Insanidades do destino
É possível criar uma Psicopatologia à la “Mynority Report”?
O recente episódio do copiloto que precipitou (propositalmente, até onde se sabe) o avião nos Alpes pode trazer um perigoso efeito colateral. Temo uma onda de preconceito contra qualquer abalo psíquico constatado. Não somente diagnósticos podem gerar perseguições, como creio que muitos possam evitar procurar ajuda temendo ser estigmatizados.
Quando a loucura ronda nossa vida, a sanidade revela seus limites. Quem teve um parente que se perdeu em delírios tem pânico de carregar dentro de si essa predisposição. Quem vê um amigo começar a ter pensamentos bizarros sente de perto a fragilidade da razão. Pode, afinal, explodir tal descontrole com qualquer um? A mente é como um campo minado? Não creio, sempre há um lento processo, em geral bastante visível, e é raro que seja completamente silencioso. Os agudos sofrimentos da alma devem ser acompanhados e os perigos podem ser reduzidos, mas nem por isso podemos prever tudo, como sugerido no filme Minority Report (Steven Spielberg, 2002).
Almejamos o conforto da lógica, negando que a loucura e a morte nem sempre são “justas” e previsíveis. É com certo alívio mórbido que descobrimos uma imperícia da vítima entre as causas de um acontecimento trágico ou triste. Se teve câncer, é porque fumava; se sofreu um ataque cardíaco, é porque era obeso; o acidente deveu-se ao álcool, a violência ocorreu porque a vítima se expôs. Nesses casos, parece que basta ser cauteloso e seguir as recomendações de saúde para estar a salvo. Quem dera.
Não conheço o caso do moço e sei que tudo o que lhe diz respeito será arrolado no cortejo das causas que tornariam previsível seu ato. O mesmo acontece em casos de suicídio e de atiradores de escola. Presume-se que alguém falhou na decifração das pistas que o sujeito foi deixando escapar. Porém, para cada suicida ou assassino em série, há milhares de pessoas que perdem a esperança de viver ou que nutrem graves mágoas e ressentimentos contra alguém ou contra todos, mas nada fazem. A maior parte dessas pessoas apenas rumina coisas que lhes intoxicam a alma nos momentos de angústia, tristeza e melancolia. Outras, poucas, vão enlouquecer de fato, ficar agressivas com os familiares, ouvir vozes. Raras, em número ainda menor, provocam tragédias. Para diferenciar um caso do outro, o melhor é proporcionar a todos os que sofrem oportunidades de receber acolhida e escuta.
Infelizmente, não temos uma previsão exata das consequências de determinados pensamentos e sentimentos. Dirigir com cuidado e viver saudavelmente contribuem para diminuir os riscos, mas não impedem as maldades do destino. Não podemos isolar e maltratar qualquer um que não se sinta psiquicamente bem como se ele fosse atirar um avião no chão. Cuidado com nossas fantasias onipotentes, a morte sempre ri por último.
Cadê meu trono?
o que temos por dentro que nos torna tão suscetíveis à cobiça por privilégios?
Yanis Varoufakis, Ministro das Finanças da Grécia, é um cara charmoso e irreverente, usa jaquetas e camisas esportivas – sempre sem gravata – em todo tipo de evento oficial e se desloca em sua moto. Ele contou um episódio embaraçoso (mencionado na revista Piauí 102) que ilustra a tentação dos privilégios.
Anos atrás, ao viajar para dar uma palestra, usava a passagem de primeira classe fornecida pelos organizadores do evento e percebeu-se olhando para a turma da classe econômica com um sentimento de superioridade. A revista menciona que ele teria se horrorizado ao viver na própria carne o quanto era fácil ser cooptado pelo prazer de estar acima da plebe.
O que temos por dentro que é tão facilmente despertado assim que nos oferecem um assento bacana, como notou Varoufakis? Rapidamente, a poltrona de primeira classe se transforma em trono, como se finalmente tivessem reconhecido nosso direito de nascença a ocupá-lo. Se examinarmos o conteúdo das fantasias mais banais, essas que nos pegam quando estamos distraídos ou adormecendo, veremos que nelas somos sempre reconhecidos por merecida grandeza, a qual nunca julgamos nunca ter sido suficientemente celebrada. Detalhe: a comparação é fundamental, pois é preciso que haja aqueles que consideramos pobres, medíocres ou feios, para que o brilho da conquista seja ressaltado.
