Uma por todas: Stella a detetive de “The Fall”
Para os viúvos e viúvas de Lisbeth Salander, o seriado “The fall” é um consolo.
Lisbeth Salander foi uma heroína ímpar, ela apareceu na trilogia Milenium e encontrou a consagração longe dos olhos do seu criador. O sueco Stieg Larsson morreu sem ver a carreira de sua criatura e, principalmente sem poder nos brindar com a continuação de suas aventuras. Ela era muito jovem, tão absurdamente inteligente quanto emocionalmente inibida, bissexual, de aparência adrógina, forte e ágil como uma ninja. Seus inimigos estavam todos na lista dos lobos maus: machistas, fascistas, perversos egressos da corja das ditaduras, representantes principalmente do despotismo patriarcal. A todos que não a conhecerem ainda só posso invejar, pois já li todos os livros e assisti a todas as versões cinematográficas.
Para meu consolo, uma nova detetive surgiu. A estréia do seriado britânico The Fall (que pode ser assistido no Netflix, veja o trailler em http://www.youtube.com/watch?v=tP5Tl04gv3g ), nos brinda com a interessantíssima personagem da detetive Stella Gibson. Nesta primeira temporada ela chega a Belfast para caçar um assassino de mulheres. Desde o começo da narrativa, ao contrário de Stella, nós sabemos quem ele é, como escolhe suas vítimas e quais suas técnicas, portanto, não se trata de mistério, mas sim de um duelo entre eles.
O criminoso é um jovem e bonito pai de uma família margarina. Além de uma esposa interessante, enfermeira de UTI pediátrica, duas crianças lindas, ele tem uma profissão bacana, da qual nunca ouvimos falar aqui: é “conselheiro de luto”, seu trabalho como funcionário público é acompanhar as pessoas que estão sofrendo as conseqüências de uma perda. Como se vê, gente boa. Nos intervalos, estrangula mulheres com requintes de sadismo.
Stella é linda, é uma loira parecida com Merryl Streep quando mais jovem (Gillian Anderson), veste-se formalmente mas transpira sensualidade. Sua presença faz um contraponto com a tradicional Irlanda, pois ela é solteira convicta, não parece nem um pouco inclinada à maternidade e visivelmente gosta de sexo, do qual não se priva sempre que alguém lhe interessar. É uma figura forte, como já vimos em outras detetives televisivas, mas ao contrário da maioria delas, inclusive Lisbeth, não parece afetada por traumas pessoais que configurem algum tipo de motor de vingança. De seu passado sabemos pouco mas algo muito significativo: a primeira (de várias) formações universitárias foi em antropologia. O que significa uma mulher antropóloga como heroína?
Acima de tudo, temos uma mulher marcada pelo relativismo cultural. Ela sabe que as prerrogativas de seu gênero respondem a um lugar e tempo, podem e são diferentes em outros contextos. Ela, portanto, escolherá seu jeito de ser feminina. Talvez o visual tatuado e ambíguo de Salander seja muito mais contemporâneo do que a loira de olhos azuis e terninho, mas Stella nos garante que se ela quis aparecer assim é porque lhe convinha, faria qualquer coisa diferente que lhe ocorresse, conforme o caso. O nome do seriado “A Queda”, poderia ser uma alusão à buscada derrocada do homem mau que ainda resta e se esconde atrás da renovada imagem do contemporâneos e democráticos pai e marido que estão surgindo. O lobo na pele de cordeiro agora divide a troca de fraldas com a companheira, mas odeia as mulheres, as teme, precisa mostrar-se superior. É como senhores da morte que os homens consagraram sua supremacia ao longo de milênios, nas guerras que os fizeram heróis, principalmente frente uns aos outros. Neste momento, pelo jeito, há uma guerra dos sexos em curso e nesse embate temos Lisbeth e Stella como heroínas na ficção.
Só lamento que a segunda temporada só começará a ser filmada em 2014. Até lá, quem poderá nos defender?
@ Laerte
na arte e na vida, autor@ de imagens intrigantes, sou fã
Tenho várias tiras do Laerte Coutinho coladas numa parede em meu consultório, são como enigmas que seguem me interrogando. Mais do que um cartunista, ele escreve poesia e filosofia com imagens. Suas tiras são abismos de múltiplos significados nos quais me perco. Todas as recomendações são poucas para que o leitor conheça sua obra. Ele é certamente um dos artistas mais importantes do Brasil.
Quando já o admirava, ele passou a dedicar sua vida a um tema nada prosaico: a identidade sexual. Começou a vestir-se de mulher, frequentava o “Brazilian Crossdresser Club”, discretamente, sob o nome de Sônia. Aos poucos, o prazer de usar a indumentária do sexo oposto deixou a clandestinidade. A Revista Piauí de abril (n. 79) dedica-lhe várias páginas, numa reportagem na qual é tratado por vezes com pronomes femininos, por outras masculinos. Sua coragem desnuda a todos, quer usemos cuecas ou calcinhas. Na vida, como na arte, ele produz uma imagem intrigante.
A formação da identidade sexual é pura incerteza. Apesar disso, ao crescer cruzamos com duas perguntas: o queremos e o que seremos, ou seja, a quem desejamos e como nos pareceremos. Além da questão de gênero, o desejo aponta muitas variações, preferiremos velhos ou moços, miúdos ou graúdos, humildes ou opulentos, pessoas vistosas ou alguém cuja beleza brilha somente aos nossos olhos, e assim por diante. Porém, uma definição bifurca os tipos de objetos de desejo: do nosso sexo ou do oposto. Não falta quem lembre ingenuamente que a anatomia nos condena à complementaridade fecunda do macho e da fêmea. Quanto ao que nos parecemos, há roupas para deixar isso bem claro, convém que as usemos conforme o corpo com que chegamos ao mundo. Os militantes dessas certezas fecham a questão.
