A volta dos rebeldes sem causa
As liberdades conquistadas na Revolução de Costumes do século passado deixaram uma bela herança. Espero que igrejas e governos não se unam, para fabricar alunos robóticos e desperdiçar esse legado de criatividade e capacidade crítica.
Não sei você, mas eu sou grata aos cabeludos da década de sessenta. Eles podem parecer meio desalinhados e confusos, com demasiada simpatia por substâncias ilícitas, mas para mim foram como irmãos mais velhos que deixaram como legado a revolução dos costumes. Essa herança, que facilitou a vida de muita gente nascida depois deles, está, infelizmente, ameaçada de extinção.
Os hippies marcaram posição, enquanto filhos, ao exercer a liberdade de escolher no que acreditar, de que modo viver, mesmo que isso desagradasse seus familiares. Depois desse confronto, as famílias tornaram-se mais democráticas e o abismo entre gerações suavizou-se. Não há mais tantos rompimentos, expurgos e diminuiu o esfacelamento de famílias devido às intolerâncias mútuas. Ainda há choros, críticas, inconformidades com os rumos tomados pelos filhos, isso é inevitável, só não é mais concebível ser ditatorial com eles. Pode ser que, como pais, ainda estejamos buscando o tom, a dosagem da autoridade necessária, lidando com a eterna indecisão a respeito do que permitir e proibir, mas com certeza as famílias tornaram-se menos dramáticas do que eram.
Depois deles, tudo se reacomodou: ninguém mais precisa casar virgem, porém a monogamia e o casamento seguem sendo um valor. Enfim, você conquistou a liberdade até de ser mais conservador do que seus pais se assim quiser. Independente dessa ou daquela conduta, o aspecto mais importante da herança da revolução de costumes dos anos sessenta é certeza de que cada nova geração pensa a vida de modo peculiar, provavelmente diferente dos mais velhos.
Continuam havendo discordâncias entre as gerações, por isso debatemos, discutimos, mas certamente não rumamos para uma dissolução de valores, como querem supor alguns moralistas. Pelo contrário, considero os jovens contemporâneos admiráveis. Muitos deles combatem cotidianamente os fantasmas da intolerância, do machismo e da falta de cidadania. Há entre as novas gerações uma atitude de preocupação ecológica, de responsabilidade relativa ao futuro do planeta antes impensáveis.
Vejo o pensamento por trás do “Escola sem partido” como uma tentativa de neutralizar essas conquistas familiares. São pais que policiam os enunciados dos professores, punindo os que colocarem posições discordantes das deles Ora, a tarefa adolescente é justamente o exercício de pensar diferente dos pais, ver-se diferenciado deles, até para depois resgatar o que nossa herança tem de bom. Se cortarmos as arestas de tudo que é diferente teremos filhos que nunca crescem.
Cada filho escolhe, a partir do que os pais lhe oferecem, no que vai acreditar. Queiram ou não esses defensores do pensamento único, o mundo externo existe e expõe os mais jovens a uma gama de ideias que nenhuma censura consegue suprimir. Se quiserem perpetuar na família suas convicções religiosas, sua própria versão da história ou da ciência, sejam convincentes esmerem-se nos argumentos, discutam com os mais jovens!
Suprimir diferenças de pensamento é desejável somente para quem sente-se inseguro ao ser questionado. Porém, não se espere de um filho que seja mero repetidor dos pais nada além do eco. Sem liberdade de pensamento não acontecem invenções, quer sejam científicas, artísticas ou de comportamento.
Ao repetir velhos clichês sentimo-nos alinhados com a tradição, com nossos antepassados. É uma pena que isso seja falso: se você olhar a vida de seus pais e avós, principalmente daqueles de quem sente orgulho, verá que eles ousaram, romperam, batalharam e defenderam suas convicções.
Quanto aos descendentes, mesmo que seja sem causa, por falta de formação para construir argumentos, muitos alunos da “Escola sem partido” ainda serão rebeldes. Os aguçados conflitos de geração da década de cinquenta estão prestes a ressurgir e com eles as rupturas. O espaço democrático das famílias tem seus problemas, mas certamente acabou com a guerra entre pais e filhos. Agora, se você só souber gritar, impor e cercear, pode esperar pela jaqueta vermelha de James Dean em sua cozinha. Ela vai ressuscitar.
Pensando no chuveiro
Fala-se muito em foco, em concentração, dando a ideia de que na busca de uma solução para um problema deveríamos centrar nele o pensamento. Sim e não, às vezes é justamente quando nos distraímos que a questão pode usar todos os recursos de nosso cérebro e achar a saída do labirinto.
