, tão pequeno e tão simples?” O leitor não precisa ficar perguntando-se quem ou o que é esse pequeno David, capaz de levar qualquer Golias à nocaute: é o pênis. Aliás, vulgo “Jacozinho”, para seu dono, o escritor Jacques Fux, autor do recém lançado Brochadas (Ed.Rocco).

O prazer feminino é considerado um mistério. O clitóris, parte do corpo apenas devotada ao prazer, também é um assunto tabu e conta com um milésimo das denominações dedicadas ao órgão sexual masculino. A dificuldade surge quando o orgasmo delas é comparado com a mecânica da ejaculação, que pareceria tornar tudo visível e simplório. Pois é, mas o Jacozinho não pensa bem assim, ele tem ideias peculiares sobre com o que e quando sentir-se motivado. Seus mecanismos de prazer também são enigmáticos para o homem, o desejo parece assumir vida própria pela via da ereção ou da impotência, tanto que diz-se que o homem pensaria com a cabeça de cima diferente da de baixo.

“Nós homens, coitados, atados a imagens pornográficas, fetiches edipianos e a bundas e peitos, não conseguimos nem nos aproximar das inúmeras possiblidades de prazer feminino”, queixa-se Fux. Porém, nada disso seria uma grande questão se Jacozinho não negasse fogo quando bem entende, obrigando seu homem a tentar desvendar o que os move, a ambos.

O autor resolve enviar cartas para perguntar às mulheres, tanto àquelas com quem brochou, quanto às que lhe produziram notória motivação sexual, mas que o deixaram, sobre o que aconteceu entre eles. As respostas, ficção com tintas de realidade ou vice-versa, dão oportunidade para que essas ex-parceiras acusem a inadequação de Jacques, como escritor e como amante.

Masculinidade e virilidade não são a mesma coisa, tanto quanto Jaques e Jacozinho não pensam em uníssono. O fenômeno da ereção levou tanto tempo para ser compreendido quanto o prazer feminino. Eram ideologicamente mais aceitáveis as teorias que associavam a virilidade à tonicidade de um corpo musculoso, rijo e guerreiro, e a pujança masculina reduzida apenas à existência de um membro e sua capacidade de penetrar.

Curiosamente, a função erétil também depende do relaxamento da musculatura lisa do pênis, ao contrário da tensão que seria considerada mais máscula. Estamos aqui no território perigoso do descontrole, da entrega, do desejo e da neurose. Além disso, a demanda contemporânea pede ao homem uma ereção duradoura, capaz também de garantir o prazer alheio. Alheia mesmo é a vontade do Jacozinho. Simone de Beauvoir disse que não se nasce mulher, torna-se. Para os que chegaram ao mundo com um pênis, duro mesmo foi constatar que não se nasce viril, e nem sempre torna-se.