Um consolo a cada esquina
Essa invasão de farmácias, pet-shops e estéticas, a que se deve?
Não sei se é só Porto Alegre que vive uma invasão de farmácias. Edificações vêm abaixo ou se transformam para dar lugar a esses bem iluminados, coloridos e amplos negócios. Lá há substâncias que dão conta de cabelos e pele irretocáveis, dores no corpo e na alma, síndromes que nossos avós sequer suspeitavam que fossem possíveis. Você pode adquirir uma variedade de vitaminas que fariam Popeye dominar o mundo e até, se fizer questão, remédios realmente necessários.
Não estou aqui para olhar de fora, sou hipocondríaca profissional e adoro pílulas milagrosas para meus males. Também sou capaz de perder bastante tempo escolhendo produtos de higiene que tornem meus dentes alvos, minha pele uma seda e meus cabelos esvoaçantes. Porém, com a chegada dos cinquenta anos, há o perigo de sair com os cabelos alvos, os dentes esvoaçantes, mas…
Além das farmácias, são também endêmicos os salões de beleza, agora rebatizados de Estéticas, assim como as lojas especializadas em animais domésticos, as Pet-shops. As primeiras, no passado recente, cuidavam dos cabelos, unhas e ocasionalmente uma maquilagem para festas. Hoje estendem seus serviços muito além do enfeite: pele, gorduras e todo tipo de supostas irregularidades encontram ali alívio e correção. Já as pets são lugares totais. Mistura de cuidados de saúde, estética, creche e loja, oferecem atendimento imediato, doutores 24 horas. Do jeito que andam as emergências dos nossos hospitais, ando invejando minha gata.
O que isso diz de nós?
Que acreditamos em substâncias mágicas: os remédios. Eles de fato são maravilhosos ao combater a dor e a morte. Porém, os usamos também para males menores, bastante vagos, assim como esperamos deles proteção e vitalidade. Sem dúvida, nas farmácias encontra-se a alquimia das soluções imediatistas, basta engolir.
Que cuidamos dos animais porque nos oferecem um afeto tranquilo e previsível. Para eles toda forma de amor vale a pena, são fiéis e devotados, raramente pedem divórcio e, ao contrário dos filhos, moldam-se às das expectativas dos “pais”. As pessoas nos cansam com suas exigências e neuroses, nunca sabemos o que esperar de um amor entre humanos.
Já as estéticas são como uma mãe de aluguel que cuida, massageia, nos alisa, elogia, colore e enfeita. Até porque que as mães descuidam, esquecem, acreditam que crescemos. Pagando, o mimo é garantido e vitalício.
Por isso consumimos banhos e tosas, esmaltes, cremes, drenagens e luz pulsada, pirilimpimpim, vitaminas, analgésicos e calmantes. Como não ter uma uma pet-shop, uma estética e uma farmácia a cada esquina? A conclusão é inevitável: tornamo-nos uma civilização preguiçosa, imediatista e carente. Dá uma vergonha, né?
Quero uma penseira
A esta altura, estamos sobrecarregados de um enorme acervo de rostos, vozes, eventos, ideias e fantasias. É muita gente e muita coisa para manter vivo na memória, óbvio que algumas delas terão que descansar em algum tipo de bastidor leitoso e prateado.
Prezado Papai Noel:
Provavelmente não mereço, mas queria pedir um presente, ou melhor, um presentão. Não fui boa menina: pratiquei poucos exercícios, estudei pouco, comi muito, encontrei menos minhas pessoas queridas do que considero importante, queixei-me da situação política e econômica mais do que ajudei a debelá-la. Mas, mesmo assim, vou lhe dizer o que desejo.
Queria muito uma “penseira”. Como talvez o senhor não seja leitor de Harry Potter, lhe explico do que se trata o objeto cobiçado. O jovem bruxo desta saga estuda numa escola chamada Hogwarts, na qual seu diretor, Alvo Dumbledore, é um ancião muito sábio e sobrecarregado de preocupações. Estou eu também tornando-me uma senhora madura cheia de preocupações, embora a sabedoria seja questionável. Pois bem, para administrar a sobrecarga de pensamentos importantes, Dumbledore dispõe de uma penseira em seus aposentos.