Fala-se muito em foco, em concentração, dando a ideia de que na busca de uma solução para um problema deveríamos centrar nele o pensamento. Sim e não, às vezes é justamente quando nos distraímos que a questão pode usar todos os recursos de nosso cérebro e achar a saída do labirinto. Como sou muito avoada, passei a vida lutando para prestar atenção no que devia. Por isso mesmo, custei a entender que era preciso relaxar para criar.
Costuma acontecer que na distração aconteçam as melhores ideias. Quando travo no momento de escrever é hora de ir para baixo da água!Lá, invariavelmente, vem uma solução, calmamente, sem precisar persegui-la. Uma frase redonda, aquela abordagem para um tema árduo que já tinha desistido de procurar. Por alguns anos achava que a mágica morava na minha banheira, até que fiquei sem ela e descobri que a pausa é a dona do segredo.
Já recorri a soluções piores, fui tabagista, uma forma péssima de fazer pausas. Mas o que têm em comum tomar um banho e fumar? No banho, cantamos sem preocupação com quem ouve, para tristeza dos que escutam, diga-se. Há quem ria sozinho das piadas que faz para si mesmo. As crianças cantarolam, fazem vozes, brincam por horas. Tomar banho é sempre uma forma de cair dentro de si; fumar também. Significava sair de cena, mesmo quando se fica no mesmo ambiente.
Como psicanalista, se ficar prestando atenção no que dizem meus pacientes focada em um esforço racional de coerência e de teorização, provavelmente farei apenas interpretações banais e inúteis. A novidade, necessária para desvendar seus impasses, surpreende tanto a mim quanto a eles: é uma palavra que soa diferente, um ponto de vista inusitado. Freud chamava isso de “atenção flutuante”, um tipo de escuta distraída e empática para o qual nos preparamos.
Para a grande maioria dos distraídos, há um elemento essencial, que faz diferença para que nos tornemos capazes de pensar algo que preste: é preciso importar-se com o problema, a questão, a tarefa. Não se trata de qualquer devaneio, ir janela afora atrás da borboleta azul, mas, sim, de fazê-lo possuído, envolvido com alguma tarefa. É fato que por trás da capacidade de concentrar-se está, sim, a possibilidade de relaxar, de fazer pausas, seja um banho ou fazer como uma amiga, que lava louça nessas ocasiões. Porém, a premissa é de que haja uma entrega. Portanto, o segredo encontra-se na motivação, a qual só surge quando algo nos diz respeito, nos agrada, envolve. Não é uma questão hedonista, de só fazer o que se gosta, mas, sim, de fazer as coisas da forma menos alienada e burocrática possível. Depois que nos enamoramos de um desafio, ele vai possuir nossa mente, como qualquer paixão.
Turistas domésticos
As primeiras experiências antropológicas são a circulação das crianças nas casas dos amigos e parentes. Essa continuará sendo uma experiência sempre interessante.
Você não precisa pegar um avião, nem mesmo fazer uma mala para conhecer culturas diferentes. Basta deslocar-se para outra casa, de amigos, colegas de escola ou trabalho, de parentes da família estendida ou vizinhos. Na minha infância, fui visitante contumaz de casas alheias, ficava impressionada pelas diferenças culinárias, olfativas, arquitetônicas, pela linguagem e hábitos próprios daquela gente que não era a minha. Aprendi que entra-se numa casa alheia com o mesmo espírito curioso das viagens. É preciso tentar entender os hábitos dos nativos, estar atento a seus protocolos para não cometer nenhuma gafe e pronto para deixar-se questionar pela diferença. Nessas primeiras experiências, as mais emocionantes porque podia fazê-las sozinha mesmo sendo criança, aprendi alguns macetes, que aqui compartilho com o leitor.
Cada casa tem um cheiro próprio, aliás, antes mesmo das casas, os corredores de cada prédio o tem. É uma síntese, um ranço particular que mistura produtos de limpeza, comida, perfumes dos moradores, bodum dos bichos da casa, dos estofados e cortinas. Nunca deixe de respirar fundo ao ingressar pela porta, o nariz será seu passaporte carimbado.
Cada família têm uma linguagem peculiar. Você pode nem sempre estar entendendo do que falam, pois aludem a piadas internas, usam palavras de outras línguas misturadas, além de que você não dominará os vocábulos e apelidos oriundos da linguagem infantil. Deixe-se levar pelo ritmo, pela música da conversa, sem precisar entender tudo.
