Comportamento
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Carecas

O modo como os homens lidam como a decadência dos cabelos os revela.

Meu amigo caminhava na Borges, ladeava o Parque Marinha quando passa um ônibus de excursão de colégio. Entre a algazarra escuta algo particular: – e aí careca! Olha para os lados numa derradeira esperança, mas não resta dúvida, não há mais ninguém, o careca é ele. O ônibus da juventude passou e ele não estava dentro.

Ele já sabia. Acompanhava triste as partidas cotidianas, o travesseiro lhe fazia confidências, a limpeza do ralo era uma tortura. Porém nunca tinha ouvido a maldita palavra e isso faz toda a diferença. Seu antigo cabelo cacheado, que já não consistia, ganhara uma tesourada verbal.

Este foi o último dia de seu lamento, rapou o cabelo. Ao não esconder nada, recuperou a felicidade e a autoestima. Insiste que a única atitude digna de um homem é assumir, pouco importa a idade em que venha o infortúnio. Segundo ele não se trata de colocar de lado a vaidade e a elegância, mas cabelo é projeção de uma atitude masculina por excelência.

A experiência lhe fez adotar uma filosofia: julga os homens a partir de como tratam a decadência de seus cabelos. Diz que ali moram informações valiosas sobre o caráter masculino. Afirma que já não se engana com eles, e acredita que se as mulheres prestassem atenção nesse detalhe evitariam muitos dissabores.

Para as mulheres, que talvez não nos entendam, falamos da mesma desordem cósmica que afligem os seios e seus problemas com a gravidade, ou a gramática psicótica que cerca o drama da celulite.

Todo homem um dia se depara com esse pequeno caos. As entradas, que são o preâmbulo do suplício, só perdem em desespero para o aparecimento da tonsura, o pesadelo cristalizado. É a fase em que os homens entram na dança dos malabarismos capilares, penteados esdrúxulos que passam de cá para lá, de baixo para cima, na tentativa vã de esconder o impossível. Recorremos a tudo, desde o corte melancólico que é o careca com rabinho, até o  desespero alucinado: a peruca. Todas variações de uma enganação patética que não engana ninguém.

A verdade é que o complexo de Sansão nos pega a todos. Nossos cabelos são identificados à potência da juventude, sua queda é prenúncio do outono da vida. Despedir-se deles é duríssimo. Tenho que concordar com meu amigo: a maneira como envelhecemos diz muito de nós.

18/04/14 |
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Estatísticas abusadas

Um lapso numérico que diz muito de nós.

Esses tempos vi uma camiseta com os dizeres: 95% de todas as estatísticas são inventadas, 70% das pessoas sabem disso. Essa piada é teste para nerd, se você riu é um deles. Se não acha graça, bom, é piada nerd. Lembrei desse paradoxo jocoso, que faz uma afirmação onde a negação é implícita, a propósito dos dois vexames da semana passada.

Primeiro foi o IPEA que inverteu um resultado de pesquisa causando uma comoção. Ele nos fez acreditar que dois terços dos brasileiros concordam que as mulheres estupradas fazem por merecer, ou por estarem usando pouca roupa, ou de alguma forma sendo provocativas. Vexame dois: ninguém se tocou que os números não batem com a realidade. Ao contrário, houve quem disse sentir isso na pele, e que os dados só confirmam sua intuição prévia.

E como fica agora que é o oposto? Corrigidas as tabelas, sabemos que é um quarto dos brasileiros que pensa semelhante disparate. Embora o número ainda seja problemático, é desproporcional com o anterior quase na razão de três para um. Ou seja, segue sendo um resultado ruim, mas não tão absurdamente ruim como antes. Não é um número que nos faz parecer talibãs, é a realidade dura da América Latina machista. Como fica então a intuição? Ou só nos prova que a intuição pode ser o pântano dos nossos preconceitos, caminho para enganos?