Trata-se de uma bacia de pedra rasa, contendo em seu interior uma substância leitosa-prateada sempre em movimento. O diretor encosta sua varinha na têmpora e retira alguns dos pensamentos dos quais não necessita no momento. Eles saem sob a forma de uma espécie de raio e são depositados na penseira, onde ficam disponíveis para serem consultados quando necessário.
Pessoas dos cinquenta em diante, como eu, tendem a fiscalizar sua memória com a atenção de um cão pastor e o pânico de um animal acuado. Qualquer falha liga o alarme das fantasias do envelhecimento e da demência. Por outro lado, a esta altura, estamos sobrecarregados de um enorme acervo de rostos, vozes, eventos, ideias e fantasias. É muita gente e muita coisa para manter vivo na memória, óbvio que algumas delas terão que descansar em algum tipo de bastidor leitoso e prateado.
Quando não conseguimos lembar algo, mesmo que seja o nome de um ator coadjuvante de um filme dos anos setenta, entramos em pânico: é o Alzheimer batendo! Por isso, penso que se tivesse uma penseira saberia onde está tudo aquilo que não consigo evocar imediatamente quando preciso. Assim, poderia tranquilamente revolver a penseira com a varinha e resgatar a memória fugidia, considerando natural de que ela esteja lá e não dentro de mim. Teria certamente a calma que me falta quando começo a procurar a memória que não se apresenta à consciência com prontidão. Qualquer um sabe que aquilo que buscamos com angústia tem a teimosia de se esconder.
Na verdade, na falta de um objeto mágico desses, desenvolvi a paixão por cadernos, caderninhos e cadernões. Os tenho para todos os fins: anotações de leituras, horários, sonhos, pautas para colunas, finanças, planejamentos variados. Adoro essas minhas memórias auxiliares e os consulto o tempo todo. Portanto, caro Papai Noel, se não encontrares penseira no mercado vou precisar de mais caderninhos…
Filhinhos da mãe
Há uma forma de ser mulher que está em declínio: a da mulher que materna seu homem e realça com sua dependência o poder dele. Os viúvos dessa feminilidade em extinção estão ficando desamparados e violentos.
Os cariocas estão correndo o risco de eleger como prefeito um homem que repetidamente espancou sua esposa. Em sua defesa, o candidato a candidato perguntou: “quem não tem uma briga dentro de casa? Quem não tem um descontrole?” De fato, tampouco conheço casais que jamais tenham discutido, mas palavras e lágrimas costumam dar conta do recado.
Muitos legisladores, maridos e namorados estão mostrando-se irritados e inseguros com a desobediência e as exigências das mulheres. Amantes ciumentos espancam e até matam aquelas que, em seu imaginário, só poderiam estar interessadas em outro homem. O que não ocorre a esses senhores destemperados é que elas possam querer tantas outras coisas que independem da presença masculina. Podem desejar a dignidade que eles lhe negam, um clima agradável no lar, a liberdade de não ter filhos, enfim, coisas para as quais elas se bastam. Menos habituadas ao prestígio, criadas para ser mais cuidadoras que cuidadas, as mulheres estão melhor preparadas para a jornada solitária.
Há uma cruzada em defesa de uma feminilidade que está em declínio. É a que corresponde à ideia da que elas existem para funcionar como um espelho que reflete a imagem do homem duplicada, agigantada pelo olhar feminino de admiração. Aliás, essa metáfora é de autoria da atualmente difamada Simone de Beauvoir. Como poderão eles ser grandes homens, sem uma grande mulher por trás?
Curioso, porque mulher grande mesmo é a mamãe: aquela giganta que faz seu menininho sentir-se o maior tesouro que a vida lhe deu. As esposas submissas são sua forma de sobreviver na vida dos homens adultos. O patriarca falido encontrou seu último reino nos braços da uma companheira que é misto de mãe protetora com criatura dependente. A extinção dessas tristes personagens, um marido ao modo menino mimado e a esposa que é sua sombra protetora, seria uma questão de tempo se não esbarrasse na resistência das próprias mulheres.
Muitas continuam submetendo-se, ou pior, acobertando maridos violentos, por causa da superproteção, que é uma fraqueza tipicamente materna. Alegam que os “coitados” estão numa fase ruim, culpam-se por tê-los irritado. Onipotentemente acreditam que vão domar sua fúria.