Capítulo à parte, quando trata-se de famílias clássicas, para a distribuição dos olhares da mãe. À mesa, ela costuma orquestrar rotinas, conversas e silêncios sem sequer movimentar as sobrancelhas. Convém sentar-se num lugar onde você possa lhe ver o rosto e sempre aceitar suas oferendas de alimentos.
A diferença de estilos é facilmente observável nos prédios em que os apartamentos têm a mesma arquitetura. É instigante ver como os moradores os ocupam de modo tão diverso. Preste atenção, embora você seja visita, nem sempre usará a sala, muitas vezes um espaço reservado para “ocasiões especiais”, o que não é o caso de sua presença. O mesmo recinto no apartamento ao lado estará cheio de roupas, brinquedos e você não encontrará onde sentar, mesmo que tenham sugerido que o faça. Algumas casas têm ambientes que congregam o lazer e as refeições dos seus moradores, enquanto em outras os espaços comuns são utilizados como um corredor onde as pessoas encontram-se nas andanças entre a cozinha e o quarto. Nesse caso, procure ficar nos aposentos da pessoa que lhe for mais próxima.
A posição da televisão é decisiva, ela pode reinar absoluta ou estar ali onipresente e ignorada como músico de churrascaria. Os sofás podem ser dispostos como auditório, plateia permanente da pantalha que decidirá as conversas. Nesse caso, os moradores da casa não conversam entre si, apenas apartam a fala da tevê. Há casas onde ela não conta, mas são tão raras como aquelas que não passam de uma grande biblioteca onde até se dorme e come.
Os retratos são um ponto alto. Antigamente só as casas de famílias e, principalmente de vovós os tinham em excesso. Hoje não, qualquer um fará com eles seus arranjos. Os mais tradicionais recorrerão às imagens fabricadas em estúdios, adolescentes fazendo poses, casais de gala, gestações com pérolas e plumas, formaturas. Mas também há os que ousam fotos mais artísticas, em geral tiradas em viagens. Os antepassados são lindos de se ver, matronas carrancudas, patriarcas com bigode de limpa trilho, crianças constrangidas. Os moradores terão prazer em percorrer a galeria com o visitante detalhando cada imagem, não se constranja em perguntar, é um belo modo de conhecer-lhes a história e gostos.
Estas são algumas dicas, entre tantas outras, que poderiam ser ensinadas por qualquer pequeno turista doméstico acostumado a visitar outras casas e lhes decifrar a cultura. Tem muito adulto, habituado aos aviões, que poderia aprender com eles a respeitar as diferenças culturais das suas redondezas.
Creme numa hora dessas?
Não temos como julgar o tempo, nem os métodos necessários para atravessar um luto.
Minhas duas avós eram húngaras, ambas chamavam-se Irene e tinham uma bela parceria. Essa amizade ficou um pouco estremecida em uma única ocasião: quando meu pai morreu de forma súbita e precoce e uma Irene precisou consolar a outra. Minha avó paterna perdera seu primogênito ainda jovem, enquanto a avó materna via-se às voltas com uma filha viúva de vinte e poucos anos eu, órfã ainda bebê.
Naquela ocasião uma silenciosa discórdia instalou-se ente elas por um motivo aparentemente pífio: a mãe de meu pai chorava copiosamente a perda do filho, mas isso não a impedia de passar creme no rosto várias vezes por dia, como era seu hábito. Uma Irene achou que o sofrimento da outra, a mãe enlutada, não era compatível com cuidar da pele. Disfarçou isso até para si mesma, mas acho que no fundo de seu coração, não aceitou. Para a avó materna, o ato de embelezar-se da vó paterna tornava questionável a veracidade de sua dor; como assim passar creme numa hora dessas? Escutei essa crítica quando ela me contou essa história, mas não consegui concordar.
Como minha avó paterna, e por causa dela, tornei-me adicta a hidratantes, tenho a pele muito seca e os passo várias vezes por dia, incomodada pelo ar condicionado, pelo frio, com as mais diversas razões e desculpas. Só não vou mentir-me que esse hábito tenha muito a ver com hidratação propriamente dita. Acho que essa carícia de creme era para ela uma forma de autoconsolo da qual me tornei adepta. Em vez de esperar pela ajuda alheia, ela se recobria suavemente, dava-se um abraço cremoso. Como a perda de um filho é a maior dor que pode existir, algo capaz de sequestrar a vontade de viver de seus pais, não soa bem uma atitude que remeta à continuidade da vida. Somos contraditórios com aqueles que sofrem semelhante mutilação de seu futuro: queremos que quase sucumbam a uma dor insuportável, queremos que sejam fortes e sobrevivam.
