Comportamento
Exibir por:

Imposturas

É mais fácil falar do que não vivemos, os verdadeiros protagonistas da história são pouco eloquentes.

Rachel Dolezal, dirigente da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor preferia ser considerada negra, em vez de afrodescendente. Essa precisão linguística só chamou a atenção depois dela ter sido denunciada como “falsa negra” pela própria família de origem europeia.

Tania Head, famosa sobrevivente do 11 de setembro não existe. Alegava ter fugido da torre sul enquanto seu noivo David morria na torre norte. David tampouco existia. A verdadeira nem estava em Nova York no dia da tragédia.

Binjamin Wilkomirski escreveu Fragmentos, livro muito premiado e traduzido em várias línguas, narrando sua experiência de criança judia nos guetos da Polônia e nos campos de extermínio. O autor era um suíço que nunca saiu seu país durante a infância. No auge do seu sucesso, a BBC filmou o encontro dele com uma mulher que teria sido sua parceira de infortúnios. Apesar do evento meloso, ela era na verdade uma americana que tampouco esteve nos lugares onde teria sido supliciada.

Os relatos falsos são mais dramáticos e explícitos do que os dos verdadeiros sobreviventes. Basta observar a elegância enxuta das memórias de Primo Levi, por exemplo. O problema é que esses mitômanos, mentirosos por delírio ou mau-caratismo, desvirtuam o importante depoimento dos verdadeiros protagonistas da história. Aliás, pela minha experiência, estes últimos não costumam ser muito eloquentes.

Quem viveu episódios traumáticos guarda em relação a eles uma reserva cheia de dor, auto-recriminações e duros questionamentos sobre a condição humana. É por isso que minha tia-avó respondeu, quando a questionei na infância, que o número tatuado em seu braço, resto indelével do campo de concentração, era “um telefone que ela não podia esquecer”. Nem mais uma palavra. Nunca mais.

A presença de uma falsa afrodescendente nesse grupo de impostores depõe do caráter igualmente traumático da escravidão, cuja memória se atualiza na desigualdade racial que insiste em sobreviver. Essas falsas vítimas, que assumem uma identidade marcada pelo sofrimento alheio e lhes emprestam uma narrativa fantasiosa, são porta-vozes dos sentimentos de uma maioria culpada pelos feitos de seus antepassados. É por isso que seus embustes têm sucesso.

É inacreditável quão longe chegamos em termos de frieza, de crueldade. E se fossemos nós nesses momentos, teria sido nobre ou covarde nossa posição? Depois da escravidão, extermínios e guerras, nossa história é uma ferida aberta. A mentira das falsas vítimas, assim como os discursos dos fascistas e racistas que negam a legitimidade dos fatos, depõe da dificuldade de lidar com ela. O passado nos questiona e o presente ainda pede que nos posicionemos. É hoje, não ontem, que podemos mostrar de que fibra somos constituídos.

Velhos libidinosos

A quem interessa livrar-se do sexo tão cedo?

Um fazendeiro americano octogenário foi preso por assédio sexual. Não se trata de um vovô tarado, como tantos que destruíram vidas de netas e crianças da vizinhança, mas de um marido que insistiu em fazer sexo com a esposa doente. O casal vivia um amor tardio, ambos viúvos conheceram-se no coral da igreja e nos últimos anos constituíam um par romântico. Infelizmente, ela ficou com Alzheimer e por isso a relação entre ambos foi considerada criminosa.

Os especialistas de acusação, contratados pela filha, e da defesa obviamente divergem. Os primeiros dizendo que a demência faz o encontro deles equivaler-se ao estupro de uma criança por um desconhecido; já para os que não o culpam, o desejo erótico, assim como a fome, é uma busca de satisfação que a doença não suprime e pode inclusive ser benéfica.

