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Os gritões da caixa de areia

A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade.

Minha avó húngara costumava observar que aquele que grita é o que suspeita não ter razão. Ela me dizia isso para que eu evitasse a deselegância absoluta de argumentar na base do volume da voz. A fala mansa, o raciocínio ponderado e o argumento pensado, eram, para ela, expressão de inteligência. Tinha horror de gente alterada.

Ela estava em posição adequada para falar de exageros, de discursos fanfarrões, pois viu a ascensão do nazismo acontecer e, estarrecida, constatou a massiva adesão popular às bravatas de indignação mais caricaturais. Os oradores performáticos e exaltados eram os “cidadãos de bem”, pedindo a eliminação dos culpados por macular a sociedade ideal que eles presidiriam. Por azar, ela pertencia à categoria dos ratos a serem exterminados. Sobreviveu reclusa num porão durante toda a Segunda Guerra, na qual perdeu sua família, exterminada em Auschwitz. Lá fora, os nazistas e seus asseclas vociferavam o quanto precisavam vingar sua pátria reduzida ao descrédito. Em vez de tentar uma saída econômica e diplomática, a indignação do povo alemão encontrou um judas para malhar e na guerra seu caminho. Não estamos, creio e espero, à beira do fascismo da mesma maneira, embora tapados de ódios e indignações.

A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade. As crianças bem pequenas, por exemplo, podem puxar o cabelo de outro bebê e chorar como se eles mesmos tivessem sofrido a agressão. Isso não é artimanha, é confusão de limites. Quando estas bordas, no sentido de onde termino eu e começa o outro, ficam tênues, é que as mordidas na caixa de areia começam. A maior parte da violência provém desse tipo de disputa territorial que está nos primórdios da identidade, essa frágil autoimagem que congrega o pouco que sabemos de nós mesmos.

Nas crises econômicas as tempestades raramente abalam os muito ricos, mas a classe média vive suas benesses como um barquinho pequeno e inseguro. Seu poder aquisitivo oscila e, decorrente disso, seu status social é mais frágil. Quando naufragam os privilégios daqueles que não os têm garantidos, os gestos de desespero são esperáveis. Nestes casos, é o prestígio e, portanto, um dos fundamentos da identidade, que ameaça se afogar. Ninguém quer parecer-se com os pobres, cuja miséria emoldurava a riqueza alheia.

Neste momento de crise, os limites que separam indigentes de pobres, e remediados de médios ficaram mais tênues. É hora, portanto, de gritar, morder o coleguinha e perder a elegância. Afinal, se não sabemos mais o que somos e, principalmente, quanto valemos, alguém deve ser responsabilizado, aos gritos, por isso. Cortem-lhe a cabeça!

Nossas tantas Alices

Por que Alice virou um “nome de época”?

Andam nascendo muitas Alices. Essa questão de nome de época nos pega sem nenhuma consciência de estarmos participando de um coletivo de repetidores. Aqui em casa fizemos isso nas duas gestações, nas quais nos apaixonamos por nomes para nossas filhas que pareciam perfeitos e originais. Chegada a época de creche ou escola, a maior parte dos pais surpresos descobre-se bem pouco original.

Há nomes que evocam um jogador de futebol em alta, um personagem da novela, atriz ou modelo famosa. Mas os verdadeiros nomes de época não tem origem tão clara, só passam a soar bem e não sabemos por que. Porém não creio que em relação à escolha de Alice isso seja tão enigmático.

Fazem cento e cinquenta anos que Carroll escreveu uma história que havia contado, durante um passeio, para as filhas de um colega. Entre elas estava Alice Liddell, por quem tinha declarada preferência. Ela gostou tanto daquela trama, na qual a protagonista tinha seu nome, que pediu que a escrevesse para ela. Convidado a publicá-la, ele acrescentou alguns personagens e cenários, compondo o inesquecível Alice no País das Maravilhas. Mas o que fez dessa história maluca, cheia de charadas lógicas, criadas por um matemático gago que dava aulas soporíferas, um clássico? Por que até hoje nascem Alices, francamente inspiradas pela heroína desta narrativa?

Carroll cativou seu público infantil inicial por criar trocadilhos e mal entendidos entre as personagens, que soam parecidos ao pensamento das crianças. Além do típico humor inglês, que mistura duras críticas com toques de absurdo e caricatura. Provavelmente, o sucesso da história foi decorrente da complexidade de linguagem, dos personagens e cenários oníricos e principalmente a irreverência tão diferente dos contos morais e pueris que eram dirigidos às crianças.