Muitas pessoas costumam negar os momentos difíceis, saem imediatamente em viagem, afastando-se de tudo que os lembrava aquele que nunca mais voltará, entregam-se a duras jornadas de trabalho ou não tocam no assunto. Ignoram seus sentimentos e exilam os pensamentos que ajudariam a destilar a saudade. Há outras que afundam-se para sempre, não perdem a oportunidade de um apocalipse pessoal e deixam-se abduzir pela dor. Estes últimos, alheios à necessidade de sua presença e afeto por parte dos que ainda estão vivos, parecem indicar que a única pessoa que amavam é a que morreu. Pais que têm a vida de um filho ceifada, se tiverem outros, precisam superar-se para que estes não pensem ser insignificantes frente ao irmão morto.
O raciocínio a respeito do luto pode ser aplicado a outras situações difíceis, onde a vida é ameaçada ou perde o sentido que tinha. Por exemplo, quando se recebe um diagnóstico ruim da própria saúde ou de alguém muito amado, uma inesperada demissão, uma aposentadoria para a qual não se está preparado, uma bancarrota, uma desilusão amorosa. Condenamos tanto os que negam uma perda, quanto os que revelam-se incapazes de superação.
No raciocínio daquela Irene, que era sogra do falecido, encontramos essa tendência a avaliar com pouca tolerância os recursos utilizados por aqueles que sofrem. Queremos que sejam autênticos, que mostrem verdadeira entrega à sua dor, mas também que sejam breves e resolutivos, nada de depressões ou lutos arrastados.
Se uma Irene tivesse lembrado que, como a outra, era uma emigrante desgarrada de todo um passado e referencias, talvez tivesse entendido esse gesto solitário de sobrevivência psíquica. Cuidar da pele era tão válido como tantas atitudes pouco convencionais a que as pessoas recorrem quando a vida pede que se tenha uma envergadura quase sobre-humana.
Cresci passando cremes e acostumei-me a dizer que as pessoas que tiveram vida difícil têm a “pele dura”, sem dar-me conta que remetia ao episódio daquela Irene passando creme para sobreviver à perda. Minha avó materna estava errada daquela vez: há diferentes recursos e são uma sorte para quem os tem. A dor também se enfrenta com hidratante.
Tristeza tem começo e fim (podcast)
A tristeza habita um ninho vazio de sonhos, pessoas, ou tudo aquilo que um dia ocupou lugar dentro de nós. Tudo isso precisa ir supurando de nós devagarinho. São milhares de minutos, dias e meses em que ficamos não encontrando isso que a gente amou. Há também a tristeza muito comum na adolescência, que também […]
A tristeza habita um ninho vazio de sonhos, pessoas, ou tudo aquilo que um dia ocupou lugar dentro de nós. Tudo isso precisa ir supurando de nós devagarinho. São milhares de minutos, dias e meses em que ficamos não encontrando isso que a gente amou.
Há também a tristeza muito comum na adolescência, que também ocorre em outros momentos da vida, que é meio filosófica, uma lucidez desesperanças.
Na infância a tristeza acontece quando uma criança sente-se distanciada do ideal que julgava representar, sentimo-nos pequenos, inadequados e por isso abandonados.
Quanto à depressão, poderíamos dizer, com certa liberdade poética, que ocorre quando alguém se apaixona pela tristeza.
Uma entrevista gravada para o Jornal Nexo
https://www.nexojornal.com.br/podcast/2016/03/19/De-que-adianta-ficar-triste (copie e cole este link)
Ventre livre, quanto falta para isso?
Ventre livre, quanto falta para isso?
Até quando viveremos num país com religião, nem diria oficial, mas sim ditatorial? As dificuldades de manter, assim como de interromper uma gestação (detalhadas aqui) devem ser levadas em conta, mas a liberdade é uma premissa!
É incrível nosso atraso em insistir na proibição do aborto e em permitir que argumentos de caráter religioso se imiscuam na vida de quem não lhes partilha as crenças. Quando finalmente viveremos em uma país sem religião, não diria oficial, mas sim ditatorial? Neste momento, envolvidos com o perigo da contaminação das gestantes com o Zika vírus, discute-se seu direito a abortar, caso não se sintam em condições de criar um filho com as sequelas que sabe-se ocorrerão no feto.
