Amor é incompreensão
Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo.
Quando se ama, o pior inimigo não é, como dizem por aí, o costume. Ele pode ser traduzido em intimidade, à guisa de elogio. A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma, lugar onde ancorar a salvo do medo. A mesmice do outro não é chatice, é repouso. A repetição de seu ser nos envolve e acolhe como o café fumegante depois do almoço, ou o banido cigarro depois do sexo.
A duração de um amor não esbarra nisso, é a idealização das escolhas que a abala. Somos tolos como insetos em volta da lâmpada. Ficamos trocando de parceiro, renovando a expectativa de algo maior, relançando as apostas num encontro absoluto. Balela, amar é combater o desencontro a cada dia. Escute Clarice Lispector: “pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente”.
O convívio não destrói o mistério, pelo contrário. Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo. Não nos saciaremos um no outro. Ele nunca chegará a nos pertencer definitivamente. Um rio separa os amantes, travessias são possíveis, mas as margens não se fundirão.
Gulosos, consideramos que a felicidade seria fazer-se um: queremos mais do que encaixe, o objetivo é zerar a distância, anular a diferença, virar uma só laranja. Nesse caso, melhor casar com o espelho ou seguir em busca desse par perfeito, pulando de promessa em promessa, procurando no amor o tesouro escondido da felicidade.
O problema é que Amor e Felicidade sofrem da mesma sina. São inflacionados, acima de tudo incompreendidos e costumam não ser reconhecidos quando estão presentes. Por natureza, eles são discretos, deixam-se estar, suaves, dispostos a um bom papo, uma tacinha de vinho. Mas em geral são ignorados. Depois de um tempo, partem incógnitos. Os que não souberam reconhece-los sequer têm motivo para lamentar por isso, a ignorância protege.
Já a a Paixão e a Euforia nunca passam despercebidas, causam furor quando chegam e todos querem ser vistos e fotografados a seu lado. São barulhentas, jogam confetes em si mesmas e somem sem que se saiba quando foi que a Ressaca tomou seu lugar.
Os amantes ingênuos são mais afeitos ao estilo destas últimas. Como num parque de diversões eterno, esses insensatos ficam em longas filas, por dias, meses, anos, na chatice da espera, para viver aqueles instantes de furor, vertigem. Não gosto de vertigem. Prefiro gastar meu prazo tomando um vinho com a Intimidade. Essa, vos asseguro, é mais próxima da Felicidade. Acho que nunca terminarei de comemorar a permanência do amor como um presente que recebo a cada dia. Um pacote de presente que nunca abro. O mistério de seu conteúdo faz parte da felicidade de tê-lo em mãos.
Casulo de Tristeza
Casulo de tristeza: habitat das nossas transformações
Tristeza tem fim sim, mas é inevitável e, uma vez que ela chega, deve ser tratada como hóspede importante. Não adianta fingir que ela não está ali, no meio da sala com suas malas ao lado, pronta para passar uma temporada dentro nós. Melhor acomodá-la, fazer um café e ver o que ela tem para contar. Trata-se de visita que nunca aparece sem uma missão, se for levada em conta, mais cedo parte.
Ela surge bem cedo na vida, só que não é dado às crianças ficar suspirando por aí. É na puberdade, fase cheia de desânimo, que ela aprende a se instalar. A partir daí, volta e meia dá medo de viver e é preciso procurar abrigo. Há outros jeitos de desconversar a desesperança, mas não se cresce sem essas visitas. Carece construir um bom casulo de tristeza: ele é como um escudo protetor, um lugar onde se recolher para temer, questionar e olhar o mundo de fora. Entramos nessa espécie de abrigo em diferentes fases da vida, passa a ser o habitat das nossas transformações. Pensando assim, a tristeza parece algo bem menos pernicioso e assustador.