Não há quem seja imune a algum tipo de ressentimento, o reconhecimento recebido é sempre menor do que a expectativa. O tráfico de privilégios tem vilipendiado todo tipo de boas intenções políticas, parecemos marcados por essa sede de modo incurável. Talvez seja uma memória infantil do lugar especial que só usufruímos quando muito pequenos, no papel de coisa fofinha da casa. Logo criamos chulé e ninguém mais quer beijar nosso pé gordinho. Pelo jeito, a experiência deixa alguma nostalgia, omitindo o fato de que o preço pago pelo lugar especial costuma ser o papel de objeto, no qual tornamo-nos espelho do desejo dos outros. Muitas celebridades morrem tentando anestesiar-se dessa cilada que é a captura no imaginário alheio. Nosso sentimento de ter vida própria, portanto, se beneficia de uma certa frustração. Apesar disso, nos queixamos de falta de atenção, pois consideramos sempre injusta a distribuição do prestígio.
Vimos o presidente uruguaio Mujica sair do seu mandato no mesmo fusca velho em que entrou, assim como o então governador Olívio Dutra nunca deixou de ir de ônibus ao trabalho. Golpe publicitário desses senhores? Creio que não. Eles se mantiveram a salvo do delírio de grandeza que nos acomete assim que ganhamos um assento de primeira. Talvez soubessem que ficamos reféns daqueles que nos oferecem um lugar de exceção. Uma lição a seguir nestes tempos de debates éticos.
Vida descomplicada
por uma rotina sustentável, pelo menos no fim de semana…
Minha rua é cheia de gatos que costumam ser pouco amigáveis, apesar da generosidade dos vizinhos que os alimentam. Intocáveis, escondem-se e fuzilam com o olhar quando alguém passa. À exceção de um deles, chamado pelo seu dono simplesmente de Gato, que é enorme e afetivo. Seu humano não exatamente o possui: um belo dia abriu a porta e o Gato entrou, apoderando-se de mais esse domínio.
Sábado de sol, a caminho do armazém há um felino atravessado na calçada. Minha vizinha Vera, que me observa a alguns metros de distância, avisa: olha só a preguiça do Gato tomando sol! Nossa cumplicidade de rua garante que saibamos que Gato, neste caso, é nome próprio. Mais meia quadra, o dono da banca lamenta que ainda não chegou a revista encomendada, o farmacêutico me convida a apreciar a reforma em seu estabelecimento.
No “meu” mercadinho, o guardador de carros, um sujeito muito tatuado que parece ter tido dias melhores, entrou para comprar cigarros. Está discutindo com o dono do estabelecimento sobre os povos que mais fumam. Seriam os orientais segundo ele. O rapaz ruivo do balcão comenta que vendeu mais batata doce assada do que esperava num dia quente, pego as últimas. Pessoas sozinhas, quase todas idosas, comprando uma ou duas unidades de fruta, a fila do caixa anda devagar, nas sacolinhas sempre cabe muito papo. Na volta, mais encontros, mais conversa fiada, chego em casa como se tivesse tirado férias. Simples assim.
Quando me convidaram para escrever aqui, à guisa de provocação, tive vontade de chamar minha coluna de “Vida Complicada”. É de fato assim que a vejo: psicanalista de profissão, fico o dia todo lidando com as inquietudes, com a parte enigmática das vidas dos que me consultam. Mas, ao longo dos três anos em que habito a revista, a vizinhança dos meus colegas colunistas e jornalistas acabou cumprindo missão similar à do meu bairro. Uma e outra têm o dom de iluminar as pequenas coisas, emoldurar a tranquila felicidade que podemos percorrer com uma sacola de compras pendurada nos braços.
Nestas páginas nossa cabeça acaba revelando-se também sustentável. Não há fórmulas mágicas, ninguém ostenta prazeres e virtudes no grito, como é comum nas redes sociais. Aqui franqueza não significa exposição, a tristeza, os temores e vacilações são legitimados. Partilham-se tentativas artesanais de solução dos problemas, quando há alguma. É um tom que também busco na minha clínica, onde o alarmismo, a indignação, o derrotismo, o ressentimento e a arrogância só entram para serem desmascarados.