Criar um filho é uma missão quase impossível, mas mesmo assim homens e mulheres se lançam em seu encalço, dedicando a maior parte dos esforços de sua vida para fazer tudo dar o mais certo possível. Tal jornada só tem chance de sucesso se os envolvidos estiverem engajados nisso até a raiz dos cabelos, até os ossos!
Uma criança com problemas de desenvolvimento encontra uma família mais exigida ainda: terá que suportar o desencontro entre os ideais sociais e aquilo que seu filho conseguirá cumprir, serão criadas metas de acordo com suas possibilidades e se aprenderá a valorizar e amar a trajetória específica dessa criança. Isso após superar o luto pelo filho idealizado que definitivamente não nasceu.
Imagine então toda essa operação quando alguém decide não enfrentar esse desafio e é obrigado a fazê-lo. Na prática estamos, sempre, falando de mulheres humildes, pois o aborto existe enquanto possibilidade para aquelas que puderem pagar por ele.
Ninguém é entusiasta do aborto, mas qualquer um que já trabalhou em saúde pública sabe que ele é uma sofrida realidade que envolve milhares de mulheres, e sermos contra ou a favor praticamente não interfere na maioria das condutas.
Quando acontece, o aborto é uma das mais sofridas experiências na vida de uma mulher. Desde o início da fecundação, ela vê-se tomada de manifestações físicas e psíquicas que impactam totalmente sua existência: sua atenção e sono ficam alterados, seu corpo muda de formas quase imediatamente, é como um país invadido por outro que altera e interfere na cultura da nação sitiada.
Quer tenha sido fruto de um acidente, do descuido irresponsável ou de um desejo, uma fecundação sempre será significativa, restará como um evento que assumiu uma magnitude inusitada, no qual uma relação sexual torna-se potencialmente um destino. Por isso, sua interrupção será para sempre uma encruzilhada inesquecível na qual se escolheu uma das vias.
Esse evento fará aniversário, será uma marca na existência, um divisor de águas. Justamente por isso não se pode tratar do tema como se fosse apenas um dilema moral, mais que isso, é uma questão de liberdade pessoal, de autonomia, e só deveria assumir uma dimensão pública por demandar atendimento de saúde.
Na prática, para aquelas que decidem que não querem ou não podem manter uma gestação abre-se um calvário, onde serão maltratadas pela clandestinidade dos métodos, pelo silêncio punitivo de todos, justamente quando estão frágeis e precisariam ser apoiadas e escutadas. Imagine o que significa para uma mulher sentir todas as transformações, sofrê-las durante semanas, grávida de um filho que não deseja ter, passar pela intervenção cirúrgica do aborto, elaborar a decisão tomada, sangrar e sentir dores, tudo no mais completo isolamento.
A fecundidade não se alinha totalmente com a condição e o desejo de ser mãe. Deslizes acontecem, por culpa do inconsciente ou da natureza, mas muitas vezes eles não habilitam para a jornada da maternidade. Para um filho dar certo a mulher precisa escolher. Por lei, ela precisaria ter seu ventre libertado da imposição de procriar.
Dizem os pastores do rebanho de Deus que os embriões a Ele pertencem, se houve uma fecundação foi porque Ele assim o quis. Portanto uma vida pouco deveria aos pais que apenas reproduziriam conforme os desígnios do criador. Nessa lógica não precisamos perguntar em nome do quê resolvemos cometer esse ato tresloucado de gerar outro ser humano. Pena que ele vai ser mais à imagem e semelhança das nossas tentativas de acertar e das inevitáveis trapalhadas do que do Criador.
Nos debates sobre a legalização do aborto, além dos dilemas éticos sobre quando começa a vida, e quem tem direito sobre ela, fica omitido um fato: não conseguimos realmente dar vida a um filho que não desejamos. Somos pouco magnânimos, incapazes de um amor que não nos venha a calhar. Queríamos ou não, é assim que as coisas acontecem.
Eu não pedi para nascer! Dizem os adolescentes, quando os pais ficam querendo se demitir do trabalho que eles dão. Às vezes é preciso lembrá-los da responsabilidade que contraíram. A educação de um filho não acaba quando a criancinha mimosa dá lugar ao cara chato, volumoso e argumentativo em que todos os filhos se transformam.
Por outro lado, crescemos quando descobrimos que é inútil colocar nos outros a razão de todas nossas mazelas e nos dispomos a assumir a autoria de nossos feitos, os direitos e os avessos. É aí que nos habilitamos a ser pais, pois como é que vamos cuidar de alguém enquanto nem de nós nos incumbíamos?