Maldosamente, é o momento de lembrar das piadas sobre estatística, aquela ciência que diz que se eu comi um frango e meu vizinho nada, estatisticamente cada um de nós comeu a metade. Ou como se diz: ela é que nem biquíni, mostra tudo menos o essencial. Mas a questão não é a estatística, ela é só uma ferramenta. O que fica claro é que temos um fetiche com números. Eles, por si sós, parecem revestir os fatos de ciência anunciado uma verdade. As ciências sociais carecem do charme da certeza que a ciência dura diz ter. Quando alguém chega analisando a fluidez da nossa subjetividade com números e tabelas tendemos a uma aceitação sem a salutar desconfiança.

Mas um erro pode nos mostrar uma verdade, nesse caso duas. A primeira é que a sensação de medo que o estupro move, e a bestialidade que seu ato encerra, nos remete a um pensamento superlativo. Talvez o aceite do exagero seja proporcional ao absurdo, tanto do ato como do pensamento que culpa a vítima.

Segundo, parece ser que a camada pensante não conhece bem a sociedade brasileira. Basta chegarem dados que falem mal de nós, que não só acreditamos, como emendamos outros impropérios sobre o nosso atraso e falência moral. Quando julgamos nosso país somos dotados de um pessimismo trágico, tenazmente arraigado. Por alguma razão, nos apraz ver-nos piores do que somos. Já que estamos falando de abusos, não seria também um abuso pensar tão mal de nós mesmos?

09/04/14 |
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Ações do Forte Apache

O tesouro da infância só vale se passado adiante.

Eu entendo o Eike Batista, sei do seu sofrimento. Como ele, já fui muito rico e perdi propriedades. Era negócio de família, eu e meu irmão. Possuíamos um Forte Apache, uma tribo de uma nação indígena (Sioux), uma granja e uma pequena vila. Vocês não imaginam o que dava de trabalho para gerenciar essa gente toda. Tínhamos ainda um conflito étnico, a maioria dos índios era comprada e colorida, mas havia os que vinham de brinde nas embalagens de Toddy que eram monocromáticos. Houve problemas de aceitação, foi um desafio assimilá-los. Acrescente a isso o desequilíbrio nas proporções sexuais, praticamente uma mulher para cem homens. Gastávamos muita energia para deixar essa engrenagem social funcionando.

Éramos felizes, afortunados, mas não ricos. Um dia a sorte grande chegou. Um vizinho arranjou uma namorada e resolveu queimar as pontes com sua infância. Para nosso benefício fomos brindados com mais um Forte Apache e um novo contingente indígena (Navajo). Graças a nossa experiência administrativa conseguimos assentar os novos imigrantes sem aumentar o território. Nossos pais, insensíveis ao problema, não disponibilizaram um quarto extra.

Dois fortes e duas nações indígenas multiplicaram os arranjos bélicos. Foram muitos massacres, mas ao contrário da história, como em nosso quarto tentávamos equilibrar o mundo, os indígenas levavam a melhor e havia um acordo de poupar os cavalos. A reconstrução era trabalhosa, mas uma nova configuração política sempre rebrotava dos escombros.

O tempo passa e novas ocupações nos tiraram do foco dessa empreitada. Para o bem desse povo resolvemos passar o domínio a um primo. Inacreditavelmente, sozinho ele deu conta. Anos depois o conjunto retorna. Minha tia diligentemente guardou tudo e devolveu quando minhas filhas eram pequenas. Descobri, junto com as meninas, que o plástico tem vida curta. Soldados calejados que passaram por tudo agora perdiam a perna apenas montando a cavalo. Sem tiros de canhões os corpos se despedaçavam, nada parava em pé. Com tristeza despachamos para reciclagem, mas os soldados e os índios entenderam que a sua missão fora cumprida.

Conto a história com um propósito: façam uma limpeza em suas casas, desentoquem os velhos brinquedos. A missão de um brinquedo é ser destruído, ele só será feliz se for usado à exaustão, se uma criança lhe tirar o suco. Infeliz do brinquedo guardado intocados na caixa original. Lembre-se: pode estar ao seu alcance fazer uma criança ser milionária.