Quando perdemos um ser querido, certamente é hora de voltar para dentro. No luto, a morte espalha seu absurdo sobre cada detalhe da vida. Cada gesto, cada fato, cada idéia alardeiam ausência. Se conseguimos invocar uma presença hipotética daquele que partiu, supondo o que diria, do que gostaria, o que faria em tal ou qual situação, seu caráter imaginário de fantasma acaba se revelando e a tristeza nos engole. O mesmo ocorre com outros tipos de perda: o desemprego, uma separação amorosa, o exílio, só para citar alguns. São longos períodos de dor, nos quais continuamos nos surpreendendo com a falta da pessoa, do lugar, da ocupação. O trabalho do luto, ou seja, da tristeza, consiste em acreditar, aos poucos e a contragosto, no insuportável e incompreensível. A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim, como diz Caetano, e emenda: tudo demorando em ser tão ruim.
Recentemente, na nova edição do DSM, apelidado de “Bíblia da Psiquiatria”, incluiu o luto na patologia da depressão. A depressão é diversa do casulo de tristeza, de onde saímos superados e diferentes. Ela se parece mais com uma toca, da qual não se quer sair por nada e sequer se sabe bem como foi que se acabou lá. O manual tenta estabelecer prazos, no caso duas semanas, para diferenciar um luto necessário daquele que seria depressivo. Entendo esse esforço de compreensão do sofrimento, mas no que diz respeito à tristeza, as regras psiquiátricas parecem não falar sua língua. A música sim soube dizê-la: o samba é pai do prazer, o samba é o filho da dor, o grande poder transformador. Ao regulamentar a tristeza, ao suprimir seus aspectos positivos com remédios, ficaremos privados do casulo, da dor e de seu poder transformador.
o precipício de cada um
A vertigem é o medo de pular.
Subi na montanha e nenhum deus falou comigo, não tive a sorte de Moisés e Maomé. Mas sem dúvida encontrei algo grande: o pânico. A paisagem altíssima era de tirar o fôlego. Para os outros turistas do meu grupo aquele era um momento de deleite, para mim uma cilada. No topo, enquanto os outros tiravam fotos e procuravam novos ângulos para contemplar a maravilha, fiquei encostada na parede de pedra, sem olhar para baixo, refém das golfadas de medo. O precipício me sussurrava ameaças de morte. Sem opção, tive que descer com a ajuda paciente de companheiros de caminhada. Desci sentada, vexada, prometendo nunca mais ignorar essa covardia.
O medo de cair afeta alguns e é irrelevante em outros. Muitos têm a tranquilidade de deixar os olhos passearem além do parapeito, da beira. Parece óbvio, qualquer um teria direito a esse prazer. Afinal, se você estiver apenas olhando e não mexer nenhum músculo obviamente não cairá. Meus sentidos negam-se a essa conclusão lógica.
Pelo menos os sonhos são democráticos: todo mundo alguma noite despencou no vazio, numa visita onírica ao pesadelo da vertigem. Por sorte, o despertar sempre ocorre no limite do encontro fatídico com o chão, mas acordamos suados, coração acelerado, os olhos em busca de âncora. A escuridão do quarto é macia quando emergimos de um pesadelo. Esse tipo de sonho ocorre porque a angústia, sentimento universal, se parece muito com a vertigem.
Para o angustiado não há nada nem ninguém que garanta sua segurança, muito menos ele próprio. Mesmo que pontuais, as crises de pânico, que são como grandes ondas de angústia, aparecem alguma vez na vida de todo mundo. Elas são experiências de desamparo, nas quais fica-se indefeso como um recém nascido. Tudo se apaga, ficamos à mercê de um perigo difuso mas intenso, reféns do próprio corpo. Só sabemos do medo de que o coração pare ou dispare, da pele sensível que crispa-se a qualquer toque. Cabelos eriçados, olhos cegos, ficamos tontos, nauseados, imobilizados, presas fáceis da morte. Nesse momento, o corpo é “ele” e o pensamento é “eu”, não somos a mesma coisa.
Nas alturas, em pânico não vejo a paisagem, o vazio parece ditar ordens ao meu corpo. E chama, pede que me entregue, balance, afrouxe as mãos que me prendem à rocha, coloque o pé num lugar errado. O perigo que ameaça os medrosos de altura é interior, não é terremoto nem deslizamento de terra. É o medo de ir ao encontro da morte movidos por uma força maior que não dominamos.
Invejo a sorte dos senhores do seu equilíbrio, a quem a vertigem não lembra quão sutil é elo o que nos liga à vida. Mas me consola acreditar que o medo de deixar-se cair é apenas uma das formas pelas quais a morte se insinua a cada um. A fragilidade é universal, cada um tem a sua. Você não?