Nesses quadros a memória não desaparece de forma contínua, há lampejos de reconhecimento. Quem convive com um desses doentes que se perdem de si mesmos, percebe que alguns laços afetivos sobrevivem, assim como rudimentos de carinho e alegrias. De fato, não sabemos se aquele ato sexual foi um abuso repulsivo ou o patético resto de um romance, mas não nos surpreende que o caso tenha sido rumoroso.

A polêmica em torno do casal de senhoras maduras e gays que recentemente trocou um beijo nas telas brasileiras, onde as telenovelas são formadoras de opinião, fala do mesmo fenômeno. Certamente dois tabus foram rompidos naquela cena, mas pouco se falou do preconceito contra a sexualidade dos idosos.

Por que preocupa-nos tanto manter o desejo erótico tão delimitado? Beijos, carícias, olhares e juras de amor são controlados não somente no que diz respeito aos clichês de gênero, mas também aos parâmetros do tempo. Acredita-se que o desejo dure enquanto temos corpos férteis e bonitos. A imagem de velhos na cama, com suas peles enrugadas e seus cabelos brancos, beijando-se, penetrando-se e trocando olhares lânguidos é tão inadmissível  para o senso comum quanto a de pessoas do mesmo sexo protagonizando a cena. Talvez até mais, por quê?

Os desejos sexuais, prescritos por lei ou não, são como dizem os advogados de defesa do senhor, uma carga vital importante e persistente. Não vivemos sem comer e a gula é admissível ao longo de toda a vida, mas o sexo sempre foi considerado optativo e temporário. A experiência erótica ocupa muito mais espaço imaginário do que real: é tão rocambolesco, neurótico e cansativo o roteiro de fatos e fantasias que envolve a vida sexual, que espera-se que um dia acabe. Soa até tentadora a ideia de que todo esse imbróglio seja finito, de que também disso se aposente. Então chegam esses velhos a dizer-nos que não haverá descanso, que seguimos até o fim à mercê dos impulsos eróticos. Assim é, aproveite se quiser e puder.

A cortesia amorosa do cafezinho

Regras da cortesia amorosa: ao contrário do que dizem, não vivemos uma época de vale-tudo no sexo e vale pouco no amor.

Para os mais apocalípticos vivemos tempos selvagens, onde o sexo tornou-se um açougue e a intimidade afetiva está extinta. A relação sexual casual, impessoal, sem palavras, teria afogado em gozo as verdadeiras trocas. De fato, por vezes é assim e não significa nada grave para os envolvidos. Mas, só para complicar esse raciocínio alarmista, temos uma instituição, representante do recato e da civilidade: o cafezinho, um encontro curto e marcante, como a bebida que o nomeia.

Suponhamos que duas pessoas se conhecem, pode ser na internet, num jantar de amigos comuns, na aula de inglês, na academia, trocaram telefones na parada de ônibus, num sarau, num encontro de meditação ou entre as estantes do supermercado. Podem ter havido alguns beijos ou até uma transa na saída de uma festa, talvez meio alterados pelo álcool. Porém, nada nesses encontros prévios, nem mesmo o sexo, significou qualquer autorização para a intimidade, nem para ilusões ou expectativas sobre a relação. Até que se tome um cafezinho.

Ele será marcado em um lugar público, na impessoalidade do shopping ou em um lugar mais simpático. Essa proposta já diz algo dos envolvidos. Aí começam as pistas, a partir das disponibilidade de horários, das partes da cidade com as quais se tem intimidade, do meio de locomoção. Para muitos casais que se iniciaram virtualmente há o desafio de ver-se pela primeira vez e, principalmente, do efeito causado pela presença do outro.

O desejo erótico responde a variáveis muito peculiares, lapidadas com nossa identidade. Chegar de bicicleta ou num carrão, ter uma aparência certinha ou desalinhada, frágil ou possante, são dados que podem ou não coincidir com a cartilha que regra a excitação de cada um. A sociedade é cheia de clichês sobre a sedução, mas os desejos não são assim tão estereotipados. Ainda bem. Aliás é bem comum que alguém se surpreenda supondo que seria lógico gostar de uma pessoa assim, mas só consegue sentir desejo sexual por pessoas assado.