06/04/14 |
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o dia em que adotei minha avó

Quando meus amigos vinham com a choradeira por ter pais separados, eu tinha uma resposta. Eles punham na mesa seus três reis e eu sacava quatro ases dizendo: meus avós, de ambos os lados, são separados. Provocava um efeito de solidariedade garantida, comunicava que sabia bem o que era uma família partida, mal entendidos e […]

Quando meus amigos vinham com a choradeira por ter pais separados, eu tinha uma resposta. Eles punham na mesa seus três reis e eu sacava quatro ases dizendo: meus avós, de ambos os lados, são separados. Provocava um efeito de solidariedade garantida, comunicava que sabia bem o que era uma família partida, mal entendidos e ressentimentos. Hoje as separações são corriqueiras e, embora doídas, são assimiláveis. Na minha infância elas eram escassas, mal vistas e deixavam um rastro de destruição. Na geração dos meus avós eram uma raridade aberrante. Não foi fácil para meus pais.

Mas minha ligação com os avós pairava acima de tudo. Passava as férias em suas casas e cheguei a morar com eles. Essa proximidade me fez gostar da velhice. Não me importava com sua lentidão, com as repetições e manias. Os velhos têm a sabedoria de quem já apanhou bastante da vida e eu percebia isso. Cresci olhando para trás, talvez daí venha meu gosto por tempos que desapareceram.

Viver com os avós nos dá outra dimensão do mundo, saímos do eterno presente e apreciamos o peso do passado. Além disso, eles têm as provas de que nossos pais já foram pequenos, frágeis, logo, crescer é possível. Há nisso também uma cumplicidade em reduzir o papel e a força dos nossos pais. Se crescer é sair de casa, a casa dos avós é um bom estágio.

Mas até numa família dividida há um lado bom: as pessoas normais têm duas avós, eu tinha três. Um grande capital, mas trazia alguns problemas. Por exemplo, como que você chama a esposa do avô, a avó que não é sua avó, sem abalar a relação com a outra avó, a que se considerava legítima? Precavido contra o risco de desempenhar mal meu cargo de neto, eu a chamava pelo nome: dona Avlisa.

A casa dos meus avós era um paraíso para almas telúricas como a minha. Tinha jardim, horta e pomar. Aprendi com meus avós a paciência necessária para plantar. Numa dessas lidas, segurava um ramo de maracujá para guiar, e disse: – vó, me passa o barbante. Simplesmente saiu. Fiquei desconcertado, ficamos ambos. Ela me olhou de volta com um sorriso que nunca esqueci. Não foi preciso dizer mais nada. Ganhei uma avó e ela ganhou um neto.

Sem dramas posteriores, cada uma das três foi minha avó a seu modo. Durante anos segui assim milionário, com mais avós, primos e tios que os outros amigos. Mas o tempo é cruel, numa década conheci a miséria. Reequilibrei-me financeiramente só com a chegada das minhas filhas. Nossos velhos são guardiões da história, quando eles se vão suas memórias mudam de mão. Quando cuido do meu jardim, nunca sei se cultivo as plantas, ou elas sustentam as lembranças de quem me ensinou sua magia.

08/11/13 |
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Os sem-gravata

Depois da revolução de costumes, um mundo cerimonioso

Sou avesso a rituais. Nada me aborrece mais do que casamentos, formaturas, missa para qualquer coisa, aniversários pomposos, tudo que pede protocolo e roupa apropriada. Vou, mas como gato no cabresto. Admito que sou um chato, que dificilmente entro na frequência das emoções alheias. Pelo menos não estou sozinho, meu desconforto traz algo da minha geração, ou pelo menos, parte dela. Deixem dizer algo em nossa defesa: não se trata de misantropia gratuita.

Quem nasceu nos anos cinquenta e sessenta viveu, fez, ou sofreu a revolução dos costumes. Depois dessa revolução o mundo nunca mais foi o mesmo. Graças a ela a vida ficou menos hipócrita, mais transparente, mais livre da opinião alheia. Mas num quesito esse movimento tomou um rumo que não imaginávamos: os rituais. Pensávamos que eles iriam declinar, que o importante era viver e não representar.