Ser pai ou mãe é uma missão quase impossível, que requer todos os recursos, inclusive aqueles que desconhecíamos que tínhamos. Nos cabe ensinar o que não sabemos, proteger quando nos sentimos desamparados e amar prevendo uma separação. Simples assim. Não é tarefa para se entrar de costas, por isso um filho francamente indesejado ou totalmente inoportuno será abandonado, negligenciado ou enlouquecido.
O desejo por um filho não é de um jeito só, ele pode ter inúmeras conjugações e todas elas funcionam de alguma maneira. Há ocasiões em que nasce alguém que chega cedo demais ou tarde demais, que é fruto de uma relação muito jovem ou que já acabou, conseqüência da vontade de um, mas não do outro, enfim, variações que demonstram que querer um filho é algo que pode ser escrito por linhas tortas e em geral o é.
O que essas histórias têm em comum é que alguém envolvido no acontecimento de uma gravidez, de alguma forma está disposto a bancá-la. Mas não é sempre assim, por outras vezes descortina-se a previsão de um pesadelo, um sentimento de portar um Alien, que destruirá a vida da mulher ou do casal, invadidos por um fato que não têm condições de sustentar. Nesses casos, o aborto é um direito de interrupção de algo que adoeceria a todos os envolvidos. Quando há escolha, torna-se mais responsável a relação com cada gestação mantida. Filhos assim nascidos podem não ser divinos, mas ainda são maravilhosos!
Calendário emocional
Sem ter consciência, somos tocados pelo aniversário de eventos ou rotinas, dos quais sequer sabíamos que lembrávamos.
Sabe aquele relógio que há dentro do celular e dos computadores, que mesmo que o aparelho esteja desligado mantêm o horário e a agenda atualizados? Nosso inconsciente é igual. Ele tem um calendário infalível, que faz com que tenhamos sensações ou pensamentos “comemorativos” de datas que sequer sabíamos que lembrávamos.
Quando somos tomados por uma tristeza incompreensível, um desânimo fora de sentido, um choro estranho, uma brabeza despropositada, enfim, algo aparentemente fora de lugar, talvez seja o tal “calendário emocional”. Algo pode estar sendo evocado nessa data. Sem ter consciência, fazemos o luto de aniversários de morte, de separação, da saída de um emprego, da partida de um filho, de um aborto ou qualquer outro evento significativo, duro ou doído. Todas as datas estão registradas em nosso relógio interno. Para fazer você acreditar nisso, vou contar a história, que aconteceu com uma paciente, que foi surpreendente até para mim, mesmo depois de décadas de trabalho como psicanalista.
Ela acordava todos os dias às três da manhã, depois demorava para dormir. Olhar o relógio e confirmar a infalibilidade do despertador interno só piorava as coisas. A sensação era de estar sendo vítima de um complô. Havia anos que quebrávamos a cabeça tentando entender o porquê dessa persistente repetição.
Sua vida mudou e isso passou. Andávamos esquecidas do enigma, quando ela se pôs a falar sobre um período muito solitário e difícil em que, a trabalho, vivera na Coréia. Foi lá que essa maldição das três da manhã começou e, nas noites insones, costumava pensar que aqui eram três horas da tarde. Dessa vez, ao contar a história lembrou que durante sua infância, o pai, que era viajante e passava a semana fora, partia sempre aos domingos às três da tarde. Na sua ausência, minha paciente ficava à mercê da mãe, cuja agressividade se expressava principalmente com ela. A filha sabia que a saída do pai era o começo de uma jornada semanal de gritos e castigos.
Muitos anos depois, soube-se que esse homem tinha duas famílias e, mesmo sem ter consciência disso, a filha intuía que sua partida era muito mais significativa do que se fosse apenas trabalhar. O hábito de despertar às três da madrugada, sentindo-se abandonada, como ocorria naquele lugar estrangeiro de fuso horário invertido, era um reencontro com a desolação que chegava quando ele partia.
Essa história lembra a força das moções internas que governam nossa vida. Elas serão tanto mais persistentes quanto menos tivermos acesso a seu significado. Podemos combater uma insônia como essa, por exemplo, usando uma medicação ou qualquer outro recurso. Mas não custa ir um pouco mais a fundo e descobrir o sentido oculto desses acontecimentos psíquicos, aparentemente bizarros. Decifrá-los possibilita que nos maravilhemos frente à eficácia da máquina psíquica que nos move. Sua precisão pode até ser assustadora, mas a familiaridade com sua lógica maluca possibilita que certas maldições deixem de nos assombrar.
Tempo para não ser
Férias: mudança de identidade temporária.
É verão, temporada oficial de descanso. Sair de férias não garante que sejamos capazes de gozá-las: amigos, casais e famílias se desentendem, se angustiam, alguns vagam tristes, outros perdidos. A expressão workaholic, viciado em trabalho, que a princípio me define, não basta para explicar: não é apenas um vício. O problema é que despidos das nossas características profissionais ficamos nus de identidade.
Sei que isso não é assim para todo mundo: há quem se preparou o ano todo para este momento, lapidou o corpo, garantiu as insígnias de beleza, força, dinheiro ou o que for para entrar nos padrões. Enquanto os outros se desmancham em brancuras, barrigas, celulites e roupas soltas, alguns soberbos exemplares angariam admiração e inveja dos complexados. Eles não passeiam, desfilam. São como os salva-vidas, profissionais do veraneio.
Meu trabalho só existe na presença dos pacientes, tudo o que sei provém da escuta. Portanto, fora do consultório, não me sinto psicanalista e sempre volto das férias questionando se ainda serei capaz. Engenheiros, administradores ou contadores, por exemplo, só se valem da perícia com números quando está se calculando o rateio do churrasco, ela pouco lhes servirá na beira da praia.
Sair de cena, abandonar responsabilidades, a isso chamamos de descanso. Poder ler, dormir, movimentar-se por prazer, namorar, rir, conversar fiado. Mas como descansar de si sem sentir-se derretendo, virando nada, quando somos somente o que trabalhamos?
Sempre que tivermos o privilégio de algum tipo de escolha, nosso trabalho tende a ser significativo. Cada ofício é uma espécie de solução encontrada para administrar as expectativas que jogaram em nossas costas, junto com nossos próprios temores e ideais. Por isso, não é exatamente algo do qual seja fácil livrar-se.
Os cultivadores do corpo levam o fruto de seu esforço à praia, despem-se para trajar gala. Mas há outros tipos de bem aventurados entre os veranistas: aqueles que possuem grandes habilidades sociais, realizam-se no intenso convívio em praias, famílias, banquetes, excursões, cruzeiros. No campo oposto, os eremitas bem resolvidos também costumam lidar melhor com esse tempo livre. Viajando ou repousando a sós ou em parca companhia, festejam o anonimato.
Quando consigo, tendo a me resolver melhor como os mais quietinhos. Porém, é bom parar de culpar-se pela dificuldade de entrar em sintonia com o descanso. Como as férias implicam numa mudança de vida, portanto de identidade, isso acaba sendo um desafio. Em lugares diferentes, com outras vestimentas e as rotinas alteradas, tornamo-nos meio estrangeiros a nós mesmos. O pior é que quando finalmente pega-se o jeito e o gosto, lá pelos últimos dias, já é hora de voltar para casa.
Menino felino
Pequenos detalhes, grandes amores.
Minha sogra ensinou seu filho a andar em cima dos telhados. Eles moravam no primeiro andar e ele, com sua leveza infantil, foi incumbido de caminhar no telhado que ficava abaixo da janela para resgatar roupas e prendedores que insistiam em cair. Como um gatinho, ele passou a frequentar clandestinamente os telhados. Seu observatório predileto dava para a lavanderia de um hotel vizinho, onde escutava a conversa das funcionárias. Qual é o homem que não gostaria de saber o que as mulheres falam entre si na intimidade? Imagine um garoto, com tudo ainda por saber, o quanto essas aulas sobre a vida vinham a calhar.
Certo dia, entregue à sua sorrateira espionagem, escutou a conversa de duas lavadeiras que falavam mal de uma terceira mulher. Uma sirigaita imperdoável, ladra do marido de uma amiga comum. “Também – observou uma das lavadeiras – pessoas de olhos verdes não são boa gente!”.
Naquele momento Mário descobriu algo que jamais havia observado: os olhos tinham cores diferentes e mais, isso informava sobre a natureza de seus portadores. De posse dessa nova bússola para classificar o mundo, investigou os olhos dos membros da sua família. Para seu espanto constatou que seus pais e irmãos tinham todos olhos verdes. Ele, de olhos azuis, estava cercado de pessoas malévolas!
Bom, com o tempo tudo se relativiza e ele pôde tranquilizar-se quanto à respeitabilidade dos seus familiares, apesar daquele mau indício. Além disso, as pessoas com olhos verdes, como eu, tornaram-se seu perigoso e atraente mistério e certamente me beneficiei disso.