Pensando bem, esta vizinhança de revista está arejando meu modo de escrever. A Vida até pode ser vista de modo Simples, ensolarada como uma caminhada de sábado. É do seu olhar que o verão, as férias, o novo ano que está por chegar, tirarão sua luz.
(coluna da edição de dezembro de 2014 da revista Vida Simples)
Mães também se aposentam
A maternidade não era mesmo um cargo vitalício?
Ela foi mãe dedicada, para cuja casa os filhos adultos e netos acorriam em procissão. A presença deles era motivo de júbilo, suas notícias recebidas como cartas de amor. As reuniões de família eram preparadas com zelo de jantar romântico, o prato preferido de cada um sempre lembrado e as restrições alimentares respeitadas. As conversas à mesa, como no tempo do finado marido, requeriam delicadeza diplomática.
Filhos se melindram fácil, toda palavra corre o risco de esbarrar em inevitáveis ressentimentos e pendências. Cada um deles tem certeza de que a mãe simpatiza mais com o marido, esposa ou filhos do irmão ou da irmã supostamente preferido, que sempre julgam ser outro. Nas separações e nos momentos de falência acolhia-os de volta ao ninho, comiam e dormiam com ela, assistiam filmes em sua tevê sábado à noite. Depois sumiam, embarcados em nova paixão, projeto ou em um grupo de amigos inseparáveis.
Até que um dia teve que submeter-se a uma perigosa cirurgia cardíaca, estava avisada de que seu caso era grave. Antes de internar-se, revisou seus guardados, deitou ao lixo muitas “bobagens” que atesourava, editou as lembranças, organizou os documentos. Foi um mau bocado, mas sobreviveu e algo pareceu ter se quebrado. Na saída do hospital, tomou uma decisão atípica: esta segunda vida, mesmo que curtíssima, seria para uso pessoal. Fechou o apartamento, voltou para o interior, para a cidade natal. Foi viver junto com uma irmã mais moça, também viúva, partilhavam os cuidados de uma boa funcionária. Era uma aposta, uma aventura, mas nunca é tarde para isso. O genro médico ficou furioso, como afastar-se dos melhores hospitais a esta altura?
No cidade enturmou-se novamente, conhecia as histórias de que falavam, tudo lhe voltava aos borbotões. Ao invés de ficar desmemoriada, lembrava-se do passado mais remoto em detalhes. Agora, em suas visitas, os filhos tinham que disputar a atenção na sala da mãe e da tia com a animada roda de chimarrão dos vizinhos. Eles eram bem vindos, mas ela impacientava-se caso a distraíssem da sua nova rotina. Não levou consigo muitas lembranças, uns poucos porta-retratos lhe bastavam.
Ela não era gato, mas ganhara mais uma vida. Restava-lhe coisa pouca, mesmo restrita e cheia de dores chatas estava disposta a viver sua aposentadoria. Aposentara-se do casamento, da família, dos vínculos, encontrara uma forma tardia de liberdade. Os filhos incrédulos não entendiam o abandono. Gostamos de acreditar que ter filhos é um sacerdócio vitalício, tanto que quando isso não se confirma custamos a engolir a mágoa. Porém, mães e pais idosos por vezes se aposentam, respeitar-lhes essa opção envolve a dura verdade de que os filhos podem não ser a cereja do bolo.
A vida em cinza
Uma Cinderela com boas pitadas de erótica feminina, as prateleiras exibem o produto perfeito. O encontro de 50 tons de cinza com as consumidoras da paixão sem ambiguidades.
Imagine que você fabrique um produto qualquer: uma esponja de aço, por exemplo. Seu sonho de empresário seria tornar-se Bombril, que em nossa língua é sinônimo desse objeto. Agora imagine que os amantes almejassem o mesmo: ser tão perfeitos um para o outro que suprimissem a concorrência. Esse é o segredo de Christian Grey e Anastasia Steele, protagonistas de um amor absoluto em “50 tons de cinza”, escrito pela norte-americana Erika Leonard James.