Nos anos setenta e oitenta eles andaram em baixa. Eu recusei a crisma, minha formatura foi em gabinete e, para os padrões de hoje, meu casamento foi espartano. Mas voltaram redobrados, hoje temos formatura togada de primeiro e segundo grau… quiçá de jardim de infância. Qualquer aniversário de criança é principesco, os casamentos são todos apoteóticos. A simplicidade foi esquecida.

Para usar uma gíria antiga, o mundo voltou a ser “careta”? Não creio, aliás, foi só nesse quesito que parece que engatamos a ré. Questões sobre igualdade de gênero, ou melhor, a dissolução das certezas sobre os gêneros seguem avançando. Para meu gosto o mundo não é lá grande coisa, mas está mais arejado. O que aconteceu então?

A minha geração não levou em conta os avisos de Guy Debord quando escreveu A Sociedade do Espetáculo. Ele abordava a espetacularização da política, e a mídia tratando tudo como um show. Ora, o desdobramento disso para a vida privada é uma decorrência lógica desse processo. Para o autor, a vida esvaziou-se de sentido e inflacionou-se de imagens.

Creio que os rituais não esmoreceram, e até ganharam mais prestígio, por fornecer essas imagens que atestam que a vida acontece. Inclusive a palavra ritual nem deveria ser usada, pois já não marcam uma passagem, não fazem uma descontinuidade na vida, um antes e um depois diferentes. Talvez sejam feitos em uma dose mais forte até para fazer valer algo que não consiste.

Minha geração se sente traída ao ver essas cerimônias desmedidas e por isso fica tão mal humorada quando nos exigem a gravata. Eu já estou mais conformado, talvez esses eventos não estejam esvaziados de sentido e sim sejam uma nova forma de experiência, nem melhor nem pior, outra. O mundo segue, não vou deixar de viver as emoções de meus amigos e familiares. Tento deixar de ser casmurro, já comprei as gravatas, mas ainda não sei dar nó.

31/10/13 |
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Não fale com ela

a insônia decifrada por uma vítima experiente

Após muitas pesquisas científicas pode se afirmar: os vampiros estão extintos. O que sobrou deles, depois de milênios de convivência, são apenas fiapos ralos de DNA contaminado, desigualmente distribuídos, entre a população normal. A sede de sangue praticamente não se manifesta, mas o chamado da noite se revela em muitos. Esses semi amaldiçoados, entre os quais me incluo, são os insones. Por sorte já não causamos dano senão a nós mesmos.

Queres mesmo ajudar um insone? Vá dormir e deixe-nos com nossa solidão. Se alguém precisa de uma mão amiga para segurar, não se trata de insônia, nesse caso já foi ultrapassada a fronteira do território do pânico. A insônia é um pânico júnior, modalidade menor, peso pena das ansiedades, mas nem por isso menos daninha. O insone experiente sabe que a boa vontade alheia de nada adianta, e a boa alma será mais um zumbi no dia seguinte. Ciente da impotência, resigna-se e dispensa acompanhantes.

O problema maior são as primeiras manifestações, quando ainda não dominamos os mecanismos da herança funesta, e acreditamos que a insônia nos sussura segredos benéficos. O neófito imagina viver uma hiperlucidez, finalmente teria entendido seus problemas. Que nada, a insônia é um estado terceiro, nem acordado nem desperto, mas guarda um pouco dos dois: a lógica aguçada da vigília, e o exagero alucinado dos sonhos temperado com angústia dos pesadelos. Toda experiência com ela nos parece maior, desesperada, grandiloqüente. Mas tão logo a madrugada desponta, os fantasmas se dissipam.

Claro que é necessário pensar sobre o que nos ocorre quando estamos insones, mas nunca enquanto acontece. Devemos trata-la como o mofo, examiná-la sob a luz bactericida do sol.

Por sua natureza híbrida é impossível fazer algo útil, para tanto seria preciso estar desperto. Na essência, a insônia é desperdício: impossível fazer qualquer coisa, impossível descansar. Ela é totalitarista, quer que tenhamos olhos só para ela, não nos partilha. Para melhor nos possuir, sádica que é, ela quer que pensemos nela quando não temos cérebro para tanto, o que nos arrasta para um descaminho de tormentos.