Carroll inventou a primeira heroína feminista da história da literatura infantil. É por isso que continuam nascendo tantas Alices. Ela explorou o País das Maravilhas debatendo, desobedecendo, questionando as figuras importantes do lugar, sendo irônica . Em nenhum momento teve medo ou vontade de voltar para casa. Ao contrário, para viabilizar as aventuras, foi mudando de tamanho sempre que necessário para ir a um novo lugar ou escapar-se de uma enrascada.

Paira uma dúvida sobre a pedofilia do autor, dado ao seu fascínio por meninas a quem inclusive fotografava adormecidas, com as roupas em sugestivo desalinho. Arisco dizer que Carroll era seu genuíno admirador. Não importa a identidade de gênero que ele teria assumido ou que teríamos lhe atribuído hoje, talvez gostaria de ter sido uma delas. O fato é que ele fez da pequena Alice Liddell o protótipo das meninas destemidas que hoje os pais querem colocar no mundo. E isso há cento e cinquenta anos!

A bela adormecida tamponada

Uma mulher indisponível, nem pornográfica, nele erótica, é uma imagem sinistra…

Nas imagens pornográficas as mulheres aparecem explicitamente ofertadas ao olhar e ao acesso dos interessados. Estes, ao menos imaginariamente, podem dispor delas para seu prazer. Quanto mais pornográfica e menos erótica for a representação, mais visíveis serão os orifícios “disponíveis”. A transformação de alguém em uma imagem incumbida de encenar fantasias alheias, sem levar em conta as que ele próprio possa ter, é o cerne da pornografia e o avesso do erotismo. As pessoas que consomem esse gênero não são egoístas ou pervertidas. São apenas neuróticos triviais que utilizam representações anônimas daquilo que imaginaram para atingir o gozo sexual.

É necessário que o outro seja passivo? Sem problemas. Dominante? OK. Cai bem que esteja encontrando prazer nas mãos de alguém do sexo oposto que não seja eu? Tudo bem. Preciso ver duas pessoas do mesmo sexo se desejando? OK.. Vários participantes, todos desejando uma só mulher? Para tudo há uma solução: a indústria pornográfica arregimenta pessoas capazes de praticar os contorcionismos necessários, a serviço de um Kama Sutra comercial pouco encontrável numa real cena de sexo.

Agora imagine uma dessas mulheres, linda e loira, colocada em posições clássicas da pornografia mas com todos os orifícios de seu corpo tamponados. Olhos, boca, nariz, ouvidos, vagina, ânus, cobertos com uma massa branca que a impede de qualquer relacionamento, ativo ou passivo, com o mundo. Numa urna de vidro, ao lado das fotos, estão os tampões, modelados em seu corpo.

No espaço de exposições do Santander, em Porto Alegre, entre outras instalações instigantes, os artistas Laura Cattani e Munir Klamt propõe essas fotos, da mulher tamponada, nem pornográfica nem erótica: sinistra.

Eles chamaram o conjunto das obras expostas de “Aporia”, traduzível por “impasse”, “beco sem saída”. Esse é o efeito desse corpo indefeso e inacessível. A anti-bela-adormecida dos retratos não está à espera nem de um príncipe que a beije, nem de um voyeur que a contemple. Ela tem seu corpo fechado, mas permanece em poses de disponibilidade, representando um paradoxo de passividade interditada.

No local, travei um diálogo com uma moça que trabalhava ali. Perguntei de quem era a obra. Ela entendia que eu indagava quem era a moça e dizia não saber informar a identidade da modelo. Insisti e ela também. Após o reiterado mal-entendido, compreendi que ela não aceitava o anonimato da retratada. Afinal, se era seu corpo, por que não seria ela identificada? Ficamos nessa conversa de surdos porque ambas nos angustiamos frente às fotos. Uma mulher cheia de rolhas é um doloroso retrato da passividade feminina. Ele nos mostra que fomos educadas para estar sempre alheias ao mundo e disponíveis para o uso.

Apostas

Até que ponto podemos apostar em algo, num projeto que não vinga, numa escolha amorosa equivocada?