Respeitosos às leis do mercado, os amantes da história reúnem-se em torno de uma mesa de negociações para acertar detalhes de seu contrato. Não se trata de um casamento, mas sim de um código de comportamento sexual, submissão e domínio. O acordo não é pacífico, há escaramuças e desentendimentos, como em qualquer novela romântica, mas é para apimentar o final feliz, que se dá ao cabo de três volumes e filmes.
Numa cartada só, a Sra. James conseguiu suprimir a maior parte das interrogações e tormentos que nos preenchem e ocupam. Gastamos a existência a indagar qual nosso valor e o que gostaríamos de conquistar, o que é ser um homem e o que é ser uma mulher. Além disso, atrapalham-nos para amar as lembranças infantis do prazer e do terror de ser subjugados e protegidos. Para Christian e Anastasia está quase tudo resolvido.
Eles são virgens, ela de corpo e ele de coração. Ele é riquíssimo, jovem e belo. Sim, os príncipes ainda existem. E como as Cinderelas também, esse cobiçado solteiro fica mesmerizado quando pousa os olhos na desmilinguida universitária que aparece para entrevistá-lo para um jornalzinho de faculdade. O que ocorre entre os dois é um desejo incontrolável à primeira vista, que logo se transforma em juras de amor.
Rapidamente a relação torna-se o negócio mais importante para ele e o projeto de vida prioritário para ela. Ele quer subjugar-lhe o corpo, mas acaba entregando-lhe a alma. Ela cobiça possuir a alma dele, mas entrega seu corpo com um prazer minuciosamente descrito. Apesar dos chicotes, cintos e palmatórias próprios da cena sadomasoquista, o livro difere das clássicas publicações do gênero ao dedicar grande espaço à exploração do corpo e dos prazeres femininos, dos quais Anastasia goza amarrada e amordaçada.
Pense bem nas suas dúvidas: você nunca sabe direito o que quer nem o que precisa para ser desejável. Além disso, sente-se ambivalente quanto aos prazeres da carne, nos quais sempre fantasia um tanto a mais do que realiza. Como as mulheres nunca tiveram um destino em aberto, o recato era imprescindível e as escolhas restritas, o leque dessas vacilações era para elas menos explícito. Com a liberdade, ganharam o benefício e o inferno das dúvidas. E. L. James tem a resposta para todos esses males: não enxergue cores, atenha-se ao cinza e viva uma vida Bombril.
Os homens que amam seus cachorros
Pequenos amores em grandes momentos não são irrelevantes…
Na época do impeachment do presidente Collor, os jornais estavam tomados pela indignação e pelo entusiasmo frente à movimentação popular. Também estava empolgada com o assunto quando fui, como de hábito, ler a coluna do Carlos Heitor Cony na Folha. Bem no meio da erupção social, no final daquela página, ele escrevia sobre suas cadelas setters que, se recordo bem, eram duas e dizia algo relativo à sua pelagem avermelhada. O que nunca esqueci foi da sensação boa que deu o encontro com aquelas divagações tão fora de propósito.
Podem chamar, a mim e ao Cony, de alienados, pelo menos estou neste caso em ótima companhia. Aquilo parecia ser uma nota de rodapé lembrando o que parecia não caber no contexto daquele momento. Longe dos cenários e comoções sociais, reduzimo-nos aos amores, aos afetos mais prosaicos, cuja simplicidade a relação com os animais domésticos simboliza muito bem.
Voltei a evocar essa história ao ler o cativante O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura (Boitempo). É uma narrativa tripla que tem seu ponto de confluência no assassinato do líder soviético Leon Trotsky, cujos anos de desterro acompanhamos no livro. Como pano de fundo, temos a instalação do terror, que levou o sonho socialista à categoria de pesadelo, conforme Trotsky insistentemente denunciava. Ao ser expulso com sua família, o antigo chefe do Exército Vermelho conseguiu levar consigo sua cadela Maya. Aí temos o primeiro cão.
Num segundo eixo narrativo conhecemos o comunista espanhol Ramón Mercader, conhecido como aquele que matou Trotsky com uma picareta. Por último, temos o terceiro personagem central, que é Iván, um escritor desiludido que sobrevivia como veterinário prático, a quem o carrasco espanhol encontrou numa praia cubana. A empatia entre esses dois instala-se partir do interesse de Iván pelos cachorros de Mercader, um casal de borzóis, impetuosos animais russos da mesma raça de Maya. Aliás, teria sido o interesse pelos cachorros uma das formas do assassino aproximar-se do arredio Trotsky. Novamente os cachorros.