A forma de combate-la é o descrédito. É saber que nada do que pensamos enquanto ela dança conosco tem o tamanho que vemos. Não estamos diante de verdades e revelações. Se não caímos na armadilha de filosofar sobre a vida nesse estado alterado e enfraquecido de consciência seus poderes diminuem. Em resumo: não faça DR com a insônia.

Um última dica, embora saiba que é indelicado negar qualquer coisa a uma dama: ela pedirá álcool, cigarros e café, e vai insistir. Seja firme, negue categoricamente. Se você resistir, ela irá embora antes para saciar seu vício em outra freguesia.

24/10/13 |
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Oráculo de Delfos

A verdade é que as perguntas são mais importantes e reveladoras do que as respostas.

No mundo grego antigo, histórico e mitológico, os impasses se resolviam consultando um oráculo. O mais famoso foi o de Delfos. De lá, por uma boca humana, mas inspirada por Apolo, saíam os vaticínios que resolviam as questões.

Calhou poder visitar Delfos. Sério, escrevo desde a Grécia. Tenho uma antiga paixão pela cultura helênica, devo ter sido batizado com água benta fora da validade, minha reverência ao sagrado sempre foi pagã. Quis o destino (já que estamos no tema), que saísse um safari cultural para cá com um bônus extra. Vim com o amigo, exímio caçador de mitos e domador de histórias, Cláudio Moreno.

Infelizmente os deuses abandonaram Delfos, mas a marcas da sua passagem foram o suficientes para me deixar comovido. Ainda existe engastada nas pedras das ruínas resto de uma força mágica perturbadora. Os gregos acreditavam que lá era o umbigo do mundo, a visita me fez concordar.

Quando ficou certo que a viagem sairia, comecei a brincar com os amigos: inquiria o que eles queriam que eu perguntasse ao oráculo em seu nome. Alguns, que entravam no jogo, revelavam o que de mais sério lhes afligia: devo ficar com fulano? Sigo nesse curso, ou vou fazer o que gosto? Ainda dá tempo de largar esse emprego chato e fazer outra coisa legal? E assim por diante.

Nada do que eu não esteja acostumado. A psicanálise tem muito de oráculo. Afinal, é assim que muitos pacientes nos chegam, numa encruzilhada, precisando de orientação. Claro, eu e meus colegas psi não somos guias. De fato não sabemos o que é melhor para ninguém, mas ajudamos a suportar a dúvida, propiciamos o tempo e o diálogo necessários para pensar juntos saídas para o impasse.

O oráculo faz pose de quem indica o caminho, mas, se formos examinar as suas mensagens, vemos que sempre foram enigmas, charadas, frases oblíquas que podem ser lidas de qualquer forma. Cabe a quem que o consultou interpretar o que lhe é dito. Voltamos ao ponto inaugural: a verdade não está fora do sujeito. Há uma solidão incontornável quando lidamos com nossos desejos e indagaçōes. Ninguém pode nos poupar de escolher uma direção e ser responsável por esse passo.

Mas não é essa a essência do humano: atravessar a vida em busca de repostas? Se não vendemos a alma para algum discurso que promete a verdade, passamos a existência pastoreando incertezas. No que ajuda então um oráculo?

A questão, difícil de entender num primeiro momento, é que quase sempre a pergunta é mais importante que a resposta. São as dúvidas que nos movem, mais que as certezas. Essas raramente chegam e nem por isso deixamos de viver, aliás, exatamente por isso seguimos nosso curso. A certeza é terminal, fecha questões. Só a humildade da ignorância é vital. Avança no território da existência quem sabe circunscrever melhor o seu impasse, quem intui o que quer saber, quem pondera das vantagens e desvantagens de cada caminho. A bússola da vida são as boas perguntas. Os oráculos e seus sucedâneos, incluindo os psicanalistas, têm a sabedoria de apenas relançar a questão para que a aprimoremos.

Maníaco por calçada

A calçada é o limite entre o espaço privado e o público, encontro eloquente dessa difícil relação.