Quem entende de matemática (o que não me inclui) costuma dizer que ganhar na loteria é tão improvável que os sorteios só sobrevivem graças à ignorância dela. Bom, esse é o caso da maioria das religiões: rebeldes à comprovação, os fiéis insistem em acreditar no impossível. A visita a uma agência lotérica é um ato profano de fé, tanto que costumamos dizer que estamos “fazendo uma fezinha”, rezamos por uma vitória da esperança sobre a realidade. Aliás, se o otimismo dependesse dos fatos estaria extinto.

Por uns quarenta dos seus oitenta anos de vida, minha avó apostou no mesmo número de loteria, comprava o bilhete junto com um parente mais jovem. Quando ela se foi, ele seguiu com esse hábito até seus últimos dias. Confrontado com a decisão de parar ou continuar com o que já era uma birra paterna, seu filho, mesmo amedrontado, parou de comprar o número. O temor que os movia era que no mesmo dia em que resolvessem abandoná-lo ele sairia, como se existisse uma memória vingativa entre uma rodada e outra de apostas. Não sei se afinal o endemoniado prêmio saiu para esse número, tenho receio de investigar.

Temos esse hábito em relação a apostas menos lúdicas e levianas do que um bilhete de loteria. Quantas vezes nos pegamos insistindo num relacionamento fracassado, num negócio falido, numa escolha equivocada? Esses investimentos amorosos ignoram os dados da realidade, apegam-se às mínimas amostras de que vale a pena persistir. Eles se baseiam no mesmo temor da minha avó, de que outro, menos “merecedor”, ganhe a aposta. Junto de outro par aquela pessoa de quem já não estamos gostando pode se revelar exatamente o que queríamos que ela fosse. Tememos que se embeleze, torne-se mais romântica, responsável, bem sucedida, sensível, corajosa, criativa. Alheia aos nossos investimentos, ela prosperará assim que deixarmos de apostar. O mesmo vale para negócios e outras escolhas infelizes. Então o erro não estava no amado, no negócio, no projeto, o erro éramos nós?

Nesse caso, insistir no erro não é somente burrice, é uma espécie de aposta delirante no nosso desejo. É difícil acreditar que o destino, essa entidade que governa o acaso, seja tão rebelde à nossa vontade. Afinal, esse não era o segredo – como dizem algumas fórmulas de auto-ajuda – querer muito e persistentemente?

A admiração que sentimos por aqueles que levaram seus desejos às últimas consequências é coerente. Os perseverantes revelam que não basta querer, é preciso trabalhar em prol do que se almeja. Por outro lado, a obstinação supersticiosa em acreditar na supremacia da nossa vontade sobre o destino é aprisionante. Muitas vezes o segredo está em desistir, escolher outro número na vida no qual apostar. Esse ato em geral requer muita coragem e o mais difícil: a sinceridade consigo mesmo de admitir que também fazemos escolhas erradas, e que nossa vontade pode não fazer a mínima diferença.

(publicado na Revista Vida Simples de junho 2015)

Imposturas

É mais fácil falar do que não vivemos, os verdadeiros protagonistas da história são pouco eloquentes.

Rachel Dolezal, dirigente da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor preferia ser considerada negra, em vez de afrodescendente. Essa precisão linguística só chamou a atenção depois dela ter sido denunciada como “falsa negra” pela própria família de origem europeia.

Tania Head, famosa sobrevivente do 11 de setembro não existe. Alegava ter fugido da torre sul enquanto seu noivo David morria na torre norte. David tampouco existia. A verdadeira nem estava em Nova York no dia da tragédia.

Binjamin Wilkomirski escreveu Fragmentos, livro muito premiado e traduzido em várias línguas, narrando sua experiência de criança judia nos guetos da Polônia e nos campos de extermínio. O autor era um suíço que nunca saiu seu país durante a infância. No auge do seu sucesso, a BBC filmou o encontro dele com uma mulher que teria sido sua parceira de infortúnios. Apesar do evento meloso, ela era na verdade uma americana que tampouco esteve nos lugares onde teria sido supliciada.

Os relatos falsos são mais dramáticos e explícitos do que os dos verdadeiros sobreviventes. Basta observar a elegância enxuta das memórias de Primo Levi, por exemplo. O problema é que esses mitômanos, mentirosos por delírio ou mau-caratismo, desvirtuam o importante depoimento dos verdadeiros protagonistas da história. Aliás, pela minha experiência, estes últimos não costumam ser muito eloquentes.