Kryptonita
O passado sempre continua nos apedrejando
Tive todas as oportunidades de emburrecer com a babá eletrônica. Fui uma criança apaixonada pela telinha pequena e imprecisa, em preto e branco. Ansiava muito pela hora da tevê começar e me sentia miserável ao término da programação. Dessas extensas jornadas televisivas restam muitas memórias, mas uma evocação é insistente: a Kryptonita, proveniente dos desenhos animados do Superman.
Trata-se de uma arma que era usada contra seus super-poderes pelos inimigos, a única que o colocava fora de jogo. Aproximar dele um fragmento dessa pedra, um mineral verde luminoso, deixava-o fraco, indefeso. O mais enigmático é que a Kryptonita era uma das raras coisas provenientes do planeta natal do herói, Krypton. Do mesmo lugar de onde se originaram os poderes veio o calcanhar de Aquiles. O fragmento de ficção, e da pedra, sobreviveu na memória por portar uma verdade e um alerta: há um lugar, nossa origem, que determina o que somos, mas é também de onde nossa derrota pode se insinuar.
Não posso omitir a cilada do meu inconsciente: meus dois sobrenomes, tanto materno como paterno, contém a palavra “stein” (pedra, em alemão), ou seja, meu passado é uma “pedreira”. Mas não só o meu, também o seu, o de todos. A infância, quando os outros são grandes e nós pequenos, é lugar de proteção, mas também de submissão, passividade, medos. O mundo dos pequenos é uma massa escura que não enfrentamos sem uma mão para segurar. Não é fácil lembrar disso. Tornamo-nos fortes e grandes graças ao exílio desse planeta natal da fragilidade. Só ficamos “super” porque crescemos.
Ao voltar à casa dos pais, mesmo velhinhos, sentimos a sinistra sensação de que lá o tempo congelou. Perdemos os bons modos, catamos no prato, distraímo-nos ao som da voz da mãe, testamos a força do pai, ficamos irritadiços, por vezes irreconhecíveis. Os lugares do passado são magnéticos, atraem à superfície fragmentos, cacos sobreviventes de outras eras. Atravessar a porta familiar dessa casa é como a queda de Alice no assustador País das Maravilhas. Não é porta, é portal, do outro lado esperam memórias que nos tomam de assalto. Assombrados pelos nossos outros “eus” do passado, descobrimo-nos, como Alice, viajantes surpresos num país de pesadelos, dentro de um corpo que encolhe, espicha e nunca nos abriga direito.
Faz toda a diferença como encaramos e como nos contamos as experiências que vivemos, a mesma história pode ser enquadrada por diversas lentes. Diferentes visões produzem novos efeitos. Mas nem tudo pode ser posteriormente resgatado, sempre há restos, alguma pedrinha nociva que incomoda ou obstrui. O passado é esse planeta natal, fonte de nossa força e vulnerabilidade.
Afeto embrulhado
Quando os presentes expressam afeto, as aparências não enganam.
O convidado chega a um aniversário infantil. O aniversariante recebe desconfiado o volume colorido, ainda é pequeno e não entende direito o que está acontecendo. Com exclamações, a mãe tenta atrair o interesse dele para o brinquedo que mora dentro do embrulho. Uma vez focado no presente, o pequeno fica hipnotizado pelo papel, ou mesmo pela caixa, deixando o objeto mais importante de lado. A mãe se desculpa, constrangida.
Cena dois: esquecer aniversário de namoro ou casamento é crime capital, mas ele lembrou e comprou um presente! Desta vez foi ousado, arriscou uma roupa. Eis uma opção exigente, é preciso conhecer o mapa do corpo da amada como um cego lê braile para acertar. É um gesto de amor indiscutível. Ela abre, prova, ficou perfeito.
Mas não havia cartão, nem um bilhete. Indignada, ela entristece por não ser merecedora de uma linha sequer. Será que ele não é capaz de um singelo “para minha amada”? Como a criança, ela também se fixou na embalagem. Cegada por seus argumentos, não notou que o objeto em si era uma declaração de amor.