Há mulheres na vida dos legisladores que impõe recuos às liberdades femininas conquistadas. Qual o papel delas na tolerância com a violência que as fere e extermina? Esses homens têm mães, esposas, filhas, netas, sobrinhas, colegas, amigas e eleitoras. O primeiro machismo a ser vencido é o das próprias mulheres. São muitas as que ainda reconhecem no lugar da mãe a essência da feminilidade e na construção dos poderes do seu menino sua máxima realização. Seus homens só se comportarão como adultos no dia do ocaso da misoginia feminina.
Eu também!
Passamos a noite no ballet das cobertas, num strip-tease de arrebato, mais ansioso que sensual, sendo despertadas por um cérebro sacana quando caímos em sono profundo. O rendimento baixa, o sutiã aperta e temos ataques de comer doce, justo quando engordamos até com chuchu.
A atriz Fernanda Torres teve a coragem de comentar em sua coluna na Folha (25.09.2015) que a menopausa havia chegado, anunciando-se com as cornetas da insônia e das ondas de calor. “Temo tocar no assunto e virar porta-voz de um fenômeno vivido em sigilo pela maioria absoluta das mulheres”, escreveu. Ela sabia que estava mexendo num vespeiro e estou fazendo exatamente o que ela tentou evitar, mas seu gesto abriu precedentes para mulheres menos notórias dizerem: eu também!
Nascer com útero e ovários é ser apresentada desde a puberdade à arbitrariedade dos hormônios que fazem do corpo um relógio, um calendário. Somos regidas por uma sucessão de eventos tanto previsíveis quanto mutantes, tão infalíveis quanto inquietantes em sua ausência. Mensalmente, temos que posicionar-nos frente à fertilidade. A cada aniversário o dilema da maternidade se renova, levando em conta que ela é datada. É uma negociação tensa na qual os desejos e o organismo jogam cada um com sua mão de cartas. Na meia idade, a temida decadência do corpo que lota academias, consultórios de plásticos e dermatologistas, aparece junto com o fantasma de deixar de ser mulher. Por isso todas envergonham-se silenciosa e solitariamente. Fernanda se “surpreende o quanto a menopausa se mantém velada, secreta”.
Conheço bem esses sentimentos, vivo com eles discretamente há alguns anos. Passamos a noite no ballet das cobertas, num strip-tease de arrebato, mais ansioso que sensual, sendo despertadas por um cérebro sacana quando caímos em sono profundo. O rendimento baixa, o sutiã aperta e temos ataques de comer doce, justo quando engordamos até com chuchu.
Há formas químicas de amenizar esses contratempos, além das vantagens de uma vida saudável, que melhora sensivelmente o quadro. Mas não viraremos atletas e ascetas, com um sorriso nos lábios, só porque a menopausa aconteceu. Os vaticínios então são os piores: anuncia-se o ressecamento de tudo e principalmente do desejo sexual. Não é o que dizem as mais corajosas, dispostas a reconhecer seus desejos livres da pressão social do crescei e multiplicai-vos.
Aos homens maduros têm sido dada a opção de sair dessa uivando, lobos encanecidos. Movidos à pílula azul da ereção eterna, saem em busca da jovem caça que lhes devolva a jovialidade. Para as mulheres, parece que o jogo acabou a não ser que se fantasiem de igualmente patéticas Barbies estorricadas. Ao contrário, é a hora de seguir em frente, aproveitando que junto às golfadas de calor costuma vir uma onda de liberdade. Algumas rodadas da vida, bem ou mal, já foram jogadas e algo, bem ou mal, se aprendeu. Ainda somos suficientemente jovens para novas aventuras e já, espera-se, menos ingênuas e fantasiosos. Podemos dar umas gargalhadas juntas, enquanto nos abanamos.
O anel que tu me destes
A premissa do desapego é a descoberta daqueles pertences com os quais fabricamos uma identidade.
Herdei um anel de madeira. Ele foi feito pelo meu tio-avô em uma macabra oficina onde que lhe coube trabalhar. Por sua vitalidade, na hora de repartir os deportados entre a vida e a morte, Ödon foi destinado aos trabalhos forçados em Auschwitz e conseguiu sobreviver. A mesma sorte não tiveram meu avô e meu tio, irmão de meu pai.