Então, nossa dupla de candidatos ao amor se encontrará para o dito cafezinho. Um café pode resultar em amor, amizade ou na conclusão de que não há o que fazer juntos. Nesse último caso, em geral partem sem ressentimentos, pois o cafezinho é uma aposta mínima, não será uma saída vexatória. É diferente de um convite para jantar ou para ir um cinema, que são um passo adiante.

Na mesa do cafezinho, o destino está depositado em tudo aquilo que dizem ter desaparecido: as palavras, os olhares, as delicadas sutilezas do encontro e da erótica. Seguimos tendo nossos métodos de cortesia amorosa. A liberdade sexual é contemporânea do cafezinho.

Filhos-bonsai

Como criar filhos sem fazer deles Bonsais, sem reproduzir o cuidado e as podas que atrofiam e impedem o crescimento.

Meu marido tem um jardim de cactos e suculentas. Ele parece ter uma espécie de identificação com sua estética monstruosa. Mário ama dragões e todo tipo de animal que pareça, mesmo que remotamente, pertencer a uma fauna fantástica, assim como esses seres espinhudos e retorcidos. Aliás, ele costuma dizer que “cria” suas plantas, seus monstrinhos verdes.

Mantém-se curioso em relação a todo o reino vegetal, adora pesquisar suas classificações, e só há um tipo de planta que lhe produz mal-estar: o bonsai. Tem pena dessas árvores, que lhe parecem atrofiadas. Bem sei que os praticantes dessa arte de origem oriental consideram improcedente o sentimento daqueles que julgam que os bonsais seriam árvores torturadas para permanecerem minúsculas.

Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro são as três ditas tarefas a realizar antes de morrer. Porém, discordo de que se possa arrolá-las como realizações possíveis, já que não acho que possam ser concluídas. Ter um filho nunca é um gesto acabado, é preciso criá-lo e ficar negociando com o jeito como ele se inventa. Podemos ser semente e terra, mas não passamos de ponto de partida. Escrever um livro é o começo de um vício. Cada obra já sai da editora como mais uma tentativa fracassada de dizer algo que nos escapa, dali a necessidade do próximo. As árvores, bom, crescem por conta e dependem muito do ambiente.

Mas como seria escrever um livro e criar um filho ao modo bonsai? Nossa necessidade de propor que um filho estude, faça esportes, realize tarefas enfadonhas e se esforce para aprender, reduz sua liberdade e o tempo de brincar. Educar lembra os suportes de arame que são também usados para que os galhos do bonsai se direcionem equilibrada e graciosamente.

Para orientar um filho que possa crescer é preciso fazer algo diferente de uma poda que o atrofie, que o deixe como um frágil e dependente bonsai. Envolve suportar que seus galhos, no sentido de sua identidade, suas escolhas, seus dons e também suas humanas imperfeições, assumam formas imprevistas. Ao crescer se empalidece os traços e intenções dos pais. Quem escreve um livro também sente que a autoria lhe escapa, tem-se pouco controle sobre o estilo, o tema escolhido, o tamanho em que ele vai ter.

Não é possível deixar que livros, filhos ou árvores plantadas cresçam selvagemente, eles precisam de cuidados e até de podas para florescer. Por outro lado, precisam tornar-se “traidores” dos seus autores, sejam eles pais ou escritores. Eles se avolumam na arte de ter vida própria, seu destino os transcende. A criatura sempre escapa do criador.

Para controlar uma cria, só mesmo reduzindo-a a ser um bibelô, a imitação de uma árvore grande, de uma pessoa crescida, de uma obra prima. Seres-bonsais, filhos perfeitos em representar nossos ideais, não são viáveis para enfrentar os ventos, o sol e a chuva do mundo lá fora. Não passam de bibelôs, troféus na estante familiar e, esses sim, me produzem muita tristeza.