Os jovens contemporâneos a abrem e têm praticado a ambiguidade com uma liberdade inédita. A androginia das roupas e adereços, assim como a bissexualidade das escolhas amorosas, inquietam as gerações anteriores e as almas frágeis. Mas eles não fazem mais do que externar incertezas que todos guardamos no armário. Nunca seremos suficientemente convincentes como homens ou como mulheres aos nossos próprios olhos, da mesma forma, tampouco somos imunes à atração por pessoas de ambos os sexos. Forjamos em nós certezas, as gritamos para acalmar as dúvidas que nos sussurram aos ouvidos. Criamos mitos religiosos e até científicos para dizer que existe uma definição clara dessa fronteira.
Antigamente, quando queríamos dirigir uma mensagem a homens e mulheres dizíamos assim: “prezado (a)”, ou seja, se você for mulher, também será contemplada, em segunda opção. A luta feminista está tirando as mulheres desse segundo plano, hoje diríamos assim: “prezad@”. Com o fim da divisão dos mundos que acompanhava a separação dos sexos, a identidade sexual entrou em questão. Estamos banindo mais do que a opressão das mulheres, trata-se agora da derrocada dos clichês sobre as características definidas de cada gênero. Laerte, diz ser “uma mulher em caráter experimental”, eu te compreendo querida, eu também sou.
Armarinho
Sobre o divórcio dos os antigos dons femininos
Não sei corte e costura, mas prego botão, faço bainha e cerzidos, também posso bordar pontos simples e até tricotar algo que lembra um cachecol. Essas pequenas habilidades dão um mínimo de autonomia para não contratar costureira para coisas banais. Mantenho um pequeno costureiro para essas tarefas, o que se revela bastante complicado. Encontrar um armarinho na maior parte dos bairros é pior, perdoem o trocadilho infame, do que achar uma agulha num palheiro. Para quem não sabe (homens e mulheres), armarinho é uma loja especializada em aviamentos de costura, que são os apetrechos necessários para tal fim.
Perto de casa havia uma loja de 1,99 que fechou, onde funcionava uma espécie de armarinho clandestino. Entre flores de plástico e estatuetas de gesso, era possível comprar alguma linha (esqueça cores mais ousadas), talvez um fecho, mas não se esperava encontrar linhas de bordar e botões. O que foi que condenou esses lugares à extinção, ao ostracismo, à raridade?
Fiar, tecer e costurar historicamente sempre fizeram parte da condição feminina, tornando-se quase seu sinônimo. Porém, na conquista implacável de novos territórios a que nós mulheres nos lançamos, abandonamos com desprezo tudo aquilo que fazia parte do confinamento doméstico. Por milênios a metade fêmea da humanidade viveu exilada da vida pública, alienada de todas as decisões importantes, inclusive as que afetavam seu destino. Em sua gaiola, ela podia costurar e tecer, apenas na reta final do exílio feminino, algumas privilegiadas conquistaram o direito de dedicar-se a ler e escrever. Não admira tenhamos feito um divórcio litigioso das agulhas.
Temos assistido alguns resgates comerciais ou lúdicos das artes femininas: mulheres artistas têm ateliês de costura, assim como cozinheiras gourmets fazem das antigas ocupações um bom divertimento ou negócio. Mas reparem, aqui também elas estão avançando sobre o espaço dos homens: foram eles que fizeram da costura e da comida um comércio, pois o trabalho feminino sempre foi expediente interno.
Não seremos vistas entrando num armarinho, no máximo numa loja de Patchwork. Na realidade cotidiana, orgulha-nos a incapacidade de executar tarefas que seriam naturais às avós. Foi uma alienação necessária para criar uma nova identidade para a mulher. Mas talvez hoje possamos evitar a infantilidade adquirida: mulheres agora precisam de outros para vestir-se e alimentar-se, reproduzindo a impotência que os homens sempre tiveram no lar. A feminista Betty Friedan os chamava de “homens-criança”: no mundo eram importantes, em casa incapazes de cuidar da própria higiene. É triste copiar tanta inermidade. Uma boa meta para a cruzada feminina pela libertação talvez seja resgatar os dons e a sabedoria das nossas antepassadas. Incluindo a costura, entre tantos outros. Ou ao menos voltar a ser capazes de pregar os próprios botões.
PS: descobri um armarinho na minha própria rua. Dentro de um brechó!
Exuberância enrustida
Almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação.
Com seu inconfundível sotaque argentino, no intervalo do cafezinho da clínica, ela me disse: “tu te achas muito bonita”. Eu, uma psicóloga desalinhada, na casa dos vinte, ela uma psicanalista quarentona e cheia de charme. Em eterno litígio com minha imagem, custei a entender a alfinetada. Complementou: “é que não te pintas, porque achas que não precisas…”
Minha colega, de fato, não saía de casa sem delineador. Como se seus enormes olhos azuis necessitassem de algo a mais. Sempre precisamos de algo a mais, era o subtexto. É pretensão pensar-nos suficientes com o que temos. No fundo, todo discreto se acha grande coisa. Paradoxal, mas verdadeiro.
Discreto não é displicente, não é largado, não boicota a sua imagem. Ninguém é tão bonito a ponto de sobreviver ao esculacho. A Top Model não acorda com cara de Top nem de Model. Passei da idade que ela tinha na época, hoje não saio de casa sem delineador, mas costurei uma versão pessoal do conselho recebido.
O investimento na própria imagem pode ser óbvio, como no caso das pessoas chamativas, enfeitadas, ou mesmo uma aposta no detalhe, no que é invisível a olho nu. Professo o segundo tipo, daqueles que fazem o gênero da discrição presumida, da falsa humildade, da exuberância enrustida, chame como quiser. O cuidado com a lingerie, por exemplo, traduz esse espírito. Embora fique oculta a maior parte do tempo, é meticulosamente escolhida conforme o que revela, comprime, marca, sugere. Temos a depilação, que tenta fabricar uma superfície impecável, a tatuagem, enfeite perene da pele. Nunca cessa o combate à topografia da celulite e das estrias, acidentes geográficos a serem reparados. São preocupações obsessivas, parte de um complicado processo que termina com o arremate da maquiagem, reta de chegada de um labirinto de incertezas. Os homens não cansam de afirmar que não reparam nem na metade dessas providências, mas as mulheres insistem num cuidado, incapaz de calar a profunda inquietação, o pânico do erro. No fundo, almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação. Como sempre, a insegurança gera sede de poder.