Ödon furtivamente entalhou esse único pertence pessoal, um tesouro tanto mais valioso pois desafiava o castigo da impessoalidade, que transformava pessoas em números, sem cabelos nem distinção alguma entre si. A despersonalização era uma das formas utilizadas no campo de concentração para matar a identidade antes do corpo. Como fabricou e salvou o anel nunca soube, mas antes de morrer ele o presenteou a meu pai, seu sobrinho.
Os colegas da instituição psicanalítica à qual pertenço estão criando um museu virtual onde as pessoas podem comparecer com um objeto que considerem especial e descrever sua importância. Nesse museu não haverá nenhuma presença física, só encontraremos histórias e imagens de objetos de relevância pessoal, de preferencia que tenham pertencido a alguém a quem a sociedade de alguma forma silenciou. Terei o privilégio de participar com esse anel.
Hoje falamos muito em desapego, um debate imprescindível em uma sociedade que vive produzindo lixo, cercando-se de objetos descartáveis comprados por compulsão. Como a identidade nunca foi tão frágil e avulsa, acabamos sentindo-nos representados pelo que possuímos. Cada um amontoa sobre si uma miríade de coisas através das quais espera se valorizar. O problema é que como nenhuma delas faz efetivamente uma marca, tornam-se obsoletas e vão para o lixo as inúteis tentativas de ser alguém por seu intermédio.
É fundamental saber descartar e dar-se conta da inutilidade do acúmulo. Isso passa também por escolher quais são nossos verdadeiros pertences. Os mendigos talvez tenham algo a ensinar: eles costumam ter sempre consigo uma trouxinha ou sacolinha que, aos nossos olhos, estaria cheia de lixo. Muitas vezes ela está mesmo, contém trapos sujos e jornais amassados, que somente possuem o significado de representar o único pertence daquele que é nada. Não é estranho que os que se sentem como um nada preencham sua trouxa com coisas que também são nada. Já os bebês, que ainda sabem ser pouca coisa, apegam-se fortemente a um trapo ou brinquedo encardido que é seu primeiro pertence pessoal.
Provavelmente, para Ödon, a construção desse anel fez parte de sua estratégia de sobrevivência. Encerrada sua longeva existência, em outro continente, uma descendente que ele nunca conheceu pessoalmente o escolheu para esse museu de objetos peculiares. Como ele, também tentarei deixar algo que possa ser usado pelas gerações futuras para contar uma história. “É interessante, como dentro do essencial, recordo principalmente de pequenos detalhes que ganham importância e se fixam na memória”, escreveu Ödon a meu pai.
(Coluna da Revista Vida Simples do mês de agosto de 2015)
Somos todos estrangeiros
Quem discrimina arranja no grito e na violência um lugar para si.
Volta e meia, em nosso mundo redondo, colapsa o frágil convívio entre os diversos modos de ser dos seus habitantes. Neste momento, vivemos uma nova rodada dessas com os inúmeros refugiados, famílias fugitivas de suas guerras civis e massacres. Eles tentam entrar na mesma Europa que já expulsou seus famintos e judeus. Esses movimentos introduzem gente destoante no meio de outras culturas, estrangeiros que chegam falando atravessado, comendo, amando e rezando de outras maneiras. Os diferentes se estranham.
Fui duplamente estrangeira, no Brasil por ser Uruguaia, em ambos países e nas escolas públicas por ser judia. A instrução era tentar mimetizar-se, falar com o menor sotaque possível, ficar invisível no horário do Pai Nosso diário.
Certamente todos conhecem esse sentimento de sentir-se estrangeiro, ficar de fora, de não ser tão autêntico como os outros, ou não ser escolhido para o que realmente importa. Na infância tudo é grande demais, amedronta e entendemos fragmentariamente, como recém chegados. Na puberdade perdemos a familiaridade com nossos familiares: o que antes parecia natural começa a soar como estrangeiro. Na adolescência sentimo-nos estranhos a quase tudo, andamos por aí enturmados com os da mesma idade ou estilo, tendo apenas uns aos outros como cúmplices para existir.
O fim desse desencontro deveria ocorrer no começo da vida adulta, quando trabalhamos, procriamos e tomamos decisões de repercussão social. Finalmente deveríamos sentir-nos legítimos cidadãos da vida. Porém, julgamos ser uma fraude: imaginávamos que os adultos eram algo maior, mais consistente do que sentimos ser. Logo em seguida disso, já começamos a achar que perdemos o bonde da vida. O tempo nos faz estrangeiros à própria existência.