Tocando a vida juntos

O verdadeiro convívio abala o narcisismo herdado da primeira infância: a capacidade de tocar a vida juntos é prova de uma maturidade nem sempre alcançada.

Todas as pessoas solitárias,

de onde elas vêm?

A que lugar elas pertencem?

Eleanor Rigby/Beatles

Juntos– simples assim – é o título do livro de Richard Sennett que inspira a jornada deste ano do Fronteiras do Pensamento. O autor, que foi músico de formação clássica antes de trabalhar nas teorizações com que hoje nos brinda, parece ter aprendido muito no trato com os instrumentos e com a experiência de tocar em conjunto.

Seu mestre na música certa vez disse: – Ouçam, não leiam! Propunha que os músicos escutassem uns aos outros como prioritário à leitura solipsista da partitura. Não há uma forma única de interpretar as notas que aparecem indicadas, a sintonia do grupo depende de que se estabeleça um diálogo, sonoro mas sem palavras, entre as opiniões de cada um a respeito da expressão daquela melodia. O resultado será fruto da colaboração e das diferentes referencias pessoais, do estilo, da cultura de origem, assim como da tendência de cada um à suavidade ou à estridência.

Nunca fomos tantos e jamais tão sós. Talvez por isso, e não somente pelo prazer que nos proporciona, o sexo é uma obsessão contemporânea, pois trata-se de experiência obrigatoriamente partilhada. A vida erótica sempre envolve mais alguém, nem que seja na imaginação, e essa outra criatura nos confunde e assusta até mesmo na fantasia. Quanto aos vínculos menos carnais, as redes sociais, tentativa virtual de recuperar o perdido sentimento de viver em comunidade, também são sintoma disso. Elas produzem uma comunicação frenética e igualmente pobre, onde impera o que Sennett chamou de “tribalismo” – a solidariedade entre aqueles que se parecem e agressão aos que são diferentes.

O verdadeiro convívio, esse dom tão esquecido, necessário para levar uma tarefa adiante, é como o dos músicos: obriga a escutar as peculiaridades de cada um e as diferenças para afinar o tom com os outros. Aliás, “Juntos” poderia muito bem ter se chamado “Outros”, esses conterrâneos que tratamos como alienígenas. Eles costumam atrapalhar muito toda a onipotência que herdamos da primeira infância, aquele pensamento mágico no qual fantasiamos que o mundo dobra-se à nossa vontade

Na recomposição do nosso fragilizado tecido social, avariado pelo egoísmo, pela desigualdade e pela violência, o autor sugere que sejamos empáticos. Ele contrapõe esse estado de espírito às atitudes aparentemente solidárias, onde nos dirigimos ao outro que precisa de compreensão ou ajuda pensando “sei perfeitamente como você se sente”. Isso é falso, podemos deixar que os outros nos envolvam e inquietem, mas nunca compreenderemos perfeitamente o que eles sentem ou pensam. Já a atitude empática passaria mais por “estou atento a você”.

Essa escuta curiosa, que nos contamina com os questionamentos e inseguranças que vêm dos outros, é velha conhecida dos psicanalistas. Ao contrário do que se pensa, de que esses profissionais da escuta sempre sabem o que está por trás do que dizem os pacientes, a verdade é que ignoram do que se trata e que rumo vai tomar. Somente graças a essa humildade é possível descobrir novos caminhos para velhas questões, descobrindo conjuntamente alternativas às soluções meio tortas e dolorosas que cada um foi improvisando sozinho.