Para surpresa de Iván, aquele homem de aspecto doentio, que como ele amava os cachorros, tinha uma história inacreditável de crime, intrigas e clandestinidade para contar. O cubano, por sua vez, vive o ostracismo insular em companhia de sua mulher doente e do fiel cão Truco.
São histórias de sacrifício, idealismo, fanatismo, lucidez e desencanto nas quais os cachorros eram as derradeiras testemunhas silenciosas daqueles que pareciam ter esquecido de quem eram como indivíduos. As grandes paixões sociais movem moinhos, mas não suprem a relevância dos vínculos. Como naquela crônica do Cony, no pé da página da nossa vida resta-nos o que conseguimos amar, nem que sejam apenas os cachorros.
Socorro, barata!
Mulheres e baratas: inimizade letal, intimidade herdada.
Meu marido costuma perguntar-me: para onde estas olhando? Brinca que se uma manada de elefantes estiver marchando na calçada eu casualmente estarei reparando em alguma folhinha caída. Há uma exceção: tudo isso altera-se radicalmente quando o assunto é barata.
A simples presença desse inseto dito inofensivo torna-me uma observadora ninja. Não há ruído dele que escape aos meus ouvidos apurados e os olhos são capazes de visão noturna. Entre a percepção e o ataque de pânico costuma não haver lapso. Ondas de calafrios me percorrem e fico em pânico de que a barata me toque.
Graças essa fraqueza, sinto empatia com o drama dos pequenos, que gritam apavorados ao serem obrigados a aproximar-se do Papai Noel, de um cachorro ou do que for seu objeto fóbico. Isso acontece porque no começo da vida temos dificuldade de diferenciar onde termina o eu e começa o outro, assim como o que vem de dentro e de fora do corpo. Também nem sempre é fácil distinguir os adultos amorosos e confiáveis dos monstros. Já na escuridão, sentem-se diluídos, sem contornos, o que é fonte dos terrores noturnos.
Para todos esses males, temer uma figura facilmente encontrável organiza a geografia do perigo, tornando-o mais passível de controle: se o medo se focar no cachorro da vizinha, que sempre late quando passamos, ou no Papai Noel de Shopping, basta evita-los e estaremos seguros. O pequeno apavorado não tira os olhos do monstro, mantendo-o na mira.
Meu problema com as baratas é comum entre as mulheres que, tradicionalmente confinadas, partilharam o destino das crianças. A privacidade da casa era um não lugar, sua voz não fazia diferença, seu pensamento não era chamado a participar. Nunca sabiam bem quem eram, pois a identidade não vinha dali. Reinavam, mas num território de exílio dos homens públicos, em contato com a roupa suja dos patriarcas, em sentido real e figurado. Longe dos ritos sociais, que protegem e organizam o corpo e as ideias, convivendo com as fraquezas, doenças e vilanias dos que se bancam fortes e idôneos lá fora, elas sentiam medo.
A barata, forma renitente da sujeira imune mesmo à limpeza mais abnegada, é o pesadelo da mulher. Representa seu trabalho repetido de Sísifo, o castigo da sujeita invencível. Como todo objeto fóbico, deve ser próximo e assíduo. Frágeis como crianças, em seu mundo isento dos direitos civis e cheio de deveres servis, as fêmeas elegeram na barata um perigo que pode ser mapeado e combatido. Hoje isso não faria mais sentido, pois também somos figuras públicas, mas continuamos em pânico. Talvez ainda estejamos marcadas pelo longo período de dependência. Para mim, pelo menos, nada no mundo parece tão reconfortante quanto a paz que se instala uma vez que o monstro, de borco, cessa de espernear para sempre.