Uma das formas mais simples de combater todo esse mal-estar é encontrar outro para chamar de diferente, de inadequado. Quem pratica o bullying, quer seja entre alunos ou com os que têm hábitos e aparência distintos do seu, conquista momentaneamente a ilusão da legitimidade. Quem discrimina arranja no grito e na violência um lugar para si.
Conviver com as diferentes cores de pele, interpretações dos gêneros, formas de amar e casar, vestimentas, religiões ou a falta delas, línguas, faz com que todos sejam estrangeiros. Isso produz a mágica sensação de inclusão universal: se formos todos diferentes, ninguém precisa sentir-se excluído. Movimentos migratórios misturam povos, a eliminação de barreiras de casta e de preconceitos também. Já pensou que delícia se, no futuro, entendermos que na vida ninguém é nativo. A existência de cada um é como um barco, no qual fazemos um trajeto ao final do qual sempre partiremos sem as malas.
A casa do gigante
Vendo o mundo desde diversos pontos de vista nos tornamos mais sábios, ou menos truculentos…
Gosto de imaginar uma espécie de instalação chamada “A casa do gigante”, um lugar para ser visitado pelos adultos. Seria como uma casa normal, ou mesmo só um cômodo dela, onde todas as superfícies estivessem acima da altura dos nossos olhos. O único modo espiar em cima delas seria subindo em uma cadeira muito alta, que tenha que ser escalada. Ali nos sentiríamos tão pequenos em relação ao ambiente que em nosso horizonte apareceriam somente pernas, sapatos, barras de saias e os sons das vozes viriam de cima, entrecortados, confusos. Se pudéssemos viver isso, nem que seja em uma experiência sensorial, lúdica, talvez nos tornássemos mais capazes de compreender as crianças.
Isso foi antes de conhecer o incrível trabalho do escultor australiano Ron Mueck e seus gigantes hiperrealistas. Ele cria figuras humanas enormes, representando gente normal, fazendo coisas corriqueiras, ao lado das quais uma pessoa crescida sente-se do tamanho de uma criança de dois anos, no máximo. As exposições de sua obra atraem multidões, acredito que em busca da sinistra sensação de viverem algo que um dia já nos foi familiar.
O mundo ao qual as crianças são apresentadas não é do seu número, o que as leva a um modo peculiar de cognição. Elas constroem suas teorias a partir do que literalmente lhes cai de cima. Recolhem migalhas de cenas, de frases, observam o sapateado, o movimento das mãos e a sonoridade das vozes sem entender com exatidão o que se passa. Tentam decifrar a mímica facial, a linguagem dos gestos, prestam atenção em tudo, embora estejam brincando e parecendo alheias. Vão montando suas hipóteses, fazendo suas colagens, entendendo a seu modo quem são seus adultos, quais vínculos eles têm entre si e em relação a ela.
Como os bichinhos, seus personagens prediletos, elas também ficam de fora e estão mais próximas do chão. Por isso, quando era pequena gostava de “morar” numa casinha feita com um pano jogado em cima de uma mesa, um lugar que me acolhia por ser na minha medida.
Falar com uma criança exige do adulto uma atitude que será decisiva para o tipo de relação que estabeleceremos com ela. Se falarmos do alto, olhando para baixo, estamos optando pela distância, pela hierarquia. Ao levantá-la, podemos içá-la, como se fossemos um guindaste e ela se entregará passivamente como um saco de batatas. Por outro lado, é possível oferecer nosso corpo e braços de forma a que ela suba, embarque ativamente, e possa em nossa companhia contemplar a paisagem do alto. Por último, se nos sentarmos ou acocorarmos, encontraremos seus olhos e partilharemos seu ponto de vista.
Na relação entre gigantes e pequeninos, há uma dança de corpos, um jogo de olhares, um esforço de encontro que precisa vencer o desajuste de tamanhos, de visões. Frequentemente nos surpreendemos com as coisas incríveis que as crianças dizem e ficamos abismados com sua esperteza. É que desde sua perspectiva acabam percebendo sutilezas, enxergando o que nossa percepção viciada deixa escapar. Quando as diferenças são respeitadas, todos os envolvidos aprendem.
(publicado na revista Vida Simples do mês de julho)
Desventuras do Jacozinho
os homens podem controlar o mundo, menos seu membro mais ilustre.