Curiosamente, gostamos de ver um grupo trabalhando afinado e aproveitando os diferentes estilos de cada um, mas apenas na ficção e principalmente no que diz respeito ao mundo do crime. No vínculo entre ladrões, que Sennett chamou de anjo sombrio da cooperação, o que nos cativa são os grupos que se unem para usurpar e seu trabalho não propriamente constrói algo. Como se vê, sabemos o valor da tarefa partilhada que nos torna criativos e eficientes, mas desenvolvemos uma perigosa urticária a tudo aquilo que é útil e construtivo. A rica e desafiante experiência da colaboração entre aqueles que são diferentes serve para fazer assaltos bem sucedidos, mas também para a criar e descobrir, para a arte e a ciência. A vida é a arte do encontro, cantava Vinícius, a possiblidade de fazer algo juntos, acrescentaria Sennett.

(publicado no Caderno Especial do Fronteiras do Pensamento 2015)

22/05/15 |
(0)

Ócio não criativo

A febre dos livros de colorir evoca o direito das crianças acamadas, no passado, de ficar quietas e obsoletas.

Na minha infância ficar doente não era tão mau negócio assim. A convalescença era um tempo de regalias e uma boa dose de atenção extra. Claro, não valia se fosse algo grave, que significasse preocupação, hospital ou, o pior de tudo: injeção. Tínhamos sarampo, varicela, rubéola, caxumba. Pegávamos tudo, pois não havia vacina para a maior parte delas. Quando um irmão, parente ou amigo aparecia doente, éramos levados para “pegar de uma vez”, essa era a única forma de ficar imunizados. Nas famílias numerosas essas doenças faziam tantas vítimas quanto crianças houvesse na casa. Um amigo meu conta que uma das suas maiores tristezas era de que ele nunca pegava nada, sentia-se privado das vantagens dos doentes.

A prescrição de repouso era coisa séria, tínhamos que ficar deitados, de pijama, durante dias a fio. Para nos distrair, além da permissão para ver um pouco mais de tevê, haviam as revistinhas e os livros para colorir. A comida, embora em geral parente da canja, tinha a enorme vantagem de ser na cama. Enfim, ficar doente era ser reis por uns dias, as coceiras e febres até que compensavam. Naquela época esse tratamento era excepcional: ser criança não era tão importante como hoje, em que se pensa na felicidade delas o tempo todo. A lembrança desses tempos de ócio e mimos está fortemente associada aos livros de colorir que, para minha surpresa, tornaram-se uma coqueluche (para manter-se no tema) entre os adultos. São publicações com títulos como Jardim Secreto, Floresta Encantada ou Jardim Encantado, com gravuras lindas, detalhistas, que exigem muita atenção, dias de trabalho e mão firme para serem preenchidas. Tentei comprar um desses e fui informada de que os milhares de exemplares estavam esgotados, aguarda-se uma nova tiragem.

Os livros de colorir não são criativos, não é preciso pensar. A escolha da cor é o máximo de desafio que eles requerem. Alguém criou esses jardins de traços para que pudéssemos habitar seus espaços vazios com nossas cores da infância. Talvez estejamos mesmo meio doentinhos, precisando de uma canja na cama e ficar parados sem culpa.

O bom daquelas doenças, em que éramos objeto de cuidados especiais, era o fato de que não havia culpa, pegava-se sarampo porque era o certo a se fazer naquele momento da vida. Agora, quando adoecemos, penitenciamos por estar cuidando pouco do nosso corpo: há de se fazer mais exercícios, prestar mais atenção na alimentação, organizar melhor nosso tempo para dormir mais e melhor. Estamos exaustos de tantos mais, sempre mais. Não estranha que tanta gente esteja optando por ficar com os lápis de cor na mão por dias, completando espaços em branco. Também quero.

Gêmeos: cobiçada semelhança

Por que somos fascinados por gêmeos?

Acho gêmeos idênticos fascinantes e mesmo os que não são diferentes, mas nasceram juntos, me parecem invejáveis. Nas gestações os cobiçava, além de que gosto de imaginar como seria ter tido filhos assim. Não creio que ninguém seja capaz de níveis tão profundos de cumplicidade quanto os ditos “vizinhos de útero”, mas igual me pergunto por que eles capturam meu olhar desse jeito.

