Ócio não criativo
A febre dos livros de colorir evoca o direito das crianças acamadas, no passado, de ficar quietas e obsoletas.
Na minha infância ficar doente não era tão mau negócio assim. A convalescença era um tempo de regalias e uma boa dose de atenção extra. Claro, não valia se fosse algo grave, que significasse preocupação, hospital ou, o pior de tudo: injeção. Tínhamos sarampo, varicela, rubéola, caxumba. Pegávamos tudo, pois não havia vacina para a maior parte delas. Quando um irmão, parente ou amigo aparecia doente, éramos levados para “pegar de uma vez”, essa era a única forma de ficar imunizados. Nas famílias numerosas essas doenças faziam tantas vítimas quanto crianças houvesse na casa. Um amigo meu conta que uma das suas maiores tristezas era de que ele nunca pegava nada, sentia-se privado das vantagens dos doentes.
A prescrição de repouso era coisa séria, tínhamos que ficar deitados, de pijama, durante dias a fio. Para nos distrair, além da permissão para ver um pouco mais de tevê, haviam as revistinhas e os livros para colorir. A comida, embora em geral parente da canja, tinha a enorme vantagem de ser na cama. Enfim, ficar doente era ser reis por uns dias, as coceiras e febres até que compensavam. Naquela época esse tratamento era excepcional: ser criança não era tão importante como hoje, em que se pensa na felicidade delas o tempo todo. A lembrança desses tempos de ócio e mimos está fortemente associada aos livros de colorir que, para minha surpresa, tornaram-se uma coqueluche (para manter-se no tema) entre os adultos. São publicações com títulos como Jardim Secreto, Floresta Encantada ou Jardim Encantado, com gravuras lindas, detalhistas, que exigem muita atenção, dias de trabalho e mão firme para serem preenchidas. Tentei comprar um desses e fui informada de que os milhares de exemplares estavam esgotados, aguarda-se uma nova tiragem.
Os livros de colorir não são criativos, não é preciso pensar. A escolha da cor é o máximo de desafio que eles requerem. Alguém criou esses jardins de traços para que pudéssemos habitar seus espaços vazios com nossas cores da infância. Talvez estejamos mesmo meio doentinhos, precisando de uma canja na cama e ficar parados sem culpa.
O bom daquelas doenças, em que éramos objeto de cuidados especiais, era o fato de que não havia culpa, pegava-se sarampo porque era o certo a se fazer naquele momento da vida. Agora, quando adoecemos, penitenciamos por estar cuidando pouco do nosso corpo: há de se fazer mais exercícios, prestar mais atenção na alimentação, organizar melhor nosso tempo para dormir mais e melhor. Estamos exaustos de tantos mais, sempre mais. Não estranha que tanta gente esteja optando por ficar com os lápis de cor na mão por dias, completando espaços em branco. Também quero.
Gêmeos: cobiçada semelhança
Por que somos fascinados por gêmeos?
Acho gêmeos idênticos fascinantes e mesmo os que não são diferentes, mas nasceram juntos, me parecem invejáveis. Nas gestações os cobiçava, além de que gosto de imaginar como seria ter tido filhos assim. Não creio que ninguém seja capaz de níveis tão profundos de cumplicidade quanto os ditos “vizinhos de útero”, mas igual me pergunto por que eles capturam meu olhar desse jeito.
A curiosidade que suscitam diz mais sobre os que nasceram sozinhos, do que dos gêmeos. Na verdade, corresponde a fantasias que temos sobre o amor perfeito. Sempre nos chateamos quando o outro, seja amado, parente ou amigo, revela o quanto nos desconhece, assim como que não nos escuta ou nos abafa. Achamos que se tivéssemos alguém que vivesse tudo ao mesmo tempo e nascesse com as mesmas armas, seríamos finalmente completos.
Tive duas colegas de jardim de infância que eram iguais, lindas, loiras, usavam grossas tranças e a mesma roupa. Nas fotos que ainda possuo aparecem como uma espécie de moldura, decorativas, equidistantes, tratadas como cenário. Poucos sabiam seus nomes próprios, tanto que não os encontro na memória. Atendiam por “gêmea”, a denominação as rotulava de metade de alguém. Os irmãos idênticos são objeto de um anedotário específico, muito mais imaginário que real. Há histórias de travessuras clássicas, trocando-se à vontade nas provas, nos encontros amorosos, criando truques para driblar a vigilância dos pais ou das escolas.
Eles de fato se entendem e é tocante a forma como se mimam. Acostumados a dividir colos, seios, aniversários e olhares, gêmeos complementam com mútua atenção os eventuais descuidos que possam ter sentido. Afinal, a cria humana costuma ser única, não chegamos ao mundo em ninhada. Porém, quem é pai ou irmão deles, testemunha o enorme esforço que eles fazem para construir uma identidade, quando tudo converge para a indiferenciação.
A imparidade, tantas vezes interpretada como falha no amor, vem bem. Eclipsados pelo egoísmo, ignoramos isso e passamos a vida buscando uma “alma gêmea”, alguém que nos ame como só nós mesmos seriamos capazes de fazê-lo. Santa ignorância: o “duplo”, na literatura não é uma figura romântica, é uma das representações do terror. Ver-se espelhado, mas numa imagem que se movimenta autônoma, alheia à nossa vontade, é assustador, irritante. Longe de ser belo, é sinistro e produz agressividade, tentativa de controle. Na ficção, quem encarou seu duplo não conseguiu controlar o impulso de supressão daquela cópia imperfeita. Não há narrativa literária em que ambos terminem vivos.
Sentimo-nos incompletos, mas não será o amor que nos curará dessa insuficiência: o outro nunca é a parte que nos falta, nem tampouco somos a dele. Não adianta parecer-se, suprimir as diferenças e a vida pessoal, fazer tudo juntos. Já nascemos chorões, reclamando uma ausência de aconchego que nunca deixaremos de sentir. Pobres gêmeos, deve ser muito duro ter que arcar com esse olhar curioso, herdeiro do luto por essa metade inexistente
Ponto de vista
Olhar é uma arte.
No filme de Cortina de fumaça (1995), escrito e co-dirigido por Paul Auster, há um personagem, representado por Harvey Keitel, que é o dono de uma pequena tabacaria de bairro. Ele tem por hábito fotografar diariamente sua própria esquina, sempre na mesma hora e desde a mesma perspectiva, sem jamais falhar, ao longo de mais de 10 anos. Guarda essas imagens em álbuns, que registram as variações da constância.
Os lugares são como um rio, que nunca seria o mesmo pois as águas que contemplamos já estão de passagem. A paisagem também flui. Nas fotos desses álbuns revelam-se os detalhes sutis, somente perceptíveis aos conhecedores do cenário. Na contramão do olhar habituado, que no mesmo enxerga somente isso, neste caso a curiosidade se preserva.
Quando viajamos, contemplamos muito mais enigmas do que o cérebro tem condições de catalogar. Tampouco adianta fotografar, tive uma paciente que ao voltar de uma viagem, dessas excursões estilo sobe e desce de ônibus, trouxe para a sessão seu álbum de fotos (na época usava-se isso); indaguei sobre uma daquelas imagens e ela ignorava o que era. A explicação soava engraçada: “fotografei para olhar depois”. Quantas vezes fotografamos tentando reter algo do que nos escapa naquele excesso? Vã ilusão. O olhar do viajante é como o das crianças que em geral não decodifica a situação e não raro entende tudo errado.
História oposta é a da minha avó com sua janela que se abria para uma escola secundária. Já muito idosa, teve seus movimentos restritos, o que era bem difícil para uma senhora rueira. Pelo menos ela nunca perdia o espetáculo da hora da saída do colégio, pois já conhecia os jovens, os agrupamentos, os namoros. Para vários deles já tinha uma história em sua cabeça e inclusive algum apelido. Quando a visitava ela me chamava para partilhar seu hábito, me apresentava suas versões para aquelas vidas desconhecidas que faziam sua literatura visual.
A vantagem é que não há lugar imune à diversão dos olhos. Que o digam os antigos, os quais raramente se distanciavam do lugar onde haviam nascido. Conheciam seu território com uma intimidade que hoje ignoramos, o que é uma perda para nós. Todos gostam de exibir-se contando viagens incríveis, de preferencia a territórios exóticos, gabando-se de ter ido onde os interlocutores não foram. Dependendo da prosa do viajante, uma simples passagem pela mais parte mais descarnada e periférica de uma cidade, se bem contada, pode render uma história bem mais interessante do que uma excursão à selva africana. Esta última pode ser até, acredite, soporífera.
Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo, transcende a paisagem propriamente dita. Sempre teremos um ponto de vista, como o dono da tabacaria de Auster, desde onde o que poderia parecer igual tem chance de nos surpreender. A vida é uma história, nosso cérebro é um cineasta, os olhos a câmera, mas o pensamento tem que ser um diretor sensível. Da minha janela vê-se a cúpula de uma igreja visitada por pombas e gaviões.
Em defesa das trevas
A escuridão esconde segredos e belezas.
Nas noites da infância, costumava percorrer o corredor que conduzia ao banheiro na expectativa de encontrar um fantasma específico: o do meu pai, que morreu antes que pudesse conhecê-lo. Não havia noite em que eu não levantasse aterrorizada pela possibilidade desse encontro, mas na esperança de vê-lo ao menos uma vez. É na escuridão que moram nossos fantasmas imprescindíveis, mas também nela se escondem malfeitores reais e imaginários e, principalmente, os monstros das crianças.
Por vezes os pequenos têm terrores noturnos, não conciliam o sono paralisados pela sensação de veracidade das próprias fantasias ou pesadelos. Em função disso, muitos pais evitam contar histórias que possam alimentar esses temores. Tentando protegê-las, na verdade as estão privando de dar uma forma ao que ameaça. O desconhecido, aquilo que não tem uma narrativa que o contextualize ou carece de contornos definidos, em vez de medo produz angústia, que é o pior dos sofrimentos. Em todas as idades encontramos o hábito de dormir com alguma luz ou a televisão ligada. Só que a meia luz produz sombras muito mais assustadoras que o breu. Quem, numa noite de insônia ou ao adormecer, não enxergou a silhueta de um vilão em um cabideiro com roupas?
A escuridão é a morada do medo, mas também do encanto. Lembro de uma velha senhora que reclamava da luz elétrica, dizendo que a achava muito feia. Parece ranço de pessoa idosa, mas não é. Eclipsados pela praticidade das noites que parecem dias, esquecemos do valor das trevas. Excetuando alguns lugares e ocasiões em que a iluminação é uma arte, a luz preenche tudo, coloniza o espaço. São noites brancas, em que se suprimem os focos, as sombras e se apagam as estrelas.
Ao conduzir-nos pela casa utilizando uma luz manual, pode ser uma vela, lanterna, ou mesmo a luz emitida pelo telefone, tornamo-nos iluminadores. Somos como esses artistas que fazem a graça de uma peça ou de um filme através do uso da luz. Eles editam, dirigem e emolduram nosso olhar, vale lembrar que a luz só ressalta se tiver o contraponto da escuridão. Quando focamos à frente, o negrume fecha-se às costas, ameaçador. Então precisamos usar outros sentidos: o tato que percorre as paredes e adivinha o contorno dos objetos, a audição que adivinha presenças e mede distâncias. Na falta da luz desenvolvemos os dons de orientação dos cegos e dos morcegos.
Até hoje, com a desculpa do banheiro, caminho pela casa à noite. As trevas ainda me gelam a espinha, mas não consigo abrir mão de buscá-las. Quando o medo me supera lanço mão do interruptor, que com sua luz chapada, imensa, dissipa todos os temores e também com eles o mistério, a beleza.
O moicano
Pelo menos desde o século XIX a sociedade formata o mesmo adolescente que marginaliza.
“Seus cabelos estavam cortados quase até o couro cabeludo, com exceção de uma pequena tira no cocuruto da cabeça, puxada para baixo sobre a testa para formar uma franja”. Assim , o jornal britânico Daily Graphic descrevia um jovem infrator que estava sendo julgado. A personagem era esmiuçada em detalhes quase literários, em matéria que, além do corte de cabelo moicano, chamava a atenção para a vestimenta e postura do jovem meliante. Em suas atraentes narrativas sobre gangues juvenis, a imprensa ajudou a construir o estilo dos jovens delinquentes típicos de uma época turbulenta. Detalhe: estamos falando de 1898, século XIX.
Os Hooligans, como passaram a ser nomeados nos jornais, rapidamente assumiram os estereótipos e inclusive as denominações que lhes eram atribuídas, numa clara simbiose entre criadores e criaturas. A descrição do fenômeno é de Jon Savage, autor do livro A criação da juventude, leitura quase obrigatória nestes tempos de discussão sobre a redução da maioridade penal.
Os adolescentes de cada época têm o dom involuntário de revelar as fraturas do tecido social. Eles não são revolucionários natos, apenas são observadores, recém-chegados ao amor, ao sexo, à circulação no mundo externo. Para construir sua identidade aprenderão a buscar sua cotação em nosso sistema de valores. Curiosos a respeito dos adultos desde a infância, não levam em conta o que dizemos: é o que fazemos e pensamos que, mesmo sem querer, descobrem. A tendência é identificarem-se com os desejos mais secretos dos adultos, dos quais há pistas por todos os lados. Por exemplo: não temos o trabalho e a aprendizagem em grande conta, admiramos o sucesso dos que conseguem poder, prestígio e dinheiro sem esforço e à revelia de seus mestres, com muito prazer e tempo livre.
Assim como fez a imprensa no século XIX, nossa sociedade foi criando seus personagens marginais, alimentando sua identidade. A cada época construímos, mesmo sem perceber, um ideal de adolescência. Na nossa, o segredo é que se viva para consumir e gozar a vida, mais que seus antepassados e a qualquer custo. Isso serve para os que nascem em berço de ouro, mas também é a mesma fórmula que adotam os que, marginalizados, precisam chegar aos mesmos pódios pelos atalhos do exército do tráfico.
Portanto, quando queremos trancafiar os jovens, principalmente os mais pobres, responsabilizando-os por nossas cidades em guerra civil, é dos nossos desejos que estamos nos envergonhando. Ao acusá-los de perversos e imorais, esquecemos que eles são nosso espelho. Fazemos deles a lata de lixo onde despejar a incivilidade dos anseios egoístas que regulam a sociedade que constituímos. Além de injusta, é uma manobra inútil: são apenas nossas criaturas e nós os criadores.
Pedaço de mim
Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.
Por que os amores fracassados, as dores de corno, os abandonos, são tão prolíficos na canção, na poesia, tanto quanto ou, talvez, tanto mais do que a paixão? Porque o fim do amor é traumático. Ex-amantes são pedaços perdidos de nós, metades afastadas de nós. Levam consigo um destino que recusou-se a continuar, partem carregando em seus braços aqueles que deixamos de ser, aqueles que sonhamos juntos em tornar-nos um.
Ao rever o passado tendemos a sentir-nos trapaceados pelos próprios sentimentos. Como foi que me iludi tanto, como foi que escolhi tão mal? Repentinamente aquele que se desejou e amou torna-se um estranho e suspeitamos que o amor não passe de propaganda enganosa, um feitiço que uma vez dissipado revela alguém que nada vale aos nosso olhos.
Não creio que nos equivoquemos tanto. Por vezes no fim da história não se vive feliz nem para sempre: a gente se perde, ou mesmo escolhe caminhos que tornam-se incompatíveis, mas por certo alguma estrada, boa ou ruim, se percorreu juntos. Aquele a quem amamos não é uma pessoa imutável, ele também é resultado do casal que formou. Contemplá-lo, agora afastado de nós, é também ver o resultado disso. Se após o fim encontrarmos duas pessoas idênticas ao que eram, nesse caso a suspeita do engano se confirma: não houve relação, apenas ilusão.
Mesmo complicados os amores foram escolhas e deixam marcas no destino que não podem nem devem ser apagadas. Há músicas, cheiros, fotografias, gestos íntimos, cenários, que são oriundos daquele laço. Tudo o que vivemos intensamente nos modifica, portanto, somos também filhos dos amores que tivemos e deles ficamos órfãos quando acabam.
Um membro amputado deixa no corpo uma sensação de existência, há quem sinta dor num braço ou num pé que já não mais possui. Esses são chamados de “membros fantasma”. Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.
Pior do que suportar a perda daquilo que se sonhou e viveu juntos é encontrar no lugar do amor que se teve um buraco negro que nos traga. Já conheci esse desespero, já vi um olhar vazio aparecer num rosto em que antes me reconhecia, por isso sei que todo divórcio é de si mesmo. A sensação que o encontro com um ex-amor recente causa é de cair num abismo, é como se o corpo se dissolvesse.
Por um tempo, seremos pessoas fantasma, até que um dia, passando por um espelho, descobrimos que nossa imagem voltou a estar lá. Vampiros não se enxergam porque perderam todo o sangue próprio, precisam do alheio, é assim que nos sentimos quando separados: esvaziados. Aos poucos, felizmente a vida começa a pulsar novamente e podemos voltar a refletir uma imagem. Só que agora marcada pelos traços daquele olhar que uma vez escolhemos para nos refletir. Acabou, mas existiu.
Insanidades do destino
É possível criar uma Psicopatologia à la “Mynority Report”?
O recente episódio do copiloto que precipitou (propositalmente, até onde se sabe) o avião nos Alpes pode trazer um perigoso efeito colateral. Temo uma onda de preconceito contra qualquer abalo psíquico constatado. Não somente diagnósticos podem gerar perseguições, como creio que muitos possam evitar procurar ajuda temendo ser estigmatizados.
Quando a loucura ronda nossa vida, a sanidade revela seus limites. Quem teve um parente que se perdeu em delírios tem pânico de carregar dentro de si essa predisposição. Quem vê um amigo começar a ter pensamentos bizarros sente de perto a fragilidade da razão. Pode, afinal, explodir tal descontrole com qualquer um? A mente é como um campo minado? Não creio, sempre há um lento processo, em geral bastante visível, e é raro que seja completamente silencioso. Os agudos sofrimentos da alma devem ser acompanhados e os perigos podem ser reduzidos, mas nem por isso podemos prever tudo, como sugerido no filme Minority Report (Steven Spielberg, 2002).
Almejamos o conforto da lógica, negando que a loucura e a morte nem sempre são “justas” e previsíveis. É com certo alívio mórbido que descobrimos uma imperícia da vítima entre as causas de um acontecimento trágico ou triste. Se teve câncer, é porque fumava; se sofreu um ataque cardíaco, é porque era obeso; o acidente deveu-se ao álcool, a violência ocorreu porque a vítima se expôs. Nesses casos, parece que basta ser cauteloso e seguir as recomendações de saúde para estar a salvo. Quem dera.
Não conheço o caso do moço e sei que tudo o que lhe diz respeito será arrolado no cortejo das causas que tornariam previsível seu ato. O mesmo acontece em casos de suicídio e de atiradores de escola. Presume-se que alguém falhou na decifração das pistas que o sujeito foi deixando escapar. Porém, para cada suicida ou assassino em série, há milhares de pessoas que perdem a esperança de viver ou que nutrem graves mágoas e ressentimentos contra alguém ou contra todos, mas nada fazem. A maior parte dessas pessoas apenas rumina coisas que lhes intoxicam a alma nos momentos de angústia, tristeza e melancolia. Outras, poucas, vão enlouquecer de fato, ficar agressivas com os familiares, ouvir vozes. Raras, em número ainda menor, provocam tragédias. Para diferenciar um caso do outro, o melhor é proporcionar a todos os que sofrem oportunidades de receber acolhida e escuta.
Infelizmente, não temos uma previsão exata das consequências de determinados pensamentos e sentimentos. Dirigir com cuidado e viver saudavelmente contribuem para diminuir os riscos, mas não impedem as maldades do destino. Não podemos isolar e maltratar qualquer um que não se sinta psiquicamente bem como se ele fosse atirar um avião no chão. Cuidado com nossas fantasias onipotentes, a morte sempre ri por último.
Cadê meu trono?
o que temos por dentro que nos torna tão suscetíveis à cobiça por privilégios?
Yanis Varoufakis, Ministro das Finanças da Grécia, é um cara charmoso e irreverente, usa jaquetas e camisas esportivas – sempre sem gravata – em todo tipo de evento oficial e se desloca em sua moto. Ele contou um episódio embaraçoso (mencionado na revista Piauí 102) que ilustra a tentação dos privilégios.
Anos atrás, ao viajar para dar uma palestra, usava a passagem de primeira classe fornecida pelos organizadores do evento e percebeu-se olhando para a turma da classe econômica com um sentimento de superioridade. A revista menciona que ele teria se horrorizado ao viver na própria carne o quanto era fácil ser cooptado pelo prazer de estar acima da plebe.
O que temos por dentro que é tão facilmente despertado assim que nos oferecem um assento bacana, como notou Varoufakis? Rapidamente, a poltrona de primeira classe se transforma em trono, como se finalmente tivessem reconhecido nosso direito de nascença a ocupá-lo. Se examinarmos o conteúdo das fantasias mais banais, essas que nos pegam quando estamos distraídos ou adormecendo, veremos que nelas somos sempre reconhecidos por merecida grandeza, a qual nunca julgamos nunca ter sido suficientemente celebrada. Detalhe: a comparação é fundamental, pois é preciso que haja aqueles que consideramos pobres, medíocres ou feios, para que o brilho da conquista seja ressaltado.
Não há quem seja imune a algum tipo de ressentimento, o reconhecimento recebido é sempre menor do que a expectativa. O tráfico de privilégios tem vilipendiado todo tipo de boas intenções políticas, parecemos marcados por essa sede de modo incurável. Talvez seja uma memória infantil do lugar especial que só usufruímos quando muito pequenos, no papel de coisa fofinha da casa. Logo criamos chulé e ninguém mais quer beijar nosso pé gordinho. Pelo jeito, a experiência deixa alguma nostalgia, omitindo o fato de que o preço pago pelo lugar especial costuma ser o papel de objeto, no qual tornamo-nos espelho do desejo dos outros. Muitas celebridades morrem tentando anestesiar-se dessa cilada que é a captura no imaginário alheio. Nosso sentimento de ter vida própria, portanto, se beneficia de uma certa frustração. Apesar disso, nos queixamos de falta de atenção, pois consideramos sempre injusta a distribuição do prestígio.
Vimos o presidente uruguaio Mujica sair do seu mandato no mesmo fusca velho em que entrou, assim como o então governador Olívio Dutra nunca deixou de ir de ônibus ao trabalho. Golpe publicitário desses senhores? Creio que não. Eles se mantiveram a salvo do delírio de grandeza que nos acomete assim que ganhamos um assento de primeira. Talvez soubessem que ficamos reféns daqueles que nos oferecem um lugar de exceção. Uma lição a seguir nestes tempos de debates éticos.
Vida descomplicada
por uma rotina sustentável, pelo menos no fim de semana…
Minha rua é cheia de gatos que costumam ser pouco amigáveis, apesar da generosidade dos vizinhos que os alimentam. Intocáveis, escondem-se e fuzilam com o olhar quando alguém passa. À exceção de um deles, chamado pelo seu dono simplesmente de Gato, que é enorme e afetivo. Seu humano não exatamente o possui: um belo dia abriu a porta e o Gato entrou, apoderando-se de mais esse domínio.
Sábado de sol, a caminho do armazém há um felino atravessado na calçada. Minha vizinha Vera, que me observa a alguns metros de distância, avisa: olha só a preguiça do Gato tomando sol! Nossa cumplicidade de rua garante que saibamos que Gato, neste caso, é nome próprio. Mais meia quadra, o dono da banca lamenta que ainda não chegou a revista encomendada, o farmacêutico me convida a apreciar a reforma em seu estabelecimento.
No “meu” mercadinho, o guardador de carros, um sujeito muito tatuado que parece ter tido dias melhores, entrou para comprar cigarros. Está discutindo com o dono do estabelecimento sobre os povos que mais fumam. Seriam os orientais segundo ele. O rapaz ruivo do balcão comenta que vendeu mais batata doce assada do que esperava num dia quente, pego as últimas. Pessoas sozinhas, quase todas idosas, comprando uma ou duas unidades de fruta, a fila do caixa anda devagar, nas sacolinhas sempre cabe muito papo. Na volta, mais encontros, mais conversa fiada, chego em casa como se tivesse tirado férias. Simples assim.
Quando me convidaram para escrever aqui, à guisa de provocação, tive vontade de chamar minha coluna de “Vida Complicada”. É de fato assim que a vejo: psicanalista de profissão, fico o dia todo lidando com as inquietudes, com a parte enigmática das vidas dos que me consultam. Mas, ao longo dos três anos em que habito a revista, a vizinhança dos meus colegas colunistas e jornalistas acabou cumprindo missão similar à do meu bairro. Uma e outra têm o dom de iluminar as pequenas coisas, emoldurar a tranquila felicidade que podemos percorrer com uma sacola de compras pendurada nos braços.
Nestas páginas nossa cabeça acaba revelando-se também sustentável. Não há fórmulas mágicas, ninguém ostenta prazeres e virtudes no grito, como é comum nas redes sociais. Aqui franqueza não significa exposição, a tristeza, os temores e vacilações são legitimados. Partilham-se tentativas artesanais de solução dos problemas, quando há alguma. É um tom que também busco na minha clínica, onde o alarmismo, a indignação, o derrotismo, o ressentimento e a arrogância só entram para serem desmascarados.
Pensando bem, esta vizinhança de revista está arejando meu modo de escrever. A Vida até pode ser vista de modo Simples, ensolarada como uma caminhada de sábado. É do seu olhar que o verão, as férias, o novo ano que está por chegar, tirarão sua luz.
(coluna da edição de dezembro de 2014 da revista Vida Simples)
Mães também se aposentam
A maternidade não era mesmo um cargo vitalício?
Ela foi mãe dedicada, para cuja casa os filhos adultos e netos acorriam em procissão. A presença deles era motivo de júbilo, suas notícias recebidas como cartas de amor. As reuniões de família eram preparadas com zelo de jantar romântico, o prato preferido de cada um sempre lembrado e as restrições alimentares respeitadas. As conversas à mesa, como no tempo do finado marido, requeriam delicadeza diplomática.
Filhos se melindram fácil, toda palavra corre o risco de esbarrar em inevitáveis ressentimentos e pendências. Cada um deles tem certeza de que a mãe simpatiza mais com o marido, esposa ou filhos do irmão ou da irmã supostamente preferido, que sempre julgam ser outro. Nas separações e nos momentos de falência acolhia-os de volta ao ninho, comiam e dormiam com ela, assistiam filmes em sua tevê sábado à noite. Depois sumiam, embarcados em nova paixão, projeto ou em um grupo de amigos inseparáveis.
Até que um dia teve que submeter-se a uma perigosa cirurgia cardíaca, estava avisada de que seu caso era grave. Antes de internar-se, revisou seus guardados, deitou ao lixo muitas “bobagens” que atesourava, editou as lembranças, organizou os documentos. Foi um mau bocado, mas sobreviveu e algo pareceu ter se quebrado. Na saída do hospital, tomou uma decisão atípica: esta segunda vida, mesmo que curtíssima, seria para uso pessoal. Fechou o apartamento, voltou para o interior, para a cidade natal. Foi viver junto com uma irmã mais moça, também viúva, partilhavam os cuidados de uma boa funcionária. Era uma aposta, uma aventura, mas nunca é tarde para isso. O genro médico ficou furioso, como afastar-se dos melhores hospitais a esta altura?
No cidade enturmou-se novamente, conhecia as histórias de que falavam, tudo lhe voltava aos borbotões. Ao invés de ficar desmemoriada, lembrava-se do passado mais remoto em detalhes. Agora, em suas visitas, os filhos tinham que disputar a atenção na sala da mãe e da tia com a animada roda de chimarrão dos vizinhos. Eles eram bem vindos, mas ela impacientava-se caso a distraíssem da sua nova rotina. Não levou consigo muitas lembranças, uns poucos porta-retratos lhe bastavam.
Ela não era gato, mas ganhara mais uma vida. Restava-lhe coisa pouca, mesmo restrita e cheia de dores chatas estava disposta a viver sua aposentadoria. Aposentara-se do casamento, da família, dos vínculos, encontrara uma forma tardia de liberdade. Os filhos incrédulos não entendiam o abandono. Gostamos de acreditar que ter filhos é um sacerdócio vitalício, tanto que quando isso não se confirma custamos a engolir a mágoa. Porém, mães e pais idosos por vezes se aposentam, respeitar-lhes essa opção envolve a dura verdade de que os filhos podem não ser a cereja do bolo.