“Por que não consigo controlar algo tão próximo, tão pequeno e tão simples?” O leitor não precisa ficar perguntando-se quem ou o que é esse pequeno David, capaz de levar qualquer Golias à nocaute: é o pênis. Aliás, vulgo “Jacozinho”, para seu dono, o escritor Jacques Fux, autor do recém lançado Brochadas (Ed.Rocco).
O prazer feminino é considerado um mistério. O clitóris, parte do corpo apenas devotada ao prazer, também é um assunto tabu e conta com um milésimo das denominações dedicadas ao órgão sexual masculino. A dificuldade surge quando o orgasmo delas é comparado com a mecânica da ejaculação, que pareceria tornar tudo visível e simplório. Pois é, mas o Jacozinho não pensa bem assim, ele tem ideias peculiares sobre com o que e quando sentir-se motivado. Seus mecanismos de prazer também são enigmáticos para o homem, o desejo parece assumir vida própria pela via da ereção ou da impotência, tanto que diz-se que o homem pensaria com a cabeça de cima diferente da de baixo.
“Nós homens, coitados, atados a imagens pornográficas, fetiches edipianos e a bundas e peitos, não conseguimos nem nos aproximar das inúmeras possiblidades de prazer feminino”, queixa-se Fux. Porém, nada disso seria uma grande questão se Jacozinho não negasse fogo quando bem entende, obrigando seu homem a tentar desvendar o que os move, a ambos.
O autor resolve enviar cartas para perguntar às mulheres, tanto àquelas com quem brochou, quanto às que lhe produziram notória motivação sexual, mas que o deixaram, sobre o que aconteceu entre eles. As respostas, ficção com tintas de realidade ou vice-versa, dão oportunidade para que essas ex-parceiras acusem a inadequação de Jacques, como escritor e como amante.
Masculinidade e virilidade não são a mesma coisa, tanto quanto Jaques e Jacozinho não pensam em uníssono. O fenômeno da ereção levou tanto tempo para ser compreendido quanto o prazer feminino. Eram ideologicamente mais aceitáveis as teorias que associavam a virilidade à tonicidade de um corpo musculoso, rijo e guerreiro, e a pujança masculina reduzida apenas à existência de um membro e sua capacidade de penetrar.
Curiosamente, a função erétil também depende do relaxamento da musculatura lisa do pênis, ao contrário da tensão que seria considerada mais máscula. Estamos aqui no território perigoso do descontrole, da entrega, do desejo e da neurose. Além disso, a demanda contemporânea pede ao homem uma ereção duradoura, capaz também de garantir o prazer alheio. Alheia mesmo é a vontade do Jacozinho. Simone de Beauvoir disse que não se nasce mulher, torna-se. Para os que chegaram ao mundo com um pênis, duro mesmo foi constatar que não se nasce viril, e nem sempre torna-se.
Os gritões da caixa de areia
A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade.
Minha avó húngara costumava observar que aquele que grita é o que suspeita não ter razão. Ela me dizia isso para que eu evitasse a deselegância absoluta de argumentar na base do volume da voz. A fala mansa, o raciocínio ponderado e o argumento pensado, eram, para ela, expressão de inteligência. Tinha horror de gente alterada.
Ela estava em posição adequada para falar de exageros, de discursos fanfarrões, pois viu a ascensão do nazismo acontecer e, estarrecida, constatou a massiva adesão popular às bravatas de indignação mais caricaturais. Os oradores performáticos e exaltados eram os “cidadãos de bem”, pedindo a eliminação dos culpados por macular a sociedade ideal que eles presidiriam. Por azar, ela pertencia à categoria dos ratos a serem exterminados. Sobreviveu reclusa num porão durante toda a Segunda Guerra, na qual perdeu sua família, exterminada em Auschwitz. Lá fora, os nazistas e seus asseclas vociferavam o quanto precisavam vingar sua pátria reduzida ao descrédito. Em vez de tentar uma saída econômica e diplomática, a indignação do povo alemão encontrou um judas para malhar e na guerra seu caminho. Não estamos, creio e espero, à beira do fascismo da mesma maneira, embora tapados de ódios e indignações.