A curiosidade que suscitam diz mais sobre os que nasceram sozinhos, do que dos gêmeos. Na verdade, corresponde a fantasias que temos sobre o amor perfeito. Sempre nos chateamos quando o outro, seja amado, parente ou amigo, revela o quanto nos desconhece, assim como que não nos escuta ou nos abafa. Achamos que se tivéssemos alguém que vivesse tudo ao mesmo tempo e nascesse com as mesmas armas, seríamos finalmente completos.

Tive duas colegas de jardim de infância que eram iguais, lindas, loiras, usavam grossas tranças e a mesma roupa. Nas fotos que ainda possuo aparecem como uma espécie de moldura, decorativas, equidistantes, tratadas como cenário. Poucos sabiam seus nomes próprios, tanto que não os encontro na memória. Atendiam por “gêmea”, a denominação as rotulava de metade de alguém. Os irmãos idênticos são objeto de um anedotário específico, muito mais imaginário que real. Há histórias de travessuras clássicas, trocando-se à vontade nas provas, nos encontros amorosos, criando truques para driblar a vigilância dos pais ou das escolas.

Eles de fato se entendem e é tocante a forma como se mimam. Acostumados a dividir colos, seios, aniversários e olhares, gêmeos complementam com mútua atenção os eventuais descuidos que possam ter sentido. Afinal, a cria humana costuma ser única, não chegamos ao mundo em ninhada. Porém, quem é pai ou irmão deles, testemunha o enorme esforço que eles fazem para construir uma identidade, quando tudo converge para a indiferenciação.

A imparidade, tantas vezes interpretada como falha no amor, vem bem. Eclipsados pelo egoísmo, ignoramos isso e passamos a vida buscando uma “alma gêmea”, alguém que nos ame como só nós mesmos seriamos capazes de fazê-lo. Santa ignorância: o “duplo”, na literatura não é uma figura romântica, é uma das representações do terror. Ver-se espelhado, mas numa imagem que se movimenta autônoma, alheia à nossa vontade, é assustador, irritante. Longe de ser belo, é sinistro e produz agressividade, tentativa de controle. Na ficção, quem encarou seu duplo não conseguiu controlar o impulso de supressão daquela cópia imperfeita. Não há narrativa literária em que ambos terminem vivos.

Sentimo-nos incompletos, mas não será o amor que nos curará dessa insuficiência: o outro nunca é a parte que nos falta, nem tampouco somos a dele. Não adianta parecer-se, suprimir as diferenças e a vida pessoal, fazer tudo juntos. Já nascemos chorões, reclamando uma ausência de aconchego que nunca deixaremos de  sentir. Pobres gêmeos, deve ser muito duro ter que arcar com esse olhar curioso, herdeiro do luto por essa metade inexistente

Ponto de vista

Olhar é uma arte.

No filme de Cortina de fumaça (1995), escrito e co-dirigido por Paul Auster, há um personagem, representado por Harvey Keitel, que é o dono de uma pequena tabacaria de bairro. Ele tem por hábito fotografar diariamente sua própria esquina, sempre na mesma hora e desde a mesma perspectiva, sem jamais falhar, ao longo de mais de 10 anos. Guarda essas imagens em álbuns, que registram as variações da constância.

Os lugares são como um rio, que nunca seria o mesmo pois as águas que contemplamos já estão de passagem. A paisagem também flui. Nas fotos desses álbuns revelam-se os detalhes sutis, somente perceptíveis aos conhecedores do cenário. Na contramão do olhar habituado, que no mesmo enxerga somente isso, neste caso a curiosidade se preserva.