Cena número três: buscamos presentear um amigo com referências culturais diferentes, de outra geração, ou estrangeiro a nossos costumes. Queremos muito agradar, dar algo relevante, nosso investimento amoroso ou financeiro deve ser visível. No começo das buscas já percebemos a dificuldade, pois muitos objetos possuem um valor perceptível somente aos iniciados. A significação do objeto para nossas referências culturais, a etiqueta, o pacote da loja também revelam a importância da oferenda. Para alguém estranho a esses códigos, deve ser o objeto em si o mensageiro do gesto, mas fica mais difícil. No fundo, o bebê da primeira cena não está errado, o atrativo da oferenda começa, e muitas vezes fica aí, na embalagem.
Representados por inúmeros objetos que possuímos e vestimos, somos o que temos, mas também o que recebermos e o que conseguirmos oferecer aos outros. Até quando nos auto-presenteamos, a mensagem é “eu mereço”. Por vezes trata-se de recompensa mensurável, outra de um consolo ou até de revanche. Já comprei um par de botas caríssimo porque fiquei com raiva duma desfeita recebida. É a famosa “sapatoterapia” feminina. Para os homens fica mais caro, pois costumam praticar a “carroterapia”.
Nosso sistema de trocas, quer seja de presentes, olhares ou palavras, é uma forma de construção de identidade. Até ao olhar-nos no espelho interrogamos o que os outros vêm em nós, quanto valemos aos seus olhos. Nesse transito de amores e valores, todo objeto é, primordialmente, uma mensagem.
Às vezes o encontro se dá e nos fazemos entender, afinal através dos objetos também se dialoga. Para tanto, presenteado e presenteador têm que estar dispostos a escutar o sentido do gesto, devem calar a voz interior que assopra insatisfações, ressentimentos e auto-críticas. Quando isso se torna possível, nos alegramos quando o bebê celebra o envoltório vistoso, contente de estar recebendo um presente. A mãe não precisa ficar envergonhada, também sabemos brincar de fazer uma bola com o papel colorido, rasgar é um prazer, revelar o conteúdo da embalagem um desafio. Bebês brincam de esconde esconde com tudo, inclusive com presentes. Quanto à amada, livre da premissa da mágoa, consegue perceber na roupa entregue sem palavras o toque do desejo que a recobre.
Presentear é adivinhar o outro, dar provas de que o escutamos tanto quanto ele nos acolhe. Presente maravilhoso é aquele em que alguém revela saber-nos bem. É tranqüilizador quando os outros, de fora, acham que somos parecidos com o que pensávamos ser. Quando erram, ao contrário, sentimo-nos mais sós. Objetos a parte, é sempre uma questão do afeto que encerram.
Estranho na minha alma
Separações com e como finais felizes, por que não?
Fim do dia, das forças. O amigo liga chamando para um chope. Chegando lá, agradável surpresa: na mesa estava sua ex-mulher! Inevitável não fantasiar uma retomada, a separação sempre deixa uma ferida mal fechada, uma vontade de colar o que quebrou. Sempre gostei dela, do casal que eles faziam, mas eu sabia que aquele amor acabou. Havia escutado meu amigo o suficiente para saber que seu coração tomara outros rumos. Quere-los juntos novamente era egoísmo. Apesar disso, a conversa foi deliciosa como costumava ser no passado, estávamos relaxados, contentes. Depois, cada um foi pacificamente para seu lado, sem ressentimentos visíveis.
Amigos também ficam sequelados com os divórcios, sofre-se junto. A pior partilha, quando um amor acaba ou colapsa, é a dos afetos. Os que estão de fora do relacionamento descobrem-se desagradavelmente dentro: são disputados, junto com livros discos e algum patrimônio. Os amigos raras vezes conseguem transitar igualmente entre ambos, sem ter que escolher. A posição é similar, embora menos grave, à dos filhos. Estes, no entanto, não podem, nem devem, nem querem se posicionar, precisam manter o equilíbrio.
Quando a separação é tinta fresca, os ex-amantes estão loucos. Afogados em ressentimentos, reprisam incessantemente as mesmas histórias. Exigem paciência budista. Descontam a perda em tudo o que passar pela frente, seja filho, amigo, parente ou mascote. O filhos, com o coração sem lar, precisam acolher a dupla de desequilibrados que substituiu seus pais. Os amigos sofrem mal menor, mas a costumeira intimidade agradável transforma-se no muro das lamentações.