Minha avó insistia em que uma mulher deve estar sempre impecável por baixo das roupas, “nunca se sabe quando vamos parar no hospital”, dizia. Sua intimidade era meticulosa no aguardo da síncope, do atropelamento. Eu prefiro cultivar a fantasia de que meus caprichos não se destinem ao encontro com o azar, que se enderecem ao escolhido para apreciar meus detalhes. Mas aprendi algo com minha amiga experiente: não há lugar para o pecado da soberba, reparei que até seus lindos olhos se beneficiavam do arremate.
Um lugar para nascer
Sentir-se em casa para dar a luz é imprescindível, mas não necessariamente a domicilio!
Tenho longa história de fascinação pelo parto, por isso queria opinar num assunto que atualmente tem suscitado polêmica: o parto domiciliar. Sou contrária à transformação do nascimento num momento artificial. Sofro com a atual alienação das parturientes do processo, parto não é cirurgia eletiva. Porém, fico intranqüila que o parto ocorra longe dos recursos de um hospital, pois são muitas as ameaças que pairam sobre a dupla mãe-filho no primeiro encontro.
Quando jovem tive várias oportunidades de acompanhar partos, primeiro como curiosa insistente num hospital público, após como estagiária no Hospital Presidente Vargas, onde testemunhei um trabalho exemplar. Não estive lá tantas vezes porque acho o parto um espetáculo fácil. O nascimento é algo demasiado estranho, beirando o traumático, que precisei ver, muitas vezes, para assimilar sua realidade e encanto.
Como um ser humano acontece, do nada ao tudo, dentro de um ventre? Inaugura-se com a loteria da fecundação, o feto segue um programa próprio de transformações, sugando os recursos da futura mãe, sem com licença nem obrigado. O parto, irruptivo, também impõe-se quando for sua hora. O corpo materno se esgaça, a passagem tem que se abrir, quer seja pelos músculos ou pelo bisturi. No ápice de um parto normal, o topo da cabecinha cabeluda se anuncia, surgida de um orifício onde não se acredita que possa passar nada, eis alguém começando seu caminho pela vida!
Hoje não estamos muito preparados para grandes emoções como essa, queremos só as planejadas, susto de parque de diversões basta. Frente aos acontecimentos fortes, não sabemos bem o que pensar, tememos nunca estar à altura. Preferimos planejar, controlar o destino. Santa ingenuidade.
Esquecemos que o parto, assim como a gestação, sabem seu caminho pelo corpo, podemos confiar nisso muito mais do que se ousa atualmente. Marcando cesarianas desnecessárias, muitas mulheres deixam de viver o protagonismo a que teriam direito. É outro o envolvimento de uma parturiente usando seus movimentos, seus músculos, para colocar o filho no mundo, em vez de vê-lo ser-lhe retirado, imobilizada, inerte, cortada.
Por outro lado, também trabalhei com crianças com problemas de desenvolvimento, muitas delas seqüeladas por partos mal-atendidos, gestações mal-acompanhadas. Uma UTI neo-natal é decisiva quando os contratempos se avizinham. Vi mais de uma vez mães e bebês à beira da morte, por complicações imprevisíveis, que se salvaram por estarem em um hospital.
Quero para minhas filhas, amigas e pacientes, para todas as mulheres que amo, o direito a serem cuidadas num hospital. Mas também a que sejam sujeitos atuantes, presentes de corpo e alma ao nascimento dos seus filhos. Participar não significa marcar data, contratar equipes de filmagem, mas sim a possibilidade de acreditar na própria força, parir sem alienação. O parto humanizado é uma antiga e valiosíssima reivindicação, mas não em casa.
Ruiva indomável
Sobre o filme “Valente”, aventuras da identidade feminina.
Com indescritível assombro, pois não há experiência tão mágica quanto o parto, dei à luz a uma princesa ruiva. De signo de fogo, me disseram. Signo ou não, mostrou-se um fato, desígnio de suas cores. Poucos anos depois, uma vigorosa morena já saiu opinando de minhas entranhas, assim segue pela vida. Os anos passam, a vida das três mulheres que somos se entrelaça, nos transformamos. Meus cabelos brancos evidentemente cobiçam o viço das belas jovens que aqueles bebês se tornaram. Mas há muito mais que uma bruxa invejosa na alma das mães de mulheres contemporâneas.
Na dúvida, assista “Valente”, um filme de animação infantil. Se quiser indagar o futuro, busque seus sinais no rumor do cérebro daqueles que hoje ainda são crianças. Os que tentam cativá-las com produtos culturais já não são crianças, mas certamente usam a bússola dos desejos delas como roteiro de suas tramas, são atentos a infância como poucos. Novos tempos pedem novas ficções, novas mulheres precisam de novas heroínas. Temos testemunhado isso com a transformação da tradicional Branca de Neve, de Rapunzel e outras, assim como o surgimento de novas formas de ser princesa.
Trata-se do recém estreado filme dos Estúdios Disney, com roteiro elaborado por duas mulheres. Nascida da linhagem de princesas de cabelo vermelho, que já tinha em Ariel (A pequena sereia) e Fiona (Shrek) boas representantes, a jovem princesa Merida é uma dona de indomável melena ruiva e cacheada. Aliás, em Portugal o título original do filme – “Brave”- foi traduzido para “Indomável”, expressão que melhor lhe cabe. Seu espírito é como seus cabelos, prefere o arco e flecha às lides domésticas, é exímia nessa arte. Em casa, se compraz nas narrativas de lutas do pai, um gigante ruivo que perdeu sua perna no combate com um urso. Ela é uma legítima filha de seu pai, partilha-lhe as cores e os prazeres viris, reconhece-se melhor nele do que na doçura severa e contida da mãe.