Quem viveu episódios traumáticos guarda em relação a eles uma reserva cheia de dor, auto-recriminações e duros questionamentos sobre a condição humana. É por isso que minha tia-avó respondeu, quando a questionei na infância, que o número tatuado em seu braço, resto indelével do campo de concentração, era “um telefone que ela não podia esquecer”. Nem mais uma palavra. Nunca mais.

A presença de uma falsa afrodescendente nesse grupo de impostores depõe do caráter igualmente traumático da escravidão, cuja memória se atualiza na desigualdade racial que insiste em sobreviver. Essas falsas vítimas, que assumem uma identidade marcada pelo sofrimento alheio e lhes emprestam uma narrativa fantasiosa, são porta-vozes dos sentimentos de uma maioria culpada pelos feitos de seus antepassados. É por isso que seus embustes têm sucesso.

É inacreditável quão longe chegamos em termos de frieza, de crueldade. E se fossemos nós nesses momentos, teria sido nobre ou covarde nossa posição? Depois da escravidão, extermínios e guerras, nossa história é uma ferida aberta. A mentira das falsas vítimas, assim como os discursos dos fascistas e racistas que negam a legitimidade dos fatos, depõe da dificuldade de lidar com ela. O passado nos questiona e o presente ainda pede que nos posicionemos. É hoje, não ontem, que podemos mostrar de que fibra somos constituídos.

Velhos libidinosos

A quem interessa livrar-se do sexo tão cedo?

Um fazendeiro americano octogenário foi preso por assédio sexual. Não se trata de um vovô tarado, como tantos que destruíram vidas de netas e crianças da vizinhança, mas de um marido que insistiu em fazer sexo com a esposa doente. O casal vivia um amor tardio, ambos viúvos conheceram-se no coral da igreja e nos últimos anos constituíam um par romântico. Infelizmente, ela ficou com Alzheimer e por isso a relação entre ambos foi considerada criminosa.

Os especialistas de acusação, contratados pela filha, e da defesa obviamente divergem. Os primeiros dizendo que a demência faz o encontro deles equivaler-se ao estupro de uma criança por um desconhecido; já para os que não o culpam, o desejo erótico, assim como a fome, é uma busca de satisfação que a doença não suprime e pode inclusive ser benéfica.

Nesses quadros a memória não desaparece de forma contínua, há lampejos de reconhecimento. Quem convive com um desses doentes que se perdem de si mesmos, percebe que alguns laços afetivos sobrevivem, assim como rudimentos de carinho e alegrias. De fato, não sabemos se aquele ato sexual foi um abuso repulsivo ou o patético resto de um romance, mas não nos surpreende que o caso tenha sido rumoroso.

A polêmica em torno do casal de senhoras maduras e gays que recentemente trocou um beijo nas telas brasileiras, onde as telenovelas são formadoras de opinião, fala do mesmo fenômeno. Certamente dois tabus foram rompidos naquela cena, mas pouco se falou do preconceito contra a sexualidade dos idosos.

Por que preocupa-nos tanto manter o desejo erótico tão delimitado? Beijos, carícias, olhares e juras de amor são controlados não somente no que diz respeito aos clichês de gênero, mas também aos parâmetros do tempo. Acredita-se que o desejo dure enquanto temos corpos férteis e bonitos. A imagem de velhos na cama, com suas peles enrugadas e seus cabelos brancos, beijando-se, penetrando-se e trocando olhares lânguidos é tão inadmissível  para o senso comum quanto a de pessoas do mesmo sexo protagonizando a cena. Talvez até mais, por quê?

Os desejos sexuais, prescritos por lei ou não, são como dizem os advogados de defesa do senhor, uma carga vital importante e persistente. Não vivemos sem comer e a gula é admissível ao longo de toda a vida, mas o sexo sempre foi considerado optativo e temporário. A experiência erótica ocupa muito mais espaço imaginário do que real: é tão rocambolesco, neurótico e cansativo o roteiro de fatos e fantasias que envolve a vida sexual, que espera-se que um dia acabe. Soa até tentadora a ideia de que todo esse imbróglio seja finito, de que também disso se aposente. Então chegam esses velhos a dizer-nos que não haverá descanso, que seguimos até o fim à mercê dos impulsos eróticos. Assim é, aproveite se quiser e puder.

A cortesia amorosa do cafezinho

Regras da cortesia amorosa: ao contrário do que dizem, não vivemos uma época de vale-tudo no sexo e vale pouco no amor.