Quando viajamos, contemplamos muito mais enigmas do que o cérebro tem condições de catalogar. Tampouco adianta fotografar, tive uma paciente que ao voltar de uma viagem, dessas excursões estilo sobe e desce de ônibus, trouxe para a sessão seu álbum de fotos (na época usava-se isso); indaguei sobre uma daquelas imagens e ela ignorava o que era. A explicação soava engraçada: “fotografei para olhar depois”. Quantas vezes fotografamos tentando reter algo do que nos escapa naquele excesso? Vã ilusão. O olhar do viajante é como o das crianças que em geral não decodifica a situação e não raro entende tudo errado.

História oposta é a da minha avó com sua janela que se abria para uma escola secundária. Já muito idosa, teve seus movimentos restritos, o que era bem difícil para uma senhora rueira. Pelo menos ela nunca perdia o espetáculo da hora da saída do colégio, pois já conhecia os jovens, os agrupamentos, os namoros. Para vários deles já tinha uma história em sua cabeça e inclusive algum apelido. Quando a visitava ela me chamava para partilhar seu hábito, me apresentava suas versões para aquelas vidas desconhecidas que faziam sua literatura visual.

A vantagem é que não há lugar imune à diversão dos olhos. Que o digam os antigos, os quais raramente se distanciavam do lugar onde haviam nascido. Conheciam seu território com uma intimidade que hoje ignoramos, o que é uma perda para nós. Todos gostam de exibir-se contando viagens incríveis, de preferencia a territórios exóticos, gabando-se de ter ido onde os interlocutores não foram. Dependendo da prosa do viajante, uma simples passagem pela mais parte mais descarnada e periférica de uma cidade, se bem contada, pode render uma história bem mais interessante do que uma excursão à selva africana. Esta última pode ser até, acredite, soporífera.

Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo, transcende a paisagem propriamente dita. Sempre teremos um ponto de vista, como o dono da tabacaria de Auster, desde onde o que poderia parecer igual tem chance de nos surpreender. A vida é uma história, nosso cérebro é um cineasta, os olhos a câmera, mas o pensamento tem que ser um diretor sensível. Da minha janela vê-se a cúpula de uma igreja visitada por pombas e gaviões.

Em defesa das trevas

A escuridão esconde segredos e belezas.

Nas noites da infância, costumava percorrer o corredor que conduzia ao banheiro na expectativa de encontrar um fantasma específico: o do meu pai, que morreu antes que pudesse conhecê-lo. Não havia noite em que eu não levantasse aterrorizada pela possibilidade desse encontro, mas na esperança de vê-lo ao menos uma vez. É na escuridão que moram nossos fantasmas imprescindíveis, mas também nela se escondem malfeitores reais e imaginários e, principalmente, os monstros das crianças.

Por vezes os pequenos têm terrores noturnos, não conciliam o sono paralisados pela sensação de veracidade das próprias fantasias ou pesadelos. Em função disso, muitos pais evitam contar histórias que possam alimentar esses temores. Tentando protegê-las, na verdade as estão privando de dar uma forma ao que ameaça. O desconhecido, aquilo que não tem uma narrativa que o contextualize ou carece de contornos definidos, em vez de medo produz angústia, que é o pior dos sofrimentos. Em todas as idades encontramos o hábito de dormir com alguma luz ou a televisão ligada. Só que a meia luz produz sombras muito mais assustadoras que o breu. Quem, numa noite de insônia ou ao adormecer, não enxergou a silhueta de um vilão em um cabideiro com roupas?

A escuridão é a morada do medo, mas também do encanto. Lembro de uma velha senhora que reclamava da luz elétrica, dizendo que a achava muito feia. Parece ranço de pessoa idosa, mas não é. Eclipsados pela praticidade das noites que parecem dias, esquecemos do valor das trevas. Excetuando alguns lugares e ocasiões em que a iluminação é uma arte, a luz preenche tudo, coloniza o espaço. São noites brancas, em que se suprimem os focos, as sombras e se apagam as estrelas.