Fico triste, mas não desaprovo separações. Já entendi que vínculos terminais devem ser eutanasiados. Relações destruídas ou destrutivas podem consumir os envolvidos até o fim. Vi muita gente florescer após um recomeço, por vezes em um novo amor, outras em importante romance consigo mesmo. Mas sei o alto preço disso. Das separações que vivi, minhas ou alheias, impossível esquecer o desgarramento, a devastação, o vazio, o sem sentido que restou. Dói, destrói. Conviver com um amigo separado é reviver esse luto, essa perda. Nessa hora, o amor fraterno é imprescindível, mas impotente, nossa presença não tapa o furo.
Aquele entardecer, na presença de uma ferida cicatrizada, me encheu de energia. “Estranha no meu peito. Estranha na minha alma. Agora eu tenho calma. Não te desejo mais. Podemos ser amigos simplesmente. Amigos, simplesmente. E nada mais.” A letra de Fernando Lobo, na música “Chuvas de verão” traduzia o encontro. O final feliz, por vezes, não é o dos contos de fadas, o casamento, pode ser também uma separação que finalmente aconteceu. Por que não?
O cachorro do vidente
As ninharias que preocupam são a chave para conhecer nossos temas de extrema importância.
“Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo.” Clarice Lispector segue: “No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias. (…) Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas.”
Entendo semelhantes inquietudes: muitos dos nossos sentimentos são pateticamente dedicados a esquisitas ninharias. Dá até vergonha de confessar. Conscientes da desproporção, sabemos estar vivendo um afeto deslocado. Lutamos contra tais pensamentos que atestam nossa futilidade. Pedimos a nossa mente perturbada: diga logo, o que na verdade está produzindo tanto ruído? Não adianta…
Quando estou às vésperas de viajar para minha cidade natal, como faço todo ano, sei que vou sentir uma pontada de angústia se não reencontrar o cachorro de um vidente que sequer consulto. Chego e vou ver se o homem está em seu posto, onde instala sua banquinha de búzios. Ele veste roupas surradas de velho hippie e usa longa cabeleira branca. Ao seu lado, instalado em uma almofada vistosa, repousa seu cão, grisalho como ele. Certa vez constatei a falta do cachorro e senti um aperto no coração: um havia perdido o outro. Agora o vidente parecia patético, sozinho, miserável. Para minha satisfação, no dia seguinte o parceiro estava de volta. Com tantas preocupações dignas de nota, por que essa?
A cidade em questão é para mim lugar de muitas perdas, de lutos, mas também de férias felizes, da minha infância e das minhas meninas. O pequeno drama imaginário, no qual faço do cachorro e do vidente protagonistas de uma grande amizade é uma metáfora forte. Eles representam os vínculos que fazem de alguém um ricaço e as perdas que nos depauperam. Por isso temos que aceitar a incumbência de se ocupar das ninharias, elas são a chave os para temas de suma importância.
Clarice tinha a tarefa de olhar as plantas do Jardim Botânico, de cuidar da integridade da fila de formigas. Ela certamente sabia que nossa presença no mundo faz diferença, mas está longe de ser imprescindível. A minha com certeza mais prescindível do que a dela. Esse texto, chamado “Eu tomo conta do mundo”, termina com a frase: “só não encontrei a quem prestar contas”.
Mentirosa essa Clarice, ela contou para nós. Na crônica e na ficção, soube ser embaixadora da vida mínima, onde pulsam máximas emoções. Fazemos parte da fila de formigas de que ela tomou conta. Nos alinhamos menos solitários, graças à sua generosa sinceridade. É isso que faz um grande cronista, revelar a grandeza de nossas bobagens, sem cometer a descortesia de reduzi-las à razão. Eis meu sonho de consumo ao escrever e analisar nossa vida, que nem sempre sabe ser simples. Continuarei tentando.
Exuberância enrustida
Almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação.