Poucas coisas me desacomodam tanto como as pessoas que caminham pelo meio da rua, evitando as calçadas, quando estas lhes oferecem sem custo um andar mais seguro. Não se sentem à vontade nelas, provavelmente pensam que invadem algo. Não pegam o conceito do que seja uma calçada. Concebem apenas o espaço privado e o público, dentro e fora, sem margens intermediárias.

Esses caminhantes fora de lugar me deixam inquieto porque as calçadas são minha parte preferida nas cidades. Andar por elas sem compromisso, traçando meu próprio labirinto, é meu ideal de passatempo. Ir a esmo por Porto Alegre é como perder-se dentro de casa, surpreender-se com a extensão de um velho corredor, descobrir um ângulo inusitado no ambiente ora saturado de certezas. É ocasião para enxergar o que os olhos cansados já deixaram de ver. Vagueio tanto pelo gosto como por tentar decifrar um novo lugar. Até aqui muitos me acompanham, não há nada de especial nesse hábito prosaico. A questão é que nessas andanças faço das calçadas meu termômetro particular para medir a civilidade de cada local.

Cada um tem sua forma peculiar, por vezes torta e reducionista como essa minha, de julgar o mundo. A conservação das calçadas e o respeito ao pedestre me diz muito. Sou um maníaco por calçada assumido. Atribuo quixotescamente notas de moral cívica imaginárias a quem não pediu. Para minha sorte, e integridade física, guardo no íntimo esse espírito de fiscal voluntário da prefeitura.

É nesse espaço exíguo que o público e o privado se encontram, é a beira do mar dessas contingências. Um buraco na rua é problema da prefeitura, um buraco na calçada é problema nosso. A calçada é, e não é, nossa. Somos os responsáveis, porém não os donos. Calçada mal conservada, suja, obstruída, privatizada, ou a ausência dela, dá a nota da cidadania de cada local. Porque nesse caso não se trata de invocar o estado faltante, nossa desculpa mais corriqueira, quem falha aqui é o cidadão.

Como sou matutino, me comovo vendo o esforço de muitos para lavar ou varrer o seu pedaço de mundo compartilhado. Arrumam com carinho a passarela de todos. Há uma generosidade nesse gesto que lubrifica a possibilidade de vivermos juntos. A calçada é o que nos protege do nervosismo da rua, quanto melhor, quanto maior, mais é ferrolho, mais vamos tranqüilos. A frente das casas pode emprestar aos passantes um gesto de aconchego. É uma espécie de sala de estar pública, onde os desconhecidos, os passantes fortuitos, receberiam a hospitalidade dos locais.

Um dos dramas contemporâneos é a perda gradativa dos espaços públicos de convivência. Creio que o caminhante que evita a calçada encarna meu pesadelo de perder esse espaço que me é tão caro. Ele seria o grau zero da conquista civilizatória magna (na minha bizarra filosofia) que é essa estreita faixa de sociabilidade pedestre. O privado e o publico têm nele um encontro seco, um choque abrupto, sem embreagem. É meu medo de ficarmos reduzidos aos espaços pragmáticos, de perder a gratuidade dos encontros casuais, o prazer de se sentir seguro e à vontade longe de casa.

17/10/13 |
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A invasão zumbi

Zumbi, você ainda vai ser um… na melhor das hipóteses.

Uma dinastia pode estar chegando ao fim. Depois de reinar absoluta durante todo o século XX a primazia dos vampiros no uso da ficção de terror encontrou um adversário à altura: os zumbis chegaram. O começo foi tímido, na década de 30, quando nasceram no Haiti, e seguiram obscuros até os filmes de Romero nos anos 60, mas depois disso ganharam um impulso irresistível e crescem sem parar. Hoje o zumbi é o personagem mais usado para filmes, séries de terror e para imaginar cenários pós apocalípticos. Mas ele é muito mais do que isso, sua marca ganhou nossa imaginação: o zumbi está em games, quadrinhos, existem as “marchas zumbis” em inúmeras cidades, recentemente ganhou uma excelente revista digital: ZumbiGo! Acreditem, até comédia romântica com eles já temos (Meu namorado é um zumbi), ou seja, nenhum cenário de Halloween estará completo sem sua presença. De qualquer forma, a comparação com o vampiro não é sem interesse, afinal, sai um morto-vivo para entrar outro.

