Somos todos Marcelinhos
Tudo o que você queria rir sobre a pornografia mas não tinha coragem de fazer!
Os adultos saem e, distraídos, deixam disponível conteúdo impróprio para menores no computador. Marcelinho aproveita que está sozinho para ler alto o que não devia. É criança e sua leitura é engraçada, titubeante, porque em geral não entende o que lê, como o dos que estão aprendendo. Marcelinho é um fantoche e seus quadros de humor para adultos circulam pela internet intitulados “Marcelinho lendo contos eróticos”. Evidente que as histórias pornográficas são escolhidas a dedo, para aumentar o efeito cômico, entre as mais estúpidas e mal narradas, embora nesse setor seja raro achar alguma que não o seja. Alguns bons escritores e cineastas conseguiram fazer antológicas cenas de sexo, cuja qualidade advinha de uma sensualidade em geral ausente na pornografia.
A graça do fantoche está em nos re-conectar com a curiosidade sexual infantil. Todo adulto certamente lembra de alguma cena na qual, enquanto criança, viu ou lhe contaram algo a respeito de sexo. Um interesse lúbrico, que chega cedo na vida, move os pequenos em jornadas detetivescas em busca dessas informações que, quando obtidas, fazem pouco sentido ou são interpretadas de modos equívocos.
Hoje em dia, na sexualidade que a mídia e a arte difundem continuamente, as crianças são expostas a muito mais do que deveriam ver. Porém, as imagens ou palavras não contém significados diretos ou óbvios. Os pequenos não entendem a mecânica da relação sexual de primeira. Por isso, constroem suas hipóteses, que são as teorias sexuais infantis, a partir de prazeres que conhecem bem, associados à excreção, à alimentação e à agressividade.
O quadro de Marcelinho, com sua voz infantil, lendo esses textos tira sua graça do encontro indevido entre a curiosidade infantil, saudável e bem vinda, com a exposição explícita daquilo que ainda não está no momento de compreender. A criança vai “descobrindo” o sexo aos poucos, só o que está suportando saber, é ela que deve dar o ritmo.
Mesmo depois de crescidos, somos todos Marcelinhos: o sexo é um constante desafio, uma incógnita. Na verdade, achamos que os outros estão fazendo coisas mais ousadas e divertidas das que nos ocorrem e uma miríade de promessas de prazer acena do horizonte. Seguimos a vida toda acreditando num paraíso do sexo, um hipotético quarto dos pais, onde estariam acontecendo peripécias incríveis. Ali os grandes fariam as coisas realmente grandes: infalíveis, longos, múltiplos e plenos orgasmos, que só ocorrem de forma tão espetacular na pornografia e em nossa imaginação eternamente infantil. As acrobacias e aventuras sexuais comicamente lidas por Marcelinho desvanecem um pouco do excessivo prestígio que damos ao sexo. Afinal, a grama do vizinho pode não ser tão verdinha.
Alma animal
Além de um vínculo amoroso terapêutico, um animal de estimação costuma ser um duplo do dono.
Donos de animais de estimação costumam ser acusados de dedicar-lhes um amor excessivo, por tratá-los como filhos. Isso é considerado um obsceno deslocamento de afetos. Tendo a discordar, quem quer filhos tem filhos, cães e gatos geralmente ocupam outro lugar.
Talvez a melhor representação disso esteja na concepção de Dimons que encontramos em “Fronteiras do Universo”, uma trilogia de que se inicia com “A Bússola de Ouro”, do britânico Philip Pullman. Estes são uma duplicação das personagens, sua “alma de estimação”. Na história, cada humano tem um Dimon (ou Daemon), sua extensão animal, como se a alma caminhasse a seu lado e ainda fosse possível dialogar com ela. O de Lyra, a personagem principal, chama-se Pantalaimon e pode assumir várias formas, mariposa, gato do mato, arminho, morcego, mudará conforme a necessidade. Quando ela crescer, sua personalidade tendo atingido uma forma mais definida, o mesmo ocorrerá com ele que assumirá uma identidade estável, sua melhor tradução.