Música de cortar cebola
Várias formas de chorar, inclusive a da “sofrência”…
Na Adega das cebolas, estabelecimento acessível a consumidores seletos, não havia nada para comer, nem tampouco, apesar do nome, beber. Serviam-se lágrimas. Médicos, políticos, intelectuais, funcionários públicos, estudantes, iam lá para chorar as mágoas, literalmente. Após as mesas terem sido solenemente ocupadas, convivas constrangidos recebiam tabuinhas, facas de cozinha e uma cebola, que cada um cortava a seu modo. Os esguichos do vegetal eram a deixa para começar a chorar, copiosa ou delicadamente, e cada um narrava aos companheiros de mesa seus motivos. Concluído o rito de choro e confissão, todos retiravam-se considerando que o alívio sentido justificava o alto investimento.
Ambientada no pós-guerras alemão, a cena é contada por Günter Grass em O tambor, publicado em 1959. Ela sempre me intrigou, pois por vezes o consultório de um psicanalista parece-se com uma Adega das cebolas. Pelo menos a princípio de conversa. Chorar é como pontuação de frase: produz o ritmo que altera o sentido, mas não lhe define o conteúdo.
Boa parte das lágrimas é de caráter evocativo. Elas vêm depois do impacto, quando estamos repassando fatos, revivendo mentalmente aquilo que machuca. É claro que também podem surgir no momento traumático do rompimento, da morte, do fracasso, do sentimento de desvalia ou abandono, mas a dor quando brota costuma encontrar-nos estarrecidos, sem expressão.
Chegada a hora do pranto, há choros que são uma convocação, do tipo “faça alguma coisa”. Há os olhos que se molham numa frase, disfarçados, por vezes envergonhados. Há o choro silencioso, prolongado e sofrido, que exige respeito e silêncio da testemunha. Há também o choro catártico, do tipo da Adega. “Algum dia se designará nosso século como o século sem lágrimas, apesar de todos os seus sofrimentos”, escreveu Grass. E falava da Alemanha derrotada e estarrecida do século passado. Esse tipo de pranto, digamos artificial, parecia necessário logo após uma época em que não houve espaço para chorar, sobreviver era prioritário.
Coube a um jovem cantor baiano chamado Pablo (nascido Agenor dos Santos), um ídolo de ocasião, instalar a coqueluche popular da “sofrência”. O neologismo define o pranto escancarado provocado pela sua música, quer seja em shows ou postado em vídeos. Suas letras de coração ferido não diferem em nada de outras baladas bregas, mas caiu das graças da audiência como uma licença para chorar em público, principalmente para os homens. A pequena epidemia de lágrimas causada por Pablo difere do rito contido da Adega de Grass. Aqui, o choro, como ocorre com o sexo, o corpo, o amor e nossos sentimentos em geral, torna-se espetacular, catártico e performático. Chorar faz bem, mas tenho uma triste saudade da privacidade dos afetos.
Papo chato.
O discurso vazio é chato. Cego e surdo, é garantia de desencontro.
Era melhor não perguntar à minha tia-avó como ela estava. A resposta incluía um relato minucioso da sua saúde, com ênfase no inquietante desempenho do seu intestino. Já com seu marido, era preciso tomar outros cuidados: o ponto delicado da conversa devia evitar assuntos relativos a trajetos e qualquer coisa que lhe oportunizasse relatar os seus. Teríamos uma explicação dos caminhos que ele percorreu mais longa do que os propriamente ditos, dos desvios e as obras que o obstruíram, do tempo das sinaleiras e outros detalhes imperdíveis. Não pense que estou sendo intolerante com a velhice dos parentes, eles eram assim mesmo antes da visibilidade das rugas.
Essa dupla deixava bem claro que, para alguns, não existe aquela pergunta que na verdade não passa de uma formalidade: – “como vai?”; “tudo bem!”. Da mesma forma, observações sobre o trânsito ou clima na verdade são apenas saudações. São questionamentos gentis, sem a intenção de receber um boletim informativo.
O diálogo vazio no encontro com o vizinho ou colega também pode ser sobre o time, sobre alguma calamidade, a proximidade das férias, o crescimento dos filhos, a saúde do cachorro ou qualquer outra banalidade. É como um abraço verbal. Poderíamos até nada dizer e fazer alguns gestos com as mãos, ou mesuras e volteretas, se assim fosse nosso hábito cultural, mas trocamos umas palavras. Há diversos níveis de encontro, alguns incluem verdadeiras conversas, outros somente o palavrório das gentilezas. Meus tios-avós eram chatos pela impossibilidade de compreender essas diferenças.