Ao conduzir-nos pela casa utilizando uma luz manual, pode ser uma vela, lanterna, ou mesmo a luz emitida pelo telefone, tornamo-nos iluminadores. Somos como esses artistas que fazem a graça de uma peça ou de um filme através do uso da luz. Eles editam, dirigem e emolduram nosso olhar, vale lembrar que a luz só ressalta se tiver o contraponto da escuridão. Quando focamos à frente, o negrume fecha-se às costas, ameaçador. Então precisamos usar outros sentidos: o tato que percorre as paredes e adivinha o contorno dos objetos, a audição que adivinha presenças e mede distâncias. Na falta da luz desenvolvemos os dons de orientação dos cegos e dos morcegos.

Até hoje, com a desculpa do banheiro, caminho pela casa à noite. As trevas ainda me gelam a espinha, mas não consigo abrir mão de buscá-las. Quando o medo me supera lanço mão do interruptor, que com sua luz chapada, imensa, dissipa todos os temores e também com eles o mistério, a beleza.

Pedaço de mim

Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.

Por que os amores fracassados, as dores de corno, os abandonos, são tão prolíficos na canção, na poesia, tanto quanto ou, talvez, tanto mais do que a paixão? Porque o fim do amor é traumático. Ex-amantes são pedaços perdidos de nós, metades afastadas de nós. Levam consigo um destino que recusou-se a continuar, partem carregando em seus braços aqueles que deixamos de ser, aqueles que sonhamos juntos em tornar-nos um.

Ao rever o passado tendemos a sentir-nos trapaceados pelos próprios sentimentos. Como foi que me iludi tanto, como foi que escolhi tão mal? Repentinamente aquele que se desejou e amou torna-se um estranho e suspeitamos que o amor não passe de propaganda enganosa, um feitiço que uma vez dissipado revela alguém que nada vale aos nosso olhos.

Não creio que nos equivoquemos tanto. Por vezes no fim da história não se vive feliz nem para sempre: a gente se perde, ou mesmo escolhe caminhos que tornam-se incompatíveis, mas por certo alguma estrada, boa ou ruim, se percorreu juntos. Aquele a quem amamos não é uma pessoa imutável, ele também é resultado do casal que formou. Contemplá-lo, agora afastado de nós, é também ver o resultado disso. Se após o fim encontrarmos duas pessoas idênticas ao que eram, nesse caso a suspeita do engano se confirma: não houve relação, apenas ilusão.

Mesmo complicados os amores foram escolhas e deixam marcas no destino que não podem nem devem ser apagadas. Há músicas, cheiros, fotografias, gestos íntimos, cenários, que são oriundos daquele laço. Tudo o que vivemos intensamente nos modifica, portanto, somos também filhos dos amores que tivemos e deles ficamos órfãos quando acabam.

Um membro amputado deixa no corpo uma sensação de existência, há quem sinta dor num braço ou num pé que já não mais possui. Esses são chamados de “membros fantasma”. Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.

Pior do que suportar a perda daquilo que se sonhou e viveu juntos é encontrar no lugar do amor que se teve um buraco negro que nos traga. Já conheci esse desespero, já vi um olhar vazio aparecer num rosto em que antes me reconhecia, por isso sei que todo divórcio é de si mesmo. A sensação que o encontro com um ex-amor recente causa é de cair num abismo, é como se o corpo se dissolvesse.

Por um tempo, seremos pessoas fantasma, até que um dia, passando por um espelho, descobrimos que nossa imagem voltou a estar lá. Vampiros não se enxergam porque perderam todo o sangue próprio, precisam do alheio, é assim que nos sentimos quando separados: esvaziados. Aos poucos, felizmente a vida começa a pulsar novamente e podemos voltar a refletir uma imagem. Só que agora marcada pelos traços daquele olhar que uma vez escolhemos para nos refletir. Acabou, mas existiu.