Chegada a idade casadoira, vê apavorada a chegada dos herdeiros dos clãs aliados do reino, candidatos à sua mão, dos quais nenhum remotamente se assemelha a um príncipe desejável para seu gosto. Rompendo com a tradição, para desespero da mãe, ela conquista a própria mão no torneio de arco e flecha, fugindo para a floresta, coberta de ódio pela tentativa desta de submetê-la ao detestável destino de esposa.
Eis então, numa série de reviravoltas, que ela inverte vários papéis das princesas dos contos de fadas tradicionais. Em primeiro lugar, com ajuda de uma bruxa mercenária, é ela que dá um alimento enfeitiçado para a própria mãe, similar à maçã envenenada da Branca de Neve. O objetivo do ardil é transformá-la para que ela fosse levada a compreender os desejos diferentes da filha. A magia produz um efeito inesperado: transforma a mãe justamente num temível urso, principal inimigo do pai, o que a coloca em grande risco.
A partir desse resultado, ambas terão uma jornada de aprendizagem. À filha cabe descobrir o poder feminino, oculto sob a camada de docilidade e submissão da esposa e mãe. Constata que o reino, sem a sabedoria da rainha (que estava ausente, transforma-se num pandemônio de testosterona desgovernada. À mãe cabe, na vida e neste filme, o papel civilizatório de domar os bárbaros para que se alimentem, se limpem e comportem feito gente e não como animais.
Já à mãe, sob a nova forma animalesca, está reservada a aventura de experimentar na pele a liberdade que sua filha tanto quer preservar. Como ursa descobre-se poderosa em combate (nunca duvidamos da fera que sabe ser uma mãe em defesa de suas crias), enquanto se apraz da desenvoltura de um corpo despido das amarras do pudor e da mímica contida do cotidiano das mulheres.
A tradição do conto de fadas têm várias histórias de “noivo animal”, das quais “A Bela e a Fera” é a remanescente delas. Neste caso, temos a inédita versão de uma “Mãe Animal”. No reino mágico, freqüentemente a personagem passa por transformações no corpo que vão ilustrando o caminho das mutações da alma. A passagem pela identidade animal nessas histórias costuma ter fins educativos, é uma espécie de lição, como na história da Fera, que perdeu a identidade de um belo príncipe para obrigá-lo a despir-se da soberba. Aqui, a mãe perde a delicadeza, assume uma forma masculina, poderosa, é obrigada a sentir-se na pele daquele que assombra até o próprio rei. O urso, versa a tradição folclórica, precedeu o leão na condição de rei dos animais. A rainha, mãe de Merida, que não lhe compreendia a identificação viril, é obrigada pela filha a vivenciar o outro lado da moeda das identidades sexuais em sua forma mais selvagem. Aprende-se duramente nos velhos e nos novos contos de fadas!
A sina desses feitiços somente se encerra quando uma expressão de amor revela-se maior do que qualquer repulsa que a versão animalesca possa suscitar. Neste caso, para mãe e filha. Ambas precisaram fazer esse percurso para aprender a amar-se. A filha viu surgir na mãe essa forma primitiva, uma ursa. Esse enorme animal tem um igualmente grande potencial simbólico: também se presta para a representação da maternidade. Não é totalmente estranho ver a maternidade misturada com algo ameaçador, pois essa mesma natureza que nos expulsou para a vida não raramente ameaça nos reincorporar. Por isso mesmo muitos homens desenvolvem dificuldades sexuais em relação àquelas que, outrora desejadas, tornam-se mães. A ursa, gigante peludo que hiberna para dar à luz, é uma tentadora figuração da mãe, acolhedora e protetora.
Cobiçadas e temidas, subjugadas e imprevisíveis, há séculos as mulheres iniciam suas filhas nessa arte do poder invisível. A princesa ruiva de “Valente” espera viver sem esse espartilho dos bastidores, da dissimulação, antigo campo de força das mulheres. Agora, a liberdade de movimentos e de opções, as escolhas e realizações que não dependem do amor e muito menos de um homem são, sim, opções válidas para as garotinhas que hoje comem pipoca no cinema. Já o são para suas irmãs mais velhas ou jovens mães. Às mulheres mais velhas viram o arco e flecha tomar o lugar da linha e da agulha e tiveram que suportar a transformação das suas filhas em seres livres, desgarrar-se da identidade clássica feminina associou-se assim a uma libertação da mãe. As herdeiras das conquistas feministas sentem-se permanentemente na contramão de suas mães. Mesmo que estas sejam poderosas, políticas, executivas, cientistas, artistas, sexualmente livres, separadas, mães solteiras, enfim, vivam quaisquer das novas formas de vida das mulheres, as filhas ainda as questionam, suspeitam-lhes uma servidão interior da qual se querem libertas.
Neste filme, a descoberta da jovem princesa passa por encontrar amor e admiração pela mãe, tudo aquilo que julgava ter descartado enquanto opção de identificação. A identidade viril é uma coletânea de certezas, gestos de afirmação e vitórias mensuráveis, numa cultura pautada pela legitimação de seus feitos. Nessa arena, as novatas têm se revelado exímias, como Merida com seu arco, mas ainda sentem-se estrangeiras, ilegítimas. Talvez essa condição de eternamente párias deva-se ao fato de que sacrificaram a identificação com a mãe. A princesa ruiva porta os traços do pai, carrega a certeza dessa filiação em suas paixões pelo domínio do que outrora era vedado a seu sexo, mas precisa saber o que fazer com o legado feminino. Nele, não se reconhece a priori, a aventura neste caso é a de saber-se mulher e por isso agora o desafio encontra-se do lado da mãe. Desta vez, a progenitora abandona o tradicional papel de rival, para tornar-se o mistério a ser decifrado, um amor a ser reconhecido.