A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade. As crianças bem pequenas, por exemplo, podem puxar o cabelo de outro bebê e chorar como se eles mesmos tivessem sofrido a agressão. Isso não é artimanha, é confusão de limites. Quando estas bordas, no sentido de onde termino eu e começa o outro, ficam tênues, é que as mordidas na caixa de areia começam. A maior parte da violência provém desse tipo de disputa territorial que está nos primórdios da identidade, essa frágil autoimagem que congrega o pouco que sabemos de nós mesmos.
Nas crises econômicas as tempestades raramente abalam os muito ricos, mas a classe média vive suas benesses como um barquinho pequeno e inseguro. Seu poder aquisitivo oscila e, decorrente disso, seu status social é mais frágil. Quando naufragam os privilégios daqueles que não os têm garantidos, os gestos de desespero são esperáveis. Nestes casos, é o prestígio e, portanto, um dos fundamentos da identidade, que ameaça se afogar. Ninguém quer parecer-se com os pobres, cuja miséria emoldurava a riqueza alheia.
Neste momento de crise, os limites que separam indigentes de pobres, e remediados de médios ficaram mais tênues. É hora, portanto, de gritar, morder o coleguinha e perder a elegância. Afinal, se não sabemos mais o que somos e, principalmente, quanto valemos, alguém deve ser responsabilizado, aos gritos, por isso. Cortem-lhe a cabeça!
Apostas
Até que ponto podemos apostar em algo, num projeto que não vinga, numa escolha amorosa equivocada?
Quem entende de matemática (o que não me inclui) costuma dizer que ganhar na loteria é tão improvável que os sorteios só sobrevivem graças à ignorância dela. Bom, esse é o caso da maioria das religiões: rebeldes à comprovação, os fiéis insistem em acreditar no impossível. A visita a uma agência lotérica é um ato profano de fé, tanto que costumamos dizer que estamos “fazendo uma fezinha”, rezamos por uma vitória da esperança sobre a realidade. Aliás, se o otimismo dependesse dos fatos estaria extinto.
Por uns quarenta dos seus oitenta anos de vida, minha avó apostou no mesmo número de loteria, comprava o bilhete junto com um parente mais jovem. Quando ela se foi, ele seguiu com esse hábito até seus últimos dias. Confrontado com a decisão de parar ou continuar com o que já era uma birra paterna, seu filho, mesmo amedrontado, parou de comprar o número. O temor que os movia era que no mesmo dia em que resolvessem abandoná-lo ele sairia, como se existisse uma memória vingativa entre uma rodada e outra de apostas. Não sei se afinal o endemoniado prêmio saiu para esse número, tenho receio de investigar.
Temos esse hábito em relação a apostas menos lúdicas e levianas do que um bilhete de loteria. Quantas vezes nos pegamos insistindo num relacionamento fracassado, num negócio falido, numa escolha equivocada? Esses investimentos amorosos ignoram os dados da realidade, apegam-se às mínimas amostras de que vale a pena persistir. Eles se baseiam no mesmo temor da minha avó, de que outro, menos “merecedor”, ganhe a aposta. Junto de outro par aquela pessoa de quem já não estamos gostando pode se revelar exatamente o que queríamos que ela fosse. Tememos que se embeleze, torne-se mais romântica, responsável, bem sucedida, sensível, corajosa, criativa. Alheia aos nossos investimentos, ela prosperará assim que deixarmos de apostar. O mesmo vale para negócios e outras escolhas infelizes. Então o erro não estava no amado, no negócio, no projeto, o erro éramos nós?
Nesse caso, insistir no erro não é somente burrice, é uma espécie de aposta delirante no nosso desejo. É difícil acreditar que o destino, essa entidade que governa o acaso, seja tão rebelde à nossa vontade. Afinal, esse não era o segredo – como dizem algumas fórmulas de auto-ajuda – querer muito e persistentemente?
A admiração que sentimos por aqueles que levaram seus desejos às últimas consequências é coerente. Os perseverantes revelam que não basta querer, é preciso trabalhar em prol do que se almeja. Por outro lado, a obstinação supersticiosa em acreditar na supremacia da nossa vontade sobre o destino é aprisionante. Muitas vezes o segredo está em desistir, escolher outro número na vida no qual apostar. Esse ato em geral requer muita coragem e o mais difícil: a sinceridade consigo mesmo de admitir que também fazemos escolhas erradas, e que nossa vontade pode não fazer a mínima diferença.
(publicado na Revista Vida Simples de junho 2015)