Com seu inconfundível sotaque argentino, no intervalo do cafezinho da clínica, ela me disse: “tu te achas muito bonita”. Eu, uma psicóloga desalinhada, na casa dos vinte, ela uma psicanalista quarentona e cheia de charme. Em eterno litígio com minha imagem, custei a entender a alfinetada. Complementou: “é que não te pintas, porque achas que não precisas…”
Minha colega, de fato, não saía de casa sem delineador. Como se seus enormes olhos azuis necessitassem de algo a mais. Sempre precisamos de algo a mais, era o subtexto. É pretensão pensar-nos suficientes com o que temos. No fundo, todo discreto se acha grande coisa. Paradoxal, mas verdadeiro.
Discreto não é displicente, não é largado, não boicota a sua imagem. Ninguém é tão bonito a ponto de sobreviver ao esculacho. A Top Model não acorda com cara de Top nem de Model. Passei da idade que ela tinha na época, hoje não saio de casa sem delineador, mas costurei uma versão pessoal do conselho recebido.
O investimento na própria imagem pode ser óbvio, como no caso das pessoas chamativas, enfeitadas, ou mesmo uma aposta no detalhe, no que é invisível a olho nu. Professo o segundo tipo, daqueles que fazem o gênero da discrição presumida, da falsa humildade, da exuberância enrustida, chame como quiser. O cuidado com a lingerie, por exemplo, traduz esse espírito. Embora fique oculta a maior parte do tempo, é meticulosamente escolhida conforme o que revela, comprime, marca, sugere. Temos a depilação, que tenta fabricar uma superfície impecável, a tatuagem, enfeite perene da pele. Nunca cessa o combate à topografia da celulite e das estrias, acidentes geográficos a serem reparados. São preocupações obsessivas, parte de um complicado processo que termina com o arremate da maquiagem, reta de chegada de um labirinto de incertezas. Os homens não cansam de afirmar que não reparam nem na metade dessas providências, mas as mulheres insistem num cuidado, incapaz de calar a profunda inquietação, o pânico do erro. No fundo, almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação. Como sempre, a insegurança gera sede de poder.
Minha avó insistia em que uma mulher deve estar sempre impecável por baixo das roupas, “nunca se sabe quando vamos parar no hospital”, dizia. Sua intimidade era meticulosa no aguardo da síncope, do atropelamento. Eu prefiro cultivar a fantasia de que meus caprichos não se destinem ao encontro com o azar, que se enderecem ao escolhido para apreciar meus detalhes. Mas aprendi algo com minha amiga experiente: não há lugar para o pecado da soberba, reparei que até seus lindos olhos se beneficiavam do arremate.
Síndrome da porta
Quando desejamos a ausência do outro, tememos a punição do abandono.
A noitada termina, a comida foi apreciada, a conversa ótima. Tudo na medida: confissões e risos tiveram seu lugar, o álcool fez seu papel, ninguém ficou pastoso, inconveniente. Um encontro perfeito, mas chegou ao fim. A hora de partir de um jantar, de uma visita, é para mim sempre delicada. Temo ser mal interpretada. Será cedo demais, pareço ingrata? Tarde demais? Terei abusando da paciência dos donos da casa?
Do outro lado, ao receber, não me sinto mais cômoda. Depois dos bons momentos, já estamos todos cansados, hora de deixar os convidados partirem. Eles comunicaram sua intenção em hora oportuna, mas deveria insistir? É aí que desenvolvo o que chamo de “síndrome da porta”. Tomada dessas incertezas, fico envergonhada de desejar partir, ou querer que meus amigos vão para casa. Por isso, começo a desenvolver pequenas estratégias para retê-los. Afinal, sempre temos tanto o que falar! Quanto mais quero terminar a noite, mais puxo conversa. Na derradeira despedida, na soleira do prédio, faço uma pergunta importante, tornando infinita a despedida. Grudo nas minhas visitas como carrapato, justamente quando acho que está na hora delas partirem.
Poderia atribuir esse hábito ao excesso de polidez, mas acho que sua maior fonte é a angústia de separação. Da mesma forma fazem as crianças pequenas, na clássica cena da choradeira na porta da creche: depois de fazerem um espetáculo pungente de dor ao ver a mãe partir, elas viram as costas e muito faceiras rumam para suas brincadeiras. Ficar feliz na escola é o mesmo que dizer à mamãe que ela não é mais o centro do mundo.