Oriundo da mágica Oxford, Pullman lecionou lá como seus mestres Carroll, Tolkien e Lewis, mas encontrou um nicho de fantasia próprio. Conseguiu dar corpo novo a um recorrente aspecto do mundo mítico: as nossas metamorfoses como animal. Em muitas sociedades antigas os animais eram pensados como seres de outra cultura, não como natureza, tais como nós os concebemos. Imputam-lhes linguagem e credos, assim como atributos mágicos específicos a cada espécie. Conservamos algo dessa visão mágica, por isso o animal se presta para metaforizar o caráter e predicados que supomos ter.
É dessa ordem a relação que estabelecemos com nossos animais de estimação, cujo maior mérito é estimar o dono. Se são tratados como filhos, o são somente num aspecto da parentalidade, aquele no qual o filho é uma extensão do narcisismo dos pais: “‘Sua Majestade o Bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos.” , já dizia Freud.
O excessos de zelo com os animais de estimação parece ridículo aos que estão fora da cena. Mas quando problemas de saúde os afetam, seus donos apresentam um genuíno sofrimento, que aprendi a jamais subestimar. Da mesma forma, a morte de um animal de estimação arrasta consigo uma parte de nós, afinal, não dizem que os animais se parecem aos donos?
Por essa função de duplo que o animal ocupa, comemoro quando um paciente passa a estimar um para chamar de seu. Dialogar com essa criatura, adivinhar seus desejos e necessidades, é uma experiência amorosa que funciona melhor que muitos anti-depressivos. Se necessário use, não tem contra-indicações, além de que sempre é bom descobrir a cara de nosso Dimon. O meu é um Bulldog Francês ancião, cujos olhos enormes e dóceis mascaram uma natureza insubordinada. Meu número.
Confissões de uma centopéia
Confissões de uma centopéia: consumir é uma forma toxicômana de desejar.
Quando jovem adorava histórias de pioneiros americanos e sua vida difícil. A compra de um tecido, de uma fita, um instrumento, uma boneca, eram ocasiões raras e comemoradas. Aquela vida espartana, em cujas páginas gostava de me aninhar, parecia valorizar os objetos com os quais se convive, eles precisavam de muito menos coisas que nós. Sentia o aconchego da justa medida, de um tempo em que se era livre da necessidade de consumir. O vasto acesso a uma infinidade de objetos cansa: o que parecia possibilidade torna-se compulsão, é o feitiço que acaba dominando o feiticeiro.
Possuo muito mais sapatos do que necessito: fosse uma centopéia, estaria abastecida. Certa vez, discutindo o porquê dessa fascinação por calçados com uma amiga, ela observou: o sapato é a única peça do vestuário que mulheres de qualquer silhueta podem comprar! Serve para todas, sempre cai bem, sejamos mais ou menos afortunadas pela beleza. Se a democracia pédica é uma realidade, conclui-se que, mais do que de sapatos, gostamos é de poder comprar.
Homens trocam carros que ainda estão ótimos; os celulares são os sapatos dos adolescentes; crianças acumulam tantos bonecos ou carrinhos que se atrapalham para brincar; idosos são vítimas dos canais de compras. Uma amiga que vivia com os pais velhinhos tremia cada vez que soava o interfone, alguma encomenda estapafúrdia estava chegando!
Independente do número que se veste, idade ou sexo do consumidor, a publicidade sempre tem algo a nos oferecer. Sereias cujo canto nos fascina, comerciais e lojas parecem saber como traduzir nossos desejos, sempre tão difíceis de compreender, em objetos passíveis de comprar. Nunca sabemos bem o que queremos ser ou ter: a quem, como e quando amar, como trabalhar, como descansar, de quais prazeres usufruir, como fazer para ser admirados. A pergunta do gênio da lâmpada é sempre angustiante: quais seus desejos? Em termos de consumo, tudo isso fica fácil de definir: as crianças, os amigos secretos e parentes são instruídos a pedir algo em datas festivas, ocasiões em que felicidade e amor se materializam, parecem compráveis. Por isso nos frustramos tanto.
Consumir é uma satisfação que pede sempre mais. Como todas as ilusões, essa idéia de que, mesmo por um instante, é possível saber exatamente o que nos faz falta acaba sendo um alívio provisório. Mas como um vício, só funciona se não parar. Quando o objeto está em mãos, o vazio já se instala. Compras só adiam a insatisfação, que ruge mais forte quando provocada. O consumo é o ópio do desejo, entorpece o que realmente nos move. Enfeitiçados pelo canto das compras, ignoramos nossos verdadeiros desejos. Estes, só se expressam se tivermos coragem de enfrentar, com angústia, a pergunta verdadeiramente genial: afinal, o que você quer?
De quem é?
Antes da erudição, a entrega à arte. Antes ser curioso do que inibido!
Um grupo de jovens em viagem pela Europa fez um experimento cômico: no Louvre, escolheram aleatoriamente uma obra obscura, uma paisagem sem graça, irrelevante se comparada com outras pinturas importantes daquele museu. Admiravam explicitamente o dito quadro, fotografando-se em frente a ele e pedindo aos passantes que os retratassem a seu lado. Não demorou muito para que se criasse uma pequena comoção. O quadro teve seus quinze minutos de fama extra graças ao grupo de admiradores falsários. Várias pessoas se reuniram em torno dele e um guia atônito foi chamado a explicar a pintura de paisagem, pela qual costumava passar em branco.
Como se vê, o valor artístico também é uma questão de prestígio, que o diga o sempre nervoso mercado das artes. As gafes são inevitáveis, pois somos incultos crônicos. A vida é curta para dar conta de todo o acervo disponível para ler, escutar, assistir e olhar. Além disso, nem sempre sentiremos empatia pelas obras consideradas “primas”.
Se não formos críticos, estudiosos ou pesquisadores de qualquer uma das sete (ou mais) artes, não precisamos sentir vergonha de nossos julgamentos. Não é uma questão de etiqueta, é de estética: o “gosto”, “não gosto”, pode e deve ser levado em conta. Por outro lado, o acesso regular à arte costuma tornar a categoria do “gosto” muito mais ampla. Certamente viveríamos num mundo muito melhor se as oportunidades de sensibilização para o belo ou para o diferente estivessem ao alcance de todos.
Meu marido gosta muito de música, já meu ouvido é menos que amador. Prefiro que escolham para mim. Aproveito muito o ambiente que cada som cria, encaro a trilha sonora como uma oferenda do outro. Porém, quando ele me mostra uma música, sou reincidente num hábito que o chateia: antes de me entregar aos acordes, pergunto: “o que é? Ou: “de quem é isso?”. Fora as preferidas que sei de cor, raramente reconheço uma música, o que me envergonha bastante. Ele, paciente que é, me responde sempre: “primeiro escuta, depois te digo o que é!”. Sua ressalva é compreensível, pois antes do prazer da música, antecipo a preocupação com meu prestígio intelectual. Azar o meu, se fosse menos insegura aproveitaria ainda mais as audições caseiras.
No passeio ao museu, sempre vale a pena se informar sobre as obras que vai se ver, mas por que não confiar nos sentidos? Entendo o pessoal que parou na frente da paisagem obscura, usaram o movimento do público como guia, por que não? Depois do encontro com o quadro, o olhar define a paixão, ou não. Não importa como nos deixemos levar até ela, deixar-se arrebatar pelo prazer de uma obra tem que ser mais interessante que a erudição vazia. Em primeiro lugar simplesmente pare, olhe e escute! Depois, aprenda.
Voyeur de leituras
Espiar o livro alheio é indiscreto, mas irresistível!
No ônibus, tal era meu empenho em descobrir a identidade do livro que uma moça estava lendo que pegou mal. Num solavanco, quase caí sobre ela. Imagine a posição esdrúxula que a missão requeria. A pobre vítima da ostensiva curiosidade fechou o livro, colocando a mão em cima da capa (maldita!), e proferiu um ofendido “com licença!”. Percebera a indiscrição, reagia como se estivesse lhe espiando o decote. Apesar da natural resistência, o nome do livro acabou sendo descoberto: era evangélico. Foi um banho de água fria. Senti como se tivesse sido expulsa de uma comunhão imaginária, composta pelos que navegam no mesmo universo de fantasias. As escritas religiosas não me tocam, a empatia com aquela leitura era impossível. Uma tristeza, meus esforços haviam sido inúteis.
Sou capaz de ridículos estratagemas para descobrir qual é o livro que alguém esteja lendo em um local público. A capa contém a chave desse mistério, desvela a alma do leitor, é o acesso para um acervo potencialmente partilhável. Quem lê um livro que conhecemos deixa de ser um desconhecido. Porém, essa curiosidade abusada é uma imperdoável profanação da intimidade. Eu devia, como psicanalista, suportar estoicamente a introspecção do próximo. Só me revelariam seus pensamentos quem quisesse.
A leitura é uma intimidade portátil, podemos carregá-la na bolsa, no bolso. É uma experiência onírica controlável, nesse sentido melhor do que as fantasias rebeldes dos sonhos noturnos. Se empolgante, nos possuirá, mas também podemos abandoná-lo para divagar, assim como postergar o clímax. Não é por acaso que a leitura foi acusada de substituta ou incentivadora do onanismo. Sim, trata-se de um prazer solitário: o de embalar sonhos.
Um livro pode livrar-nos do ambiente tenso de uma sala de espera, da imobilidade angustiante da viagem ou do vazio de uma conexão. Na cafeteria, ele mantém afastados os conversadores indesejáveis. Livro é o antônimo de um cachorro, quem sai à rua com seu animal de estimação tem papo garantido. Ao contrário, leitura é refúgio, defensora da solidão aprazível. Por que, então, essa deselegante intromissão na leitura alheia?
Meter-se no livro do outro é voyeurismo, do tipo clássico. O mesmo que leva a criança a espiar seus pais, ou que alimenta a pornografia. O prazer alheio observado ou imaginado, revela e ensina, o voyeur viaja na cena, imagina-se parte dela. De forma segura, já que o espião se protege no anonimato. Olhando, aprendemos os caminhos que o desejo almeja percorrer. Da mesma forma, descobrir a obra que alguém lê é participar da sua cena imaginária, de suas fantasias, adivinhar seu sonho acordado. Não passa de uma devassidão pueril, mas a moça tinha razão de ficar furiosa: é uma desagradável invasão de privacidade. Incontrolável, no meu caso.
A história do macaco
Sobre a paranóia nossa de cada dia, essa que nos cega para a solidariedade e os bons encontros!
Um sujeito dirige de madrugada por uma estrada erma quando descobre que está com o pneu furado. Pior, está sem macaco. Desesperado, enxerga uma luz ao longe. Deve ser uma casa, pode pedir ajuda. Começa a caminhada rumo à salvação, quando lhe ocorre que o julgarão inconveniente por acordá-los àquela hora, sendo um estranho e pedindo um macaco. Talvez atirem pensando ser um ladrão. Pode estar interrompendo um casal que namora e irão odiá-lo. Segue seu rumo imaginando cenários terríveis e que irão lhe negar o pedido, mas mesmo assim bate na porta. Quando ela se abre, nosso viajante já está furioso com os moradores e convicto que irão maltratá-lo. A primeira coisa que ele diz é: “Quer saber de uma coisa, pegue esse seu macaco e enfia…..!”.
Esta é uma anedota antiga, mas muito bem nos ilustra. Quantas vezes ocorre estarmos precisando de uma mão amiga e supomos antecipadamente que nos será negada. Ao invés de pedir ajuda, agredimos a quem nos quer bem, mal interpretamos seus atos, convictos de que traduzem rejeição ou má vontade.
Quando infelizes, olhamos tudo e todos com as lentes do mau humor e do ressentimento. Alguém deve ser culpado pela tristeza que sentimos. Sem perceber, odiamos todo mundo. Por que, então, não haveriam eles de sentir o mesmo em relação a nós? Melhor ainda, preferimos pensar que são os outros que odeiam. Aos próprios olhos, somos anjos que só querem o bem do próximo. Atribuir seus sentimentos ao outro é uma “projeção” – sentir que vem de fora o que está dentro – é assim que os psicanalistas chamam esse mecanismo. Considerar-se alvo de intenções ruins por parte dos outros não deixa de ser uma paranóia, forma da loucura que se serve fartamente da projeção.
Paranóico é o sujeito que acha que o mundo conspira contra ele. Nessa visão delirante, tudo gira em torno de si. Ele possui a certeza de ser o umbigo do universo. Alguém tão importante só pode ser a reencarnação de Jesus, John Lennon, Joana D’Arc ou Napoleão, conforme o gosto do freguês e o momento histórico. Dizemos que ele tem delírio de perseguição, pois de fato trata-se de alguém sempre alerta, que precisa ficar esperto para não sucumbir.
Mais triste é dar-se conta da paranóia cotidiana entre aqueles ditos normais. Na maior parte do tempo os outros não querem nosso mal, tampouco nosso bem, simplesmente estão ocupados com outra coisa que não nossa digníssima pessoa. Os outros são como os moradores sonolentos daquela casa, até abrir a porta e escutar o que queremos, não estão nem aí para nós. Mas, uma vez informados dos nossos pedidos, necessidades e queixas, em geral há em volta gente boa com quem contar. Teremos o macaco de que precisamos e, não duvido, ajuda para trocar o pneu.
Mentiras sinceras me interessam
Frente a todo elogio, nos consideramos uma fraude. Já as críticas, ganham credibilidade imediata!
Noite, pai e filha param numa loja de conveniência para uma compra rápida. A menina se impressiona com as moças exuberantes que estavam ali, e pergunta ao pai se elas, tão altas, não seriam modelos. Num momento de distração da garota, o pai aproveita para transmitir a observação dela às duas travestis, que ficaram naturalmente encantadas. Seu trabalho exaustivo de montar uma bela e convincente imagem feminina fora recompensado.
As travestis são biológicamente homens, mas sentem-se mulheres e têm que carregar o fardo do sexo em que nasceram. Costumo brincar que o melhor filme sobre mulheres, para quem lhes quiser conhecer os segredos, é: “Priscila, a rainha do deserto” (Stephan Elliott, 1994), onde os protagonistas são duas travestis e uma transexual. Afinal, ninguém sabe melhor do que esses abnegados cultuadores da condição feminina, que ninguém nasce mulher, torna-se. Naquele encontro, graças ao involuntário elogio da filha do meu amigo, parecer femininos é um desejo deles que se realizou. O estranho é que elogios são sempre assim: quando os recebemos nos sentimos enganadores, como se houvesse alguma falsidade ali, uma ilusão que alimentamos, uma mentira.
O que temos de positivo é, aos nossos olhos, vivido como uma farsa, ridícula imitação dos nossos ideais. Um dia seremos desmascarados. Se alguém louva nossa obra, aparência ou valores, está, pensamos secretamente, redondamente enganado. Quando imaginamos algo que vamos fazer, as fantasias sempre incluem algum tipo de vitória, algo grandioso, frente ao qual qualquer realização parece indigna de nota. Quanto à beleza, não é à toa que ela se chama de “aparência”. Lembro da Claudia Schiffer, dizendo que depois de acordar levava mais de hora para ficar com cara de Claudia Schiffer. Os valores morais, então, são os piores candidatos à autenticidade: um mínimo de intimidade consigo mesmo revela a condição egoísta, mesquinha e violenta dos nossos anseios e pensamentos. Por sorte, na prática é outra coisa.
É justamente essa consciência dos próprios bastidores que faz com que as críticas não sofram o mesmo descrédito que os elogios. Qualquer observação que nos desmerece ou diminui é tomada imediatamente como verdade absoluta. Se alguém der a entender (ou mesmo se achamos que essa pessoa pensa assim) que somos chatos, medíocres, incompetentes ou feios, levamos fé e faremos coro com essa voz. A crítica habita nosso interior e quando encontra aliados, reais ou pressupostos, se fortalece, se agiganta. Talvez as travestis se assemelhem mesmo às belas modelos, pois aquilo que forjamos, com trabalho e superação, é uma autêntica e admirável conquista. Aplausos são para o que conseguimos fazer com o que a vida nos deu. Somos mentiras sinceras, verdades construídas. Palmas para elas.
Efeito borboleta
Sobre Virgínia Woolf e a conquista de cada dia.
Certo dia, neste verão, tentei salvar uma borboleta. Estava presa entre as cortinas do hall de uma pousada. Sem jeito, tomei-a pelas asas e a destruí. Pode parecer ridículo, mas bom tempo sofri com a imagem do inseto mutilado martelando no fundo dos olhos. O episódio não estragou o dia, nem as férias, mas pinicava a alma, como assombração.
Tenho uma particular sensibilidade ao mundo animal, pertenço ao vasto contingente dos que sofrem com as desgraças dos bichos. Isso não faz que me sinta uma pessoa melhor, sei que se pode ser doce com os animais e amargo com os humanos. Mas não era essa a razão do peso da cena da borboleta: todo pensamento é em camadas, sempre têm algo por baixo. Esse pequeno acidente representava outro, anterior. Há dois anos, nessa mesma pousada, mergulhei afoitamente na piscina e colidi com meu marido, deixando-o com um horroroso olho roxo. Recém chegados da estrada, a água azul era um oásis, cheguei correndo e tchibum! Mutilei o rosto do meu amado, as férias da família, e ainda escutei deles a reprimenda de que poderia ter sido pior se minha vítima fosse uma das crianças que nadava ali.
Lembrei disso ao ler uma frase do romance “As horas” (de M. Cunningham), que tem como personagem a escritora Virginia Woolf. Ao despertar, a personagem, que é a própria Virgínia, pensa: “pode ser que seja um bom dia; precisa ser tratado com cuidado”. Palavras muito simples, que contém o espírito da obra dela, a quem passei as férias dedicada. Na frágil existência, cada gesto, cada dia são decisivos. Mais que fatos, ela privilegiava a descrição do olhar de cada personagem, narrou a vida mínima, a que as mulheres observavam enquanto os homens faziam coisas consideradas grandes.
Virgínia, que como todos sabem acabou suicidando-se na meia idade, viveu mais intensamente do que muitos que chegam na velhice. Por vezes cansava-se da vida, principalmente de si, mas não se tornou uma narradora mórbida. Mais romântica do que gótica, era dada a perceber a beleza. Observou e descreveu os humanos ao redor como animais curiosos: queria saber do quê vivem, qual seu alimento subjetivo, de onde tiram motivos para cada novo dia. Por que seguem adiante, perguntava-se, mesmo os que parecem ter tão pouco para levar consigo? O que mantém a marcha do mendigo? A jornada dos obreiros? A persistência dos burocratas? Dos que têm que cuidar um doente desenganado?
A eminência da catástrofe, que pode mutilar como fiz com a borboleta, como o salto impensado, valoriza a vida como conquista cotidiana. Carece cuidar de cada dia, reconhecer-lhe o encanto em suas expressões mínimas, pois do próximo ninguém sabe. Este “hoje” que bate asas em nossas mãos, é frágil, mas pode ser bom.
Uma magra na sala e…
Sobre as fantasias associadas ao preconceito com os obesos.
“Gordinha é como pantufa, todo mundo gosta de usar mas ninguém sai de casa com ela!”
Eis como uma amiga descreve sua vida amorosa, não pouco atribulada. O problema é que seus parceiros costumam desaparecer antes do sol nascer. Ela acha que fazem isso por vergonha de ser vistos em sua companhia, o que seria um ponto negativo para o currículo deles. Talvez ela tenha razão nessa inquietude: quem come mais do que devia acaba sendo, a princípio, um tipo de transgressor. Gordura, fruto da gula, passou a ser o pior pecado capital…
Talvez, para nossos tempos em que a imagem é tudo, a gorda represente um novo tipo de mulher proibida, da qual acredita-se ser possuidora de um tipo de luxúria oral. Capturada nessa armadilha de fantasias, minha amiga sente-se exilada das relações amorosas legitimadas, relegada a uma espécie de bordel da imaginação.
Hoje como ontem, dá muito trabalho parecer uma mulher recomendável. Agora é preciso suar pela boa forma e cobrir formas irregulares, comer quase nada em público, bronzear-se (sob supervisão dermatológica, claro) e ocultar marcas da idade. Parceiras jovens ou “bem conservadas” pontuam mais. Se necessário, como um dócil objeto de Pigmalião, terão que recorrer à lipo-escultura. Carnes brancas e flácidas não ficam bem. O espartilho, agora invisível, impera como nunca.
Gordinhos representam a tentação e são condenados por viver alheios à cultuada abstinência, por não destilarem em suor suas impurezas. Eles não têm os volumes nos lugares certos: seios fartos, traseiros carnudos, mas a barriga lisa, conforme apregoado pelo cânone da Barbie. Mas, se hoje as garotas podem exibir suas formas em decotes intermináveis e saias sumárias, não seriamos finalmente corpos liberados? Não é o que parece, pois só pode ser visto o que estiver dentro das regras. E com tantas regras a seguir, o exercício e a fome acabam se constituindo numa espécie de burka internalizada. Já o implante de silicone é a voluptuosidade domada.