Para os mais apocalípticos vivemos tempos selvagens, onde o sexo tornou-se um açougue e a intimidade afetiva está extinta. A relação sexual casual, impessoal, sem palavras, teria afogado em gozo as verdadeiras trocas. De fato, por vezes é assim e não significa nada grave para os envolvidos. Mas, só para complicar esse raciocínio alarmista, temos uma instituição, representante do recato e da civilidade: o cafezinho, um encontro curto e marcante, como a bebida que o nomeia.

Suponhamos que duas pessoas se conhecem, pode ser na internet, num jantar de amigos comuns, na aula de inglês, na academia, trocaram telefones na parada de ônibus, num sarau, num encontro de meditação ou entre as estantes do supermercado. Podem ter havido alguns beijos ou até uma transa na saída de uma festa, talvez meio alterados pelo álcool. Porém, nada nesses encontros prévios, nem mesmo o sexo, significou qualquer autorização para a intimidade, nem para ilusões ou expectativas sobre a relação. Até que se tome um cafezinho.

Ele será marcado em um lugar público, na impessoalidade do shopping ou em um lugar mais simpático. Essa proposta já diz algo dos envolvidos. Aí começam as pistas, a partir das disponibilidade de horários, das partes da cidade com as quais se tem intimidade, do meio de locomoção. Para muitos casais que se iniciaram virtualmente há o desafio de ver-se pela primeira vez e, principalmente, do efeito causado pela presença do outro.

O desejo erótico responde a variáveis muito peculiares, lapidadas com nossa identidade. Chegar de bicicleta ou num carrão, ter uma aparência certinha ou desalinhada, frágil ou possante, são dados que podem ou não coincidir com a cartilha que regra a excitação de cada um. A sociedade é cheia de clichês sobre a sedução, mas os desejos não são assim tão estereotipados. Ainda bem. Aliás é bem comum que alguém se surpreenda supondo que seria lógico gostar de uma pessoa assim, mas só consegue sentir desejo sexual por pessoas assado.

Então, nossa dupla de candidatos ao amor se encontrará para o dito cafezinho. Um café pode resultar em amor, amizade ou na conclusão de que não há o que fazer juntos. Nesse último caso, em geral partem sem ressentimentos, pois o cafezinho é uma aposta mínima, não será uma saída vexatória. É diferente de um convite para jantar ou para ir um cinema, que são um passo adiante.

Na mesa do cafezinho, o destino está depositado em tudo aquilo que dizem ter desaparecido: as palavras, os olhares, as delicadas sutilezas do encontro e da erótica. Seguimos tendo nossos métodos de cortesia amorosa. A liberdade sexual é contemporânea do cafezinho.

Memórias feitas com sangue

Apesar dos rios de sangue, poder e dinheiro se afogam, o tesouro que sobrevive é a herança cultural

O “México é um país feito por suas feridas”, escreveu Carlos Fuentes. Apesar disso é um país que mexe com nossas fantasias de prazer, pois dele esperamos o efeito eufórico de suas cores e tequilas, das Fiestas, da música dos Mariachis, das praias e da alegria com que se combate o luto. Realizei um velho sonho e fui para lá, gostei tanto que só penso em voltar.

Muito sangue se derramou em conflitos entre Astecas, Mexicas, Maias, quer seja em guerras ou sacrifícios rituais, além de que os espanhóis foram conquistadores cruéis. Sem contar os lances dramáticos da Independência e da Revolução Mexicana de 1910. Imperadores, conquistadores, revolucionários, políticos e artistas deixaram marcas difíceis de apagar, num povo que faz questão de lembrar.

Presenciei uma cena, no Museu de Antropologia, que pode ilustrar essa relação peculiar com a memória. O guia se esforçava para apresentar uma maquete do sítio arqueológico de Tehotihuacan a um grupo de turistas, quando uma senhora de traços indígenas aproximou-se e começou a explicar a seu neto do que se tratava aquele lugar. Parecendo nem perceber a presença dos estrangeiros, fez para o pequeno, em voz alta, sua própria introdução ao tema. Por instantes, as vozes do guia e da avó duelaram, até que ela o silenciou e partiu sem dedicar sequer um olhar aos outros presentes. Aquilo era seu por direito inquestionável. Em todos os lugares históricos e museus que visitei, partilhei a experiência com grupos de escolares que, acompanhados por seus mestres, aprendiam a história de seu próprio país.

Boa parte da população mexicana assume sua identidade Asteca ou Maia, assim como adota muito a sério a fé católica deixada como herança pelos espanhóis. Além disso é onipresente a memória de políticos e líderes populares que, entre outras coisas, valorizaram a educação e a memória. É também um país que sofre com o poder do narcotráfico, inflado por um estado apático ou conivente, enquanto milícias populares assumem o controle em periferias e povoados isolados.

Carlos Fuentes fala de dois Méxicos, o do “papel dourado” e o da “terra descalça”. Entre eles, o legado da revolução popular de 1910 parece ter erguido algumas pontes, que se traduzem na atitude prepotente e ao mesmo tempo digna daquela avó.  “Apesar de seus fracassos políticos, a Revolução Mexicana foi um êxito cultural. Tornou evidente a continuidade cultural do país, apesar das suas fraturas políticas”, acrescenta Fuentes. Além de toda a beleza natural e cultural daquele lugar, talvez precise voltar lá para terminar de entender como se faz para sentir que se tem um passado, uma história para reivindicar. Felizmente, o culto da memória não se afogou no rio de sangue que brotou dos altares de sacrifício e nunca deixou de correr.

25/05/15 |
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Filhos-bonsai

Como criar filhos sem fazer deles Bonsais, sem reproduzir o cuidado e as podas que atrofiam e impedem o crescimento.

Meu marido tem um jardim de cactos e suculentas. Ele parece ter uma espécie de identificação com sua estética monstruosa. Mário ama dragões e todo tipo de animal que pareça, mesmo que remotamente, pertencer a uma fauna fantástica, assim como esses seres espinhudos e retorcidos. Aliás, ele costuma dizer que “cria” suas plantas, seus monstrinhos verdes.

Mantém-se curioso em relação a todo o reino vegetal, adora pesquisar suas classificações, e só há um tipo de planta que lhe produz mal-estar: o bonsai. Tem pena dessas árvores, que lhe parecem atrofiadas. Bem sei que os praticantes dessa arte de origem oriental consideram improcedente o sentimento daqueles que julgam que os bonsais seriam árvores torturadas para permanecerem minúsculas.

Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro são as três ditas tarefas a realizar antes de morrer. Porém, discordo de que se possa arrolá-las como realizações possíveis, já que não acho que possam ser concluídas. Ter um filho nunca é um gesto acabado, é preciso criá-lo e ficar negociando com o jeito como ele se inventa. Podemos ser semente e terra, mas não passamos de ponto de partida. Escrever um livro é o começo de um vício. Cada obra já sai da editora como mais uma tentativa fracassada de dizer algo que nos escapa, dali a necessidade do próximo. As árvores, bom, crescem por conta e dependem muito do ambiente.

Mas como seria escrever um livro e criar um filho ao modo bonsai? Nossa necessidade de propor que um filho estude, faça esportes, realize tarefas enfadonhas e se esforce para aprender, reduz sua liberdade e o tempo de brincar. Educar lembra os suportes de arame que são também usados para que os galhos do bonsai se direcionem equilibrada e graciosamente.

Para orientar um filho que possa crescer é preciso fazer algo diferente de uma poda que o atrofie, que o deixe como um frágil e dependente bonsai. Envolve suportar que seus galhos, no sentido de sua identidade, suas escolhas, seus dons e também suas humanas imperfeições, assumam formas imprevistas. Ao crescer se empalidece os traços e intenções dos pais. Quem escreve um livro também sente que a autoria lhe escapa, tem-se pouco controle sobre o estilo, o tema escolhido, o tamanho em que ele vai ter.

Não é possível deixar que livros, filhos ou árvores plantadas cresçam selvagemente, eles precisam de cuidados e até de podas para florescer. Por outro lado, precisam tornar-se “traidores” dos seus autores, sejam eles pais ou escritores. Eles se avolumam na arte de ter vida própria, seu destino os transcende. A criatura sempre escapa do criador.

Para controlar uma cria, só mesmo reduzindo-a a ser um bibelô, a imitação de uma árvore grande, de uma pessoa crescida, de uma obra prima. Seres-bonsais, filhos perfeitos em representar nossos ideais, não são viáveis para enfrentar os ventos, o sol e a chuva do mundo lá fora. Não passam de bibelôs, troféus na estante familiar e, esses sim, me produzem muita tristeza.

Tocando a vida juntos

O verdadeiro convívio abala o narcisismo herdado da primeira infância: a capacidade de tocar a vida juntos é prova de uma maturidade nem sempre alcançada.

Todas as pessoas solitárias,

de onde elas vêm?

A que lugar elas pertencem?

Eleanor Rigby/Beatles

Juntos– simples assim – é o título do livro de Richard Sennett que inspira a jornada deste ano do Fronteiras do Pensamento. O autor, que foi músico de formação clássica antes de trabalhar nas teorizações com que hoje nos brinda, parece ter aprendido muito no trato com os instrumentos e com a experiência de tocar em conjunto.

Seu mestre na música certa vez disse: – Ouçam, não leiam! Propunha que os músicos escutassem uns aos outros como prioritário à leitura solipsista da partitura. Não há uma forma única de interpretar as notas que aparecem indicadas, a sintonia do grupo depende de que se estabeleça um diálogo, sonoro mas sem palavras, entre as opiniões de cada um a respeito da expressão daquela melodia. O resultado será fruto da colaboração e das diferentes referencias pessoais, do estilo, da cultura de origem, assim como da tendência de cada um à suavidade ou à estridência.

Nunca fomos tantos e jamais tão sós. Talvez por isso, e não somente pelo prazer que nos proporciona, o sexo é uma obsessão contemporânea, pois trata-se de experiência obrigatoriamente partilhada. A vida erótica sempre envolve mais alguém, nem que seja na imaginação, e essa outra criatura nos confunde e assusta até mesmo na fantasia. Quanto aos vínculos menos carnais, as redes sociais, tentativa virtual de recuperar o perdido sentimento de viver em comunidade, também são sintoma disso. Elas produzem uma comunicação frenética e igualmente pobre, onde impera o que Sennett chamou de “tribalismo” – a solidariedade entre aqueles que se parecem e agressão aos que são diferentes.

O verdadeiro convívio, esse dom tão esquecido, necessário para levar uma tarefa adiante, é como o dos músicos: obriga a escutar as peculiaridades de cada um e as diferenças para afinar o tom com os outros. Aliás, “Juntos” poderia muito bem ter se chamado “Outros”, esses conterrâneos que tratamos como alienígenas. Eles costumam atrapalhar muito toda a onipotência que herdamos da primeira infância, aquele pensamento mágico no qual fantasiamos que o mundo dobra-se à nossa vontade

Na recomposição do nosso fragilizado tecido social, avariado pelo egoísmo, pela desigualdade e pela violência, o autor sugere que sejamos empáticos. Ele contrapõe esse estado de espírito às atitudes aparentemente solidárias, onde nos dirigimos ao outro que precisa de compreensão ou ajuda pensando “sei perfeitamente como você se sente”. Isso é falso, podemos deixar que os outros nos envolvam e inquietem, mas nunca compreenderemos perfeitamente o que eles sentem ou pensam. Já a atitude empática passaria mais por “estou atento a você”.

Essa escuta curiosa, que nos contamina com os questionamentos e inseguranças que vêm dos outros, é velha conhecida dos psicanalistas. Ao contrário do que se pensa, de que esses profissionais da escuta sempre sabem o que está por trás do que dizem os pacientes, a verdade é que ignoram do que se trata e que rumo vai tomar. Somente graças a essa humildade é possível descobrir novos caminhos para velhas questões, descobrindo conjuntamente alternativas às soluções meio tortas e dolorosas que cada um foi improvisando sozinho.

Curiosamente, gostamos de ver um grupo trabalhando afinado e aproveitando os diferentes estilos de cada um, mas apenas na ficção e principalmente no que diz respeito ao mundo do crime. No vínculo entre ladrões, que Sennett chamou de anjo sombrio da cooperação, o que nos cativa são os grupos que se unem para usurpar e seu trabalho não propriamente constrói algo. Como se vê, sabemos o valor da tarefa partilhada que nos torna criativos e eficientes, mas desenvolvemos uma perigosa urticária a tudo aquilo que é útil e construtivo. A rica e desafiante experiência da colaboração entre aqueles que são diferentes serve para fazer assaltos bem sucedidos, mas também para a criar e descobrir, para a arte e a ciência. A vida é a arte do encontro, cantava Vinícius, a possiblidade de fazer algo juntos, acrescentaria Sennett.

(publicado no Caderno Especial do Fronteiras do Pensamento 2015)

22/05/15 |
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