O balé da porta é um movimento complexo. Por um lado, o anfitrião e a visita querem descansar, assim como a criança quer se divertir. Por outro, todos temem ser menos amados se não demonstrarem sofrimento pela separação. É agradável pensar que a visita não desejaria partir e que a mamãe vive para nós. Crianças e adultos temem a perda dos pais, amigos, amores, parentes, nenhum vínculo é sempre seguro.
A solidão que se estabelece depois de um encontro é desejável, é bom quando nos deixam a sós. Hora de pensar no que aconteceu, no que se disse e viveu, de opinar para os únicos ouvidos com que somos totalmente sinceros, os nossos. Porém, quando desejamos a ausência do outro tememos a punição do abandono. Ele saiu, adormeceu, distraiu-se de nós, enfim, de alguma forma partiu, mas ao desligar-se, deixou-me para sempre? Mesmo depois de crescidos, padecemos de angústias de separação até nos momentos mais banais, ou mesmo agradáveis, da vida cotidiana. No escuro, antes de dormir, a solidão que nos contempla sempre enxerga uma criança desamparada. Essa é a única que nunca nos deixa.
Ponto para as formigas
A história dos jasmineiros perdidos e de como os desejos têm a manha de travestir-se de memórias.
Minha casa de infância tinha três árvores de jasmim. Eram flores brancas enormes, quase obscenas, de cheiro desbragado. Os vizinhos perfumavam suas casas com jasmins que pediam à minha avó. Ela e as árvores eram generosas. A casa foi vendida, a nova dona trocou-as por grama.
Inconsolável, passei a tentar recuperar meus jasmineiros. Plantei árvores em todas as casas que tive, em pátios, jardins, sacadas, foram cinco tentativas. Todas fracassadas. Perdi para a gula das formigas. Não havia veneno, água de tabaco, ou mandinga que as contivesse. Banqueteavam-se com folhas e flores. Desisti.
Pelo infortúnio, o cheiro do jasmim tornou-se minha obsessão. Procuro seu tom nos perfumes, fico em alas quando lhe farejo a menção, pratico pequenos furtos de flores. Mas como a mente humana é ilógica, se tivesse um jasmineiro, a bela flor branca seria um prazer, não mais nostalgia, nem portal para memórias. As evocações passadas se apagam frente ao que nos acompanha até o presente. Na posse dele, provavelmente estaria agora caçando cheiro de pitangueira. As folhas dessa árvore tem aroma comestível, também havia delas naquele jardim.
Cheiros são passageiros, dão prazer e logo fabricam cobiça. Pela fugacidade, pelo caráter envolvente, que convoca ou mesmo provoca, o olfato é, entre sentidos, a melhor representação para o desejo. Nos desenhos animados a personagem, em transe, voa carregada pelo aroma da flor, da comida fumegante ou do perfume da amada. Cheiros antigos, do tipo que nos transporta para estados de espírito do passado, são uma curiosa combinação de nostalgia e desejo.
Quanto à nostalgia, os psicanalistas insistem em que nossa história pessoal é praticamente obra de ficção, que todos tem dom literário para criá-las. As lembranças são editadas ao gosto pessoal, em geral a serviço de desejos que se escondem por trás dessas pequenas evocações. Já os desejos são um motorzinho que nos leva na direção do que está em falta na nossa vida. Cobiçar algo que já se teve, como os jasmineiros perdidos, é falsamente querer algo do passado. Na verdade, é um desejo atual que se traveste de antigo.
A partida daquela casa perfumada significou uma guinada no meu destino. Minha mãe, viúva, casou-se com aquele que tornou-se um novo pai e mudamos para outro país. Valeu a pena, mas ali ficou um destino que nunca vivi. Quem teria me tornado se nunca tivesse abandonado a terra natal? Jasmins têm cheiro daquela que nunca cheguei a ser. Cobiço-a por ser desconhecida. Nela cabem todas as idealizações, pois a realidade é sempre pobre frente à fantasia. As saúvas ganharam a disputa porque a árvore real é mais delas do que minha. Para os insetos eram folhas doces, saborosas, alimento de verdade. Para mim, pura ilusão.