Quando buscamos um amor pensamos que a compatibilidade de gostos, pensamentos e parâmetros éticos tem uma influência importante, até tem. Porém, não há quem não estranhe a falta de lógica visível na maior parte das paixões. Tentamos atribuir as compulsões amorosas às características físicas, que mudam conforme a época, e a uma tal de “química”, que parece ser o elemento surpresa, o mais inapreensível.
Nosso modo de amar, assim como o sentimento de que julgamos ser merecedores, é resultado de uma colcha de retalhos formada a partir de pequenas histórias, aparentemente aleatórias, mas que assumem grandes significados. A partir das nossas vivências construímos um ideal de gênero e traçamos os contornos daquilo que será um objeto de desejo. Somos influenciados pelo que nossos pais foram, gostariam de ter sido, ou mesmo por tudo o que eles condenam. Pessoas de olhos verdes, por exemplo, para o menino-felino, apresentaram-se como irresistíveis, mesmo que moralmente questionáveis. Uma experiência no divã ajuda a relativizar essas determinações ao tentar mergulhar nos pensamentos que formam o rio subterrâneo que irriga nossas escolhas amorosas.
Sei não, talvez minha própria história de amor tenha dívidas com prendedores de roupas, telhado e lavadeiras. Quanto a mim, porque coloquei os olhos nele… Bom, isso é outra história te talvez tenha a ver com seus olhos azuis.
Saudades do que nunca tive
Da importância dos trens para que pudessemos existir psiquicamente ao longo dos trajetos.
Andei mais em trens imaginários do que reais. Não tive a sorte de crescer no tempo do trem. Nas andanças da vida conheci barcos e aviões, mas minha quilometragem foi mesmo de ônibus. Criança enjoadinha, literalmente falando, jamais cheguei ao destino com a roupa limpa e uma cara que não tivesse ficado verde. Só de olhar para o ônibus já sentia a chegada das náuseas.
Não estamos falando de ônibus espaçosos, esses que parecem barcos de cruzeiro sobre rodas, mas sim do transporte rodoviário dos anos sessenta. Eram veículos arredondados, pequenas janelas que mal abriam, sempre acima da linha dos olhos das crianças. Além disso, os passageiros fumavam sem parar, ali dentro mesmo.
Não me conformo em pensar que eles vieram para substituir os trens, que tinham movimentação cadenciada e previsível, eram espaçosos e havia como caminhar dentro deles. Além disso, a paisagem movia-se de modo em que os olhos podiam acompanhar a chegada e partida de uma imagem. O trem nos nina e nos conta histórias, com seu balanço e o filme da janela. Depois disso, transportar-se tornou-se supersônico, rápido, até os trens já não fazem tchu-tchu, embora ainda tenham nos trilhos um fator de estabilidade que os estômagos frágeis agradecem.
Sei que deixamos de viajar de trem pela imposição do petróleo, pelo culto da velocidade, pela popularização dos carros com a individualização de tudo. Mas gosto tanto de percursos que lastimo a eficiência de que passamos a dispor. Há uma espécie de meditação associada ao tempo demorado da chegança, à alternância entre o olhar sugado pela paisagem e o pensamento regido pelo cérebro descansado. Quando não estamos dirigindo, quando os trilhos impõe um caminho e uma velocidade únicos e a locomotiva lá na frente puxa os vagões passivos, podemos repousar das decisões e disputas, pois ninguém precisa ultrapassar o outro. Embarcamos na melancolia do que deixamos e na expectativa do que nos espera, o percurso cria um lapso em que essas duas pontas se desconectam. Uma parte importante de nós existe nesse intervalo de tempo.
Gosto de sonhar com um mundo de trens cadenciados e sem pressa. Não estou me referindo evidentemente a vagões lotados onde se viaja como bichos rumo ao frigorífico. Sei que hoje providenciamos esse momento de alheiamento da pior foma: suportamos os engarrafamentos fugindo para dentro dos dispositivos eletrônicos, refugiando-nos na música, na comunicação compulsiva, porque não há nada na janela. Editamos uma trilha sonora ou improvisamos uma companhia para enfrentar o tempo inexistente do trajeto congelado. A paisagem do trem não carece desses improvisos, é a mesma para todos, fica disponível para que cada um possa percorre-la com seus pensamentos.
Presos em lugares-nenhuns-que-se-movem, sonhamos com férias e viagens, onde nos dispomos a chegar a algum-lugar-para-contemplar-a-paisagem. Se algo ainda me enjoa é tanta claustrofobia. O mundo ficou menor, no sentido de que é possível percorre-lo com uma eficiência incrível, real ou virtualmente, mas nosso olhar nunca foi tão estreito.