Os fanáticos por zumbis vão odiar que eu misture os passivos escravos que eles foram quando nasceram no Haiti, apenas mortos que voltavam à vida pela magia de um feiticeiro para serem usados como força de trabalho barata, aos misteriosos e organizados Caminhantes Brancos de Guerra dos Tronos. Mas estou mais interessado neste momento em suas semelhanças do que nas nuanças que os categorizam. Pois uma questão é comum, e é dessa que quero falar: eles estão mortos mas vivem, e isso partilham em comum com os vampiros.

A questão que devemos nos fazer é o que esses mortos-vivos dizem de nós? Se estão tão em voga, talvez sejam eco de recônditas questões que não nos atrevemos a pensar, e por isso elas abrem espaço na nossa consciência via fantasia.

A morte perdeu espaço na modernidade, sua antiga forma pública foi encerrada dentro de hospitais. Da mesma forma, falamos menos da finitude, e tememos o envelhecimento como crianças temem o bicho papão. Espichamos o tempo de vida, mas encolhemos a reflexão sobre a existência. Portamo-nos de forma ambígua: nos cuidamos para durar mais, mas não encaramos o fim como natural. Desprendida das antigas convenções tradicionais e sem acreditar numa transcendência, a modernidade nos confinou na hipertrofia do presente, por isso a reflexão sobre a morte não prospera. Porém somos, ainda que contra vontade, seres para a morte, a condição humana passa por isso. Se não houver reflexão sobre o tema, ele voltará para nós como sonho e pesadelo. Esses zumbis somos nós, em uma forma lúdica e rebaixada de filosofar sobre nosso destino.

O zumbi fala não só da morte como de sua fronteira: a temida velhice. Os zumbis também representam os velhos, sua incomoda lentidão, seus passos pesados, seus movimentos em câmera lenta. Se a morte nos aguarda, na melhor das hipóteses esse pesadelo vem junto com outro: ficar velho, com o corpo corrompido pelos anos. A contaminação é inevitável, todos seremos zumbis.

Qualquer plataforma mítica comporta múltiplos significados, justamente seu sucesso demostra essas camadas de possibilidades. O corpo decaído é a marca zumbi por excelência. Ora, nosso tempo nos pede um cuidado exaustivo com o corpo. Ele deve ser modelado, malhado, adequado a padrões exigentes. A forma zumbi expressa nosso cansaço com essa demanda de mimar um corpo que inevitavelmente vai decair. É como se disséssemos: vamos ser feios de uma vez, chega de privações e de trabalho forçado, essa casca de pele não vale o esforço exigido! Nesse sentido o corpo zumbi é a recusa do corpo disciplinado e diz que seguimos vivos se não o temos. O zumbi é  o protesto contra nossa vaidade excessiva e o culto a saúde.

Um fato difere categoricamente os vampiro dos zumbis: os primeiros são aristocratas e os segundos são plebeus. Certamente outro fato que o zumbi expressa é a massa. O vampiro está no topo da cadeia alimentar, literalmente se alimenta de todos e ninguém se alimenta dele. O fenômeno zumbi é a revolução francesa no território da ficção, a plebe angariando fatias de prestígio. Nossa ideologia prega a individualidade, devemos ser únicos, afinal, ser confundidos com a massa, ser ninguém, é o grande horror. O fenômeno zumbi sugere um cansaço também com essa ideologia individualista, nos aponta a luta inglória e sem sentido para despontar na multidão, como também a força dos excluídos. O mundo dos vampiros é para eleitos, o mundo zumbi é a verdadeira democracia, aceita a todos, todos seremos zumbis.

Porém a forma pejorativa de ser massa também se expressa no zumbi. Ele começou como escravo e ainda tem muito dele. Um ser sem vontade e sem cérebro, talvez por isso goste tanto de comê-lo, quem sabe ingerindo comece a ter algo dele. A civilização mecânica e burocrática, onde o pensar não tem vez e consumir é a meta, nos faz zumbis. Embora pareça na contramão de qualquer organização social, a toxicomania na sua forma mais acentuada nos deixa zumbis. Drogados são seres para os quais o mundo se esvaziou de sentido, afinal, só se interessam pelo seu objeto, sua substância mortífera. Ou alguém tem dúvida que as cracolândias não são habitadas por zumbis? O zumbi expressa tanto a obsessão nociva da droga como a anorexia do desejo, essa apatia tão comum, mas que corriqueiramente se confunde com depressão.

Zumbi rima com apocalipse, geralmente ele aparece em cenários distópicos. O mundo zumbi é inóspito. Mais por sorte do que por mérito, apenas uma família e amigos se salvam, o resto é inimigo. O olhar político nesses casos beira o simplório: nosso mundo não tem conserto nem esperança, só resta seguir vivendo numa pequena comunidade que se cuida e evitando todos os outros, já que o mundo é, de fato, muito perigoso.

Enfim, o zumbi chegou e terá uma longa vida pois possibilita expressar inúmeras ideias soltas e pensamentos que buscam uma forma. Nada nos mostra que caminhamos na direção de uma convivência mais pacífica e harmoniosa com a morte e com nosso corpo. O pensamento burocrático impera, a crença em objetos mágicos (químicos) que nos adormecerão a vontade também. O mundo nos aparece como mais perigoso e violento. O horizonte político não entusiasma. As condições são propícias para aparições zumbirescas e outras assombrações. E pior, se um zumbi não morder você, um dia teu próprio espelho o fará.

Festival de Besteiras

O Festival de Besteiras continua assolando o país

Nos anos sessenta Stanislaw Ponte Preta lançou três coletâneas de fatos que eram piadas prontas. Registrava o surto de burrice protagonizado pela ditadura no poder. Os livros chamavam-se FEBEAPÁ, sigla de: Festival de Besteiras que Assola o País. Lembro disso porque, novamente, uma parte do Brasil sente que vivemos uma época de piadas de mau gosto.

Muita gente se juntou às passeatas, mas o motor delas, o gatilho do movimento, são jovens urbanos, bem informados, conectados às redes sociais. São pessoas mais sensíveis a pautas sobre comportamento, ecologia e estilo de vida. Para eles certos fatos beiram o irreal e lhes dão a ideia de que o país está emburrecendo. As mais óbvias, que dispensam comentários, são a cura gay e a bolsa estupro, mas existem outras. A política de combate às drogas é falha, e recentemente foram aprovadas medidas que aprofundam os equívocos anteriores, nos atrelando ao modelo americano que não dá certo nem lá.

É esse mesmo pessoal que pede mais bicicletas e menos automóveis nas ruas, vê com tristeza árvores sendo derrubadas para alargar engarrafamentos. Se irrita com o crédito fácil para carros novos enquanto se usam os mesmos ônibus sucateados. Não percebe nada de novo para os velhos problemas de mobilidade urbana. Jaime Lerner disse que o carro é o cigarro do futuro e para essas pessoas esse futuro já chegou. Não enxergam o carro como charme, mas como incômodo.

Esse mesmo pessoal quer sair da caricatura do Brasil como país do samba e do futebol, por isso não sente a copa como sua. Ainda não sabem o que os representaria como o novo caráter nacional, por enquanto apenas recusam a velha marca. Pelo humor dos cartazes eles não rejeitam a alegria do carnaval nem o coletivo do futebol. Apenas querem ser outra coisa.

É claro que a crise se dá por uma questão de credibilidade, ninguém se sente representado por nada. Ela é mais que contra o governo, é contra o estado brasileiro, que se mostra surdo e corruptor. Mas esses movimentos também representam o choque do novo contra o velho. O país urbano, jovem, laico, sonhador, querendo inovar, contra o Brasil periférico, religioso, conservador e resignado. De um lado uma tentativa de crescer em harmonia com a natureza, do outro o progresso a qualquer preço que sempre foi praticado. Qual o seu lado?

26/06/13 |
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