Um diálogo tem a dinâmica de uma dança, varia conforme o tipo da música. Palavras são como os passos dos bailarinos que devem saber seguir o ritmo e o parceiro. Chato é aquele que não escuta, fala sozinho, aborrece o interlocutor com uma conversa que não leva em conta a música nem o outro. Há chatos narcisistas, egocêntricos, sempre têm muito a dizer, mas não importa a quem. Outro tipo de chato é o que se perde no próprio labirinto do pensamento, como meu tio falando do trânsito. Eles ocupam o espaço sonoro, mas não conseguem dizer nada relevante e esterilizam o diálogo. Como no caso da tia, há os que estão tão submersos em seus sofrimentos que esqueceram como é olhar para fora, chamam o interlocutor para o único lugar que conhecem: seu próprio interior.
Meu trabalho é uma luta cotidiana contra a banalidade das palavras. Sou grata àqueles que arduamente separaram uma preciosa fatia de seu tempo para ir ao meu consultório e me esforço para que não o façam à toa. Posso até acolhe-los com um bom abraço verbal, mas fico atenta às estrofes de verdade audíveis na música das suas palavras.
A cristaleira
Reformando tudo, iludido-nos que nada devemos ao passado…
No recinto vazio do apartamento recém comprado reinava ela. Reluzente, portentosa, revestida de espelhos por dentro e laca brilhosa por fora. Não contente com isso, a maldita cristaleira tinha um dispositivo de luz interna. Aquele palácio iluminado de breguice parecia dominar minha futura sala. Móvel imóvel, embutido, perfeitamente encaixada num vão que parecia ter nascido para recebe-la. Declarei-lhe guerra.
Sílvia, minha arquiteta, acostumada com meus orçamento e bom senso limitados, suspirou e ponderou que então teríamos que pensar algo para colocar naquele buraco, quem sabe se lhe déssemos uma nova maquiagem? Venceu a falta de dinheiro e o bom senso dela e hoje, em sua forma original, vivemos as duas em completa harmonia. Por vezes meus olhos a encontram e, já uma velha amiga, me pergunto como foi que lhe questionei a permanência.
A cristaleira deixada pelos antigos donos do apartamento que comprei era, na verdade, um patrimônio: bem feita, tinha a grande qualidade de estar já pronta, por que tirá-la? Fora o estilo bem diferente do meu, seu maior defeito era atestar a presença anterior daquelas pessoas. Imóvel usado sempre traz consigo marcas, escolhas e cicatrizes deixadas pelos antecessores. Ao chegar, a atitude mais comum dos novos proprietários é achar tudo horrível, derrubar paredes, colocar abaixo banheiros e cozinhas em perfeito estado, enquanto luminárias, pisos, trincos e torneiras são trocados por modelos na moda. Há algo mais do que gosto pessoal que se revela nessa renovação compulsiva à qual tendemos.
Ao nascer, costumamos herdar várias cristaleiras, metaforicamente falando, mas lutamos para ser originais. Pelo menos na própria existência queremos ser os primeiros a chegar. Isso se reproduz nos imóveis que ocupamos, como se houvesse uma contradição insolúvel entre a presença anterior e a nossa. Como na cristaleira, tentamos suprimir seus traços para garantir algum ineditismo no lugar que ocupamos no mundo. Na vida como no imóvel, grandes ou pequenos embutidos das gerações passadas vamos carregar. Ficar completamente contemporâneos na superfície não elimina a existência de raízes sob a terra. Colocar tudo abaixo não resolve isso.
Somos obrigados a caracterizar por escolhas pessoais, ou que se caracterizem pelo “novo”, cada milímetro do nosso corpo e dos lugares que ocupamos. O problema é que, além do desperdício de material, dinheiro e trabalho, lá onde julgamos colocar um traço próprio em geral estamos sendo escravos de modismos e propagandas. A quebradeira apaga um acervo que testemunha alguma história, do local, da família, de uma cultura, alem de não garantir nenhuma singularidade ao morador. Por que transformar o lindo parquê do nosso passado num frio porcelanato sem nenhuma história para contar?