É pelo amor da filha que a mãe volta à forma original, quando a jovem admite o que dela aprendeu. Já a mãe, ressurge marcada pela jornada de questionamento, precisa ver na sua descendente alguém capaz de escolhas, originalidade, opções que revolucionam a vida de ambas. As mulheres têm mudado vertiginosamente nos últimos séculos, mães e filhas sofrem com essa eterna mutação, sua relação é uma montanha russa de sentimentos. Já que indômitas, temos que ser, de fato, valentes para viver juntas tudo isso. Sou grata às minhas princesas irreverentes pelo tanto que seguem me revolucionando, pelo amor com que me permitem ensinar-lhes algo, pela parceria na infinita descoberta do que é ser uma mulher.
Uma princesa guerreira
Sobre o filme Branca de Neve e o Caçador e as novas princesas.
Por duzentos anos Branca de Neve sobreviveu na imaginação das crianças, fiel ao relato dos irmãos Grimm, pouco alterado por Disney. Essa história adormecida, sem nunca ter perdido as cores, pode-se dizer que acaba de ser novamente beijada.
2012 foi o ano da ressurreição da princesa morena, dois filmes a despertaram. Mas desta vez ela foi chamada à ação: em “Branca de Neve e o Caçador”, de Rupert Sanders, ela tornou-se uma princesa guerreira.
Essa trama confirma uma antiga suspeita: que a nova Rainha, a feiticeira Ravenna, assassinara o Rei. A enteada foi mantida prisioneira até que, como na história clássica, o espelho revele sua beleza. Agora a malvada não quer apenas matá-la e comer seu coração. A feiticeira Ravenna mantém-se linda e desejável vampirizando a juventude de jovens súditas. Branca de Neve é especial, pois lhe conferirá a vida eterna. Ao fugir, a princesa é ajudada por um cavalo branco, sem príncipe. Quando desperta de seu sono enfeitiçado não é para casar, é para liderar as tropas que derrotarão sua rival e salvar o reino aterrorizado pelo domínio nefasto de Ravenna. Já o Caçador é um jovem viúvo atormentado, que se culpa pela morte da esposa. Ele protege a moça paternalmente, lhe ensina lutar, mas se apaixona por ela. Ressurge também um amor infantil, William, que também é seu dedicado e apaixonado cavalheiro. Só que a princesa, convenhamos, tem mais o que fazer.
Muitas princesas sobreviveram ao esquecimento, várias conseguiram a juventude eterna. Branca de Neve foi a primeira delas a inaugurar um novo cânone: a princesa cantora de desenho animado. Só podia ser ela, novamente, a revolucionar o nicho das princesas clássicas: o amor não é mais o final feliz.
O que permanece? O fato de que crescer é tornar-se órfão. Nos contos de fadas a mãe amorosa morre rápido (quando na verdade é o filho perfeito que sucumbe, assim que começa a crescer e aparecer). É aí que as madrastas e bruxas são convocadas para representar os conflitos normais do desenvolvimento. E mais, a mulher terá que desbancar a mãe, cuja juventude fenece esperneando, superá-la em encantos. Deverá a seu modo matá-la, apropriar-se dos atributos femininos. Esse conflito alimenta a paixão das meninas por histórias de princesas e bruxas.
O que não tinha como sobreviver? A idéia de que a vida de uma mulher encontra o ápice no casamento. Da revolução de costumes dos anos sessenta, da libertação da tristeza pelos horizontes estreitos do lar, veio a certeza de que elas querem mais. Para nós, liderados por uma presidenta guerreira, não é uma surpresa.
PS: uma leitora me lembrou que era bom avisar que não é um filme para os pequenos! Concordo. Já para os grandinhos, até os já beeeem grandinhos como eu, é diversão garantida! Seguir pela vida afora em companhia de nossos contos de fadas prediletos, que se transformam para nos acompanhar, é uma experiência instigante. Se outrora eles animavam as veladas dos trabalhadores cansados, na voz dos contadores de histórias, hoje, através do cinema, eles nos reencontram já adultos. Igualmente cansados, agradecemos as boas doses de fantasia, que distraem e enriquecem. Ainda por cima nos re-conectam com a infância e com os personagens significativos da nossa história e constituição imaginária. Convém nunca esquecer, que mesmo depois que ela acabou, é a infância a matriz onde a fantasia nasce e se opera. Ali moram histórias que usamos como instrumentos para elaborar nossos pequenos problemas e dilemas. Nesse sentido, sou particularmente grata à Branca de Neve, que foi meu alter-ego durante alguns anos quando era criança. Foi muito bom reencontrá-la e torcer por ela em lutas e batalhas. Mesmo que a Charlize Teron (a bruxa) seja a mais bela…
Uma magra na sala e…
Sobre as fantasias associadas ao preconceito com os obesos.
“Gordinha é como pantufa, todo mundo gosta de usar mas ninguém sai de casa com ela!”
Eis como uma amiga descreve sua vida amorosa, não pouco atribulada. O problema é que seus parceiros costumam desaparecer antes do sol nascer. Ela acha que fazem isso por vergonha de ser vistos em sua companhia, o que seria um ponto negativo para o currículo deles. Talvez ela tenha razão nessa inquietude: quem come mais do que devia acaba sendo, a princípio, um tipo de transgressor. Gordura, fruto da gula, passou a ser o pior pecado capital…
Talvez, para nossos tempos em que a imagem é tudo, a gorda represente um novo tipo de mulher proibida, da qual acredita-se ser possuidora de um tipo de luxúria oral. Capturada nessa armadilha de fantasias, minha amiga sente-se exilada das relações amorosas legitimadas, relegada a uma espécie de bordel da imaginação.