Os gordos evocam um desejo fora de controle. É como se comendo impudicamente burlassem o trabalho civilizatório, esse que nossa selvageria interior sempre ameaça. Evoluímos para nos alimentar sem voracidade, no lugar da compulsão, queremos ver a força de vontade. Boas maneiras e boa forma são ditadas pelo mesmo manual de etiqueta, essa que nos faz parecer tão ponderados e adequados. Idealizadas magérrimas mulheres francesas que saboreiam mini porções são o antônimo dos estigmatizados gordos, apresentados como selvagens devoradores de montanhas de fast-food. De fato, há gordos que comem sem prazer, só para se estufar, afogar a ansiedade, mas não é só disso que a obesidade é feita. Porém, a verdadeira pergunta é por que isso é mais condenável do que o igualmente estranho prazer de passar fome?
O momento pede pratos exíguos: comida fina que parece natureza morta, de alto apreço estético e baixo valor calórico. A mulher magra e musculosa é tida como a boa moça, enquanto a gorda – não precisa ser uma obesa mórbida, basta fugir ao padrão – evoca prazeres pouco domesticados. Os mais interessantes. Outrora, ressaltando os territórios da boa conduta e o indispensável tempero do proibido, dizia-se às moças que lhes cabia ser como uma dama na sala e uma puta na cama. Quem sabe, agora mudamos a frase, para lhes recomendar que sejam como uma magra na sala e uma gorda na cama?
O preço da masculinidade
Sobre os desafios que um menino enfrentava para provar-se homem. Esse tempo acabou?
No interior do Rio Grande do Sul alguns pecados são imperdoáveis. Para um cão pastor atacar uma ovelha é evento que só acontece uma vez: pagará com a vida. Aliás, um dos ditos que corre por aqui é “cachorro que come ovelha, só matando”. Supõe-se que o ato selvagem despertará uma gula ancestral, a fera acordada não se resignará mais à doma.
Esta é a história de um menino e seu cão “criminoso”. Ela me foi contada por sua irmã mais moça, que já avó nunca esqueceu. Era um pastor belga, a sombra negra do seu jovem dono, mas cometeu o crime de caçar o que devia proteger. O pai, homem antigo, achou que o animal devia ser punido pelo dono, assim tornando o evento exemplar para seu filho. Exigiu que ele matasse seu animal de estimação. O garoto recusou, mas os peões por ali reunidos observaram que não seria muito máscula semelhante covardia. A provocação funcionou e ele se embrenhou com seu parceiro no mato. Sumiu o dia todo. Noite fechada, as mulheres da casa choravam e já temiam por ele, quando voltou, silencioso, soturno. Nunca mais falou sobre isso, mas parecia ter executado a própria alegria. Era agora um homem, mostrou o desprendimento de um guerreiro, pagou o preço da masculinidade. Tornou-se um adulto tumultuado, nunca abandonou as terras do pai, foi seu predileto e razão de seus cabelos brancos.
Muito se diz sobre o árduo caminho das mulheres pela libertação. Foram milênios de opressão e dois séculos de luta das feministas. A cada 8 de março saudavelmente lembramos disso porque ainda há muita desigualdade. Por sorte, na esteira das lutas feministas, também a condição masculina teve suas regras alteradas. Histórias como essa tendem a não se repetir. Se bem é verdade que sempre cometemos algum gesto de assassinar a própria infância para crescer, a doação dos brinquedos preferidos já basta. Quanto à identidade sexual, cada dia fica mais claro que é incerta e transitamos sempre perto da raia do sexo oposto. Isso não se confunde com ser gay: homossexuais amam o próprio sexo, mas têm os mesmos dramas de identidade que os héteros.
Como o menino da história, estamos sempre sendo chamados a provar que nos tornamos suficientemente masculinos ou femininos, uma conquista sempre incerta. Que o digam as mulheres sem filhos, assombradas pelo olhar superior das supostamente legitimadas pela maternidade; os solteiros ou separados heterossexuais, que se envergonham sem a presença ostensiva de um parceiro sexual; os virgens tardios. As mulheres já não sabem bem o que é ser uma e, graças a elas, os homens carecem das certezas milenares. Não deviam queixar-se disso, já não serão eternos soldados, não precisarão pagar o preço da tristeza de assassinar a própria sombra, essa que brinca ao nosso lado enquanto caminhamos.
(publicado na Revista Vida Simples, edição de março)