Hoje como ontem, dá muito trabalho parecer uma mulher recomendável. Agora é preciso suar pela boa forma e cobrir formas irregulares, comer quase nada em público, bronzear-se (sob supervisão dermatológica, claro) e ocultar marcas da idade. Parceiras jovens ou “bem conservadas” pontuam mais. Se necessário, como um dócil objeto de Pigmalião, terão que recorrer à lipo-escultura. Carnes brancas e flácidas não ficam bem. O espartilho, agora invisível, impera como nunca.
Gordinhos representam a tentação e são condenados por viver alheios à cultuada abstinência, por não destilarem em suor suas impurezas. Eles não têm os volumes nos lugares certos: seios fartos, traseiros carnudos, mas a barriga lisa, conforme apregoado pelo cânone da Barbie. Mas, se hoje as garotas podem exibir suas formas em decotes intermináveis e saias sumárias, não seriamos finalmente corpos liberados? Não é o que parece, pois só pode ser visto o que estiver dentro das regras. E com tantas regras a seguir, o exercício e a fome acabam se constituindo numa espécie de burka internalizada. Já o implante de silicone é a voluptuosidade domada.
Os gordos evocam um desejo fora de controle. É como se comendo impudicamente burlassem o trabalho civilizatório, esse que nossa selvageria interior sempre ameaça. Evoluímos para nos alimentar sem voracidade, no lugar da compulsão, queremos ver a força de vontade. Boas maneiras e boa forma são ditadas pelo mesmo manual de etiqueta, essa que nos faz parecer tão ponderados e adequados. Idealizadas magérrimas mulheres francesas que saboreiam mini porções são o antônimo dos estigmatizados gordos, apresentados como selvagens devoradores de montanhas de fast-food. De fato, há gordos que comem sem prazer, só para se estufar, afogar a ansiedade, mas não é só disso que a obesidade é feita. Porém, a verdadeira pergunta é por que isso é mais condenável do que o igualmente estranho prazer de passar fome?
O momento pede pratos exíguos: comida fina que parece natureza morta, de alto apreço estético e baixo valor calórico. A mulher magra e musculosa é tida como a boa moça, enquanto a gorda – não precisa ser uma obesa mórbida, basta fugir ao padrão – evoca prazeres pouco domesticados. Os mais interessantes. Outrora, ressaltando os territórios da boa conduta e o indispensável tempero do proibido, dizia-se às moças que lhes cabia ser como uma dama na sala e uma puta na cama. Quem sabe, agora mudamos a frase, para lhes recomendar que sejam como uma magra na sala e uma gorda na cama?
Precisamos falar (ainda mais) sobre o Kevin
Trechos de nosso livro sobre a obra de Shriver, maravilhosamente reatualizada pelo filme de Lynne Ramsey. Nosso Oscar vai, sem dúvida, para ele!
Quando escrevíamos nosso livro, procuravamos detectar histórias que sintetizassem fantasias em circulação, que fossem uma espécie de síntese de sonhos e pesadelos coletivos, mitos úteis a uma época. Quanto às obras antigas, é fácil reconhece-las, pois o tempo é o melhor avalista. Foi quando surgiu o livro de Lionel Shriver, “Precisamos falar sobre o Kevin”, cuja leitura nos arrebatou, de tal modo que todo o primeiro ensaio do livro se dirige a ele, como fecho de ouro do que queríamos dizer. Após a publicação, seguíamos nos perguntando se a aposta tinha sido certa, o livro era genial, mas duraria? Se ele caísse no esquecimento, se fosse apenas um livro de época, brilhante mas passageiro, nossa reflexão sobre ele permaneceria útil? Acabamos de assistir ao filme incrível da diretora Lynne Ramsey, uma obra prima feita sobre ele. Neste momento, achamos que valeu. Boa oportunidade para recolocar a discussão em jogo, reproduzindo os trechos do livro sobre o Kevin, do capítulo que se encontra disponível on line em nosso site (https://www.marioedianacorso.com/psicanalise-na-terra-do-nunca/capitulos-online)
Um monstro no ninho: trechos do livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia” , Ed. Artmed, 2010.
Crianças demoníacas e monstruosas?
Em meados do século XX um novo monstro ganha terreno: o filho. Não estávamos em falta de figuras para o horror, ao contrário, nossa fantasia demonstra extrema criatividade em fabricar monstros. Qualquer novidade se incorpora ao nosso vasto bestiário fantástico, tanto que temos monstros de todos os tipos, encarnando todas as formas do medo, do horror, do inimaginável. Mas colocar as crianças, e principalmente as próprias, como monstros é realmente uma novidade.
A primeira metade desse século, convulsionado pelos massacres de duas guerras mundiais, mostrou o quanto somos capazes da destruição em massa, do caos, sem auxílios mágicos, sobrenaturais ou divinos. O mal foi dessacralizado, ele está entre nós. Foi em ventres humanos que se geraram os monstros que hoje nos assombram, e descobrimos quão longe podemos chegar. As crianças, os filhos, são caixinhas de surpresas: Curie, Einstein e Fleming foram filhos de alguém, mas Hitler, Mussolini e Stalin também!
Representações de crianças como sendo um problema, um incômodo, ou ainda como malditas, não são um fenômeno contemporâneo. Porém as histórias clássicas foram arranjando suas particulares maneiras de mascarar essas intenções, de suavizar o ataque. De forma velada, simbólica como nos sonhos, os contos de fadas narram vinganças dos grandes contra os pequenos, principalmente contra sua gula e o fardo de prover-lhes sustento. Aparecem como descartáveis comilões em João e Maria, onde são colocados como indignos de dividir o alimento com os pais, e acabam pagando caro pela voracidade de devorar até as paredes da casa de doces.
Em O Flautista de Hamelin o pedido da comunidade para livrar-se dos ratos pode ser lido como metafórico, pois as crianças também podem ser incômodas, parasitas inúteis. Não é por acaso então que o Flautista as leva embora pelo mesmo caminho trilhado antes pelos ratos. Estabelecendo uma equivalência simbólica, elas seriam nossos “ratinhos de estimação”.
Mas as crianças dessas histórias nunca se ocuparam do ofício da maldade. Na pior das hipóteses, elas constituíam uma personagem malcriada e egoísta, em contraponto com a boa alma da sua oponente, como a pequena heroína no clássico As Fadas de Perrault. A tarefa de representar o mal, de exercer a violência, o abandono, estava a cargo dos pais desnaturados, das madrastas, dos ogros carnívoros, de todos os malvados que deveriam ser responsáveis pelo seu crescimento. Os adultos eram os monstros, enquanto os pequenos eram as vítimas.
Também sempre houve filhos amaldiçoados, cujo nascimento acarretaria a destruição da família e do reino, como Édipo que desgraça Tebas, ou Paris que arruína Tróia, todas as mitologias conhecem personagens assim. O funesto destino dessas crianças estava marcado já antes do nascimento, geralmente devido a pecados cometidos por gerações anteriores, que agora vinham cobrar seu preço, arrastando seus pais e o reino para o desastre. De qualquer forma a maldade, o erro que iniciou a queda, precedia essas crianças que foram abandonadas para o bem dos pais. Como inutilmente fizeram Laio e Príamo, quando descartaram seus filhos, assim que souberam das profecias.
Em todas as histórias antes mencionadas, na dúvida entre uma geração e outra, os pais escolhiam a própria sobrevivência. Essa opção não é tão estranha em outra época ou culturas, como o é para nossos contemporâneos. Para nós, a proteção da criança é prioridade máxima, sendo a maternidade e a paternidade valores sociais muito importantes. Essa valorização é recente, data de poucas centenas de anos, quando o discurso moral e pedagógico passou a investir na sobrevivência e formação das gerações futuras, assim como a evolução sanitária lhes facilitou a sobrevivência. Antes, mais valia um adulto na mão do que várias crianças voando. Criança era um cidadão incerto, adulto era certíssimo.
Como para cada ação há uma reação, na vida e na ficção, vamos examinar como a atual exaltação da importância das crianças, e do papel dos pais, acarretou uma contrapartida, uma reação inconsciente, que está na origem de fantasias onde se atribui às crias humanas um valor negativo. Impedida de se exercer no discurso corrente, pois elas seriam o tesouro e a promessa da humanidade, a ambivalência em relação às crianças refugiou-se no território da fantasia.
Os exemplos são múltiplos, as fantasias de crianças-monstros estão bem disseminadas, mas escolhemos algumas, não necessariamente as melhores, mas as que fizeram um sucesso inequívoco. Sua popularidade, traduzida em permanência e difusão, nos indica que produziram algum eco social. A vantagem adicional é que contaremos com um acervo de histórias que é compartilhado, afinal, muitos as conhecem ainda que parcialmente.
Examinaremos uma vertente das fantasias relacionadas às crianças: sua origem, histórias aterrorizantes envolvendo a concepção, o parto e a criação de um monstro. Por isso, a mulher, a mãe, é uma personagem envolvida de forma inevitável. Ela surge enquanto vítima, oponente, protagonista ou causadora do mal, ou enquanto todas essas ao mesmo tempo. Consideramos que são obras eloqüentes desse viés, a gestação invasiva, satânica e alienante em O Bebê de Rosemary; o “parto” que irrompe e mata em Alien; o filho como um estranho no ninho, um cuco demoníaco, em A Profecia; ou o horror, desesperadoramente humano, presente no livro Precisamos falar sobre o Kevin.
Todos eles são alusivos, de forma direta ou indireta, à gravidez conturbada e à chegada dum filho monstruoso. Inevitável pensar, que junto ao filho maligno estamos indiretamente exorcizando sua coadjuvante inevitável, a fêmea humana, que no século XX tornou-se tão outra, tão diferente daquilo que nos séculos precedentes acostumou-se a chamar de mulher.
(da Introdução do capítulo 1, pg.29)
Um demônio demasiado humano: Precisamos falar sobre o Kevin
Para a psicanalista Helene Deutsch, há diferentes tipos de maternidade, que ela divide basicamente em dois grupos: um tipo é a mulher que desperta para uma nova vida através de seu filho, sem ter o sentimento de uma perda. Tais mulheres desenvolvem seus encantos e sua beleza somente depois do nascimento de seu primeiro filho; o outro tipo é a mulher que desde o princípio sente uma espécie de despersonalização na relação com seu filho; tais mulheres dedicam seus afetos a outros valores (erotismo, arte ou aspirações masculinas) ou esse afeto é demasiado pobre ou ambivalente em sua origem e não pode tolerar uma nova carga emotiva; o primeiro tipo estende seu eu através da criança, o segundo sente-se limitado e empobrecido1. Datado de 1944, o livro de Deutsch encontra ainda as mulheres em papéis sociais mais rígidos. Hoje, os dois tipos que ela teoriza convivem em cada mulher, junto com todas as nuances intermediárias entre eles. Em um livro chamado Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver2, uma escritora norte-americana, a literatura produziu um exemplo do que seria o segundo tipo de mulher. Nesse livro vamos encontrar a mesma trama de estranhamento anteriormente discutida, mas sem o apelo do demoníaco.
Aqui estamos sem máscaras religiosas ou fantásticas, face a face com as fantasias mais monstruosas encenadas por gente comum. Justamente, essa novela assusta por evocar “a vida como ela é”. É uma história ficcional, narrada pela mãe de um “garoto columbine”, como ficaram chamados os meninos assassinos que matam vários colegas de escola. Seu primogênito, Kevin, realizou um morticínio múltiplo, friamente calculado, de onze pessoas. Entre os mortos figura a vida pública da mãe, obviamente destruída após o evento.
Como muitas mulheres de nossa época, essa mãe não tinha pouco a perder: levava uma vida bem interessante quando a maternidade a deportou para um mundo desconhecido, cheio de novas regras e exigências. Numa espécie de idealização da vida da mulher independente, avessa à rotina encerrada e monótona da dona-de-casa, a personagem de Eva Katchadourian é uma nova-iorquina, escritora de guias de viagens para jovens, portanto, uma viajante profissional, culta e próspera. No campo amoroso ela é apresentada como igualmente bem sucedida, vivendo um casamento romântico com um homem atraente. Porém, não foi com os crimes cometidos pelo filho que a derrocada dessa vida idealizada de mulher livre começou, foi com seu nascimento, ou melhor, já durante a gestação.
Como sua homônima, a personagem bíblica, condenada a padecer após a expulsão do paraíso, Eva gestou e pariu com dor. Seu relato da experiência é tocante, o corpo começa a assumir outras cores, os seios lhe parecem ubres, a vagina, outrora fonte de prazeres, se tornou caminho para alguma parte, um lugar real, e não apenas para uma escuridão na minha cabeça. Queixa-se de ser um instrumento biológico, seu corpo deixa de ser propriedade privada, tudo o que me fazia bonita era intrínseco à maternidade, e até mesmo meu desejo de que os homens me considerassem atraente era uma maquinação de meu corpo projetada para expelir seu próprio substituto. Cruzada a soleira da maternidade, de repente você se transforma em propriedade social, no equivalente animado de um parque público. Como se vê, a obra é farta em sinceridade quanto às fantasias e contratempos da gravidez.
Corroborando seus temores, o marido de Eva a congratula pela gestação: bem vinda à sua nova vida! Nessa nova vida, sendo que ela gostava muito da velha, ela não escolherá mais como administrar seu tempo, sua alimentação. Suas prioridades serão as do feto, e ela descobre isso logo de entrada. Como uma princesa da ervilha, queixa-se do incômodo da situação: já estava me sentido vitimada, como se eu fosse uma princesa, por um organismo do tamanho de uma ervilha.
Eva desejou vagamente uma boneca, um bicho de estimação, um amigo imaginário, um substituto permanente do marido quando ele se ausentava, um troféu de sua relação, porém nasceu-lhe um novo papel social e um amo monstruoso. A vida anterior, da mulher bem sucedida e sem filhos é o paraíso perdido. Paradoxalmente, neste caso a tentação não veio da ruptura, da curiosidade e irreverência que sempre tornaram as mulheres tão perigosas. A tentação que provocou a expulsão de Eva veio do passado: desempenhar o mais tradicional papel feminino, a maternidade.
Não somos nós, é ela própria que se coloca na linhagem das mães de monstros, de que aqui nos ocupamos, ao descrever sua gestação assim: Já reparou quantos filmes retratam a gravidez como uma infestação, uma colonização sub-reptícia? O Bebê de Rosemary foi só o começo. Em Alien um extraterrestre nojento sai da barriga de John Hurt (…) Durante todo o tempo em que estive grávida de Kevin, combati a idéia de Kevin, a noção de que eu havia sido rebaixada de motorista a veículo, de proprietária a imóvel em si 3.
Uma vez nascido, o bebê Kevin foi visto pela mãe como possuindo uma personalidade própria, pré-existente, e destinada a se desencontrar com a dela. Ao contrário do marido, que esperava um filho genérico, tendo um papel pré-estabelecido para qualquer um que nascesse, para Eva não havia lugar nem para o feto idealizado. Desde o começo estabeleceu-se um duelo de subjetividades, uma tensão entre diferentes. Ele rejeitava seu leite, cujo sabor não suportava, sequer na mamadeira que tomava exclusivamente no colo do pai, chorava de forma incessante, alheio ao conforto de seus braços. As intermináveis gritarias de cólica pareciam ser exclusivamente para sua mãe, pois cessavam no instante em que o pai entrava em casa, e Eva via nisso uma intencionalidade maligna contra si.
Na primeira infância, Kevin negou-se a falar o quanto pôde, embora a mãe suspeitasse que ele estava apto para fazê-lo, e obrigou-a a lhe trocar fraldas até os seis anos, num descontrole esfincteriano que ela compreendia como mais uma forma de controlá-la, uma disposição do filho de obrigá-la a viver entre as fezes. Com o pai mantinha uma relação apagada, blasé, com a mãe de cotidiana tortura. A cumplicidade entre mãe e filho, na qual só ela parecia perceber a sordidez do espírito de seu pequeno monstro, só fez aumentar. O pai surpreende-se com as queixas da esposa, para ele Kevin era absolutamente normal, mas ela tinha certeza que isso era assim para que ela passe por louca.
A vida segue, as babás se demitem sucessivamente, os amigos o evitam, os professores o acham bizarro e ele se isola. O menino é diabólico a ponto de jamais ser pilhado, nunca é punido, faz a todos de bobos, principalmente o pai, que nunca vê o que não quer ver. A demonstração de sua perversidade só veio se comprovar com o desenlace do massacre final.
Após o banho de sangue, Eva e Kevin terminam vivendo um para o outro, continuando sua simbiose às avessas, dedicando-se e odiando-se mútua e intensamente. Nada mais lhes resta senão viver reclusos, ela transformada num fantasma, uma sombra do que fora, entocada em casa, apenas aguardando a próxima visita à penitenciária local onde ele cumpre pena pelos assassinatos. Justo ela, que sentia-se mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada na história alheia4.
Entre a mãe de Damien e a de Kevin há algo em comum, é o complexo de cuco. Embora parido das suas entranhas, Kevin é um ser com idiossincrasias próprias desde seu nascimento, cuja missão foi realizada: destruir a identidade de Eva. Damien, o menino-demônio, não descansa enquanto não elimina sua progenitora, ele não quer uma mãe, quer uma adoradora dedicada, uma fanática sem personalidade como sua babá Mrs. Baylock.
Embora não tenha empreendido o projeto da maternidade contrariada como Eva, a mãe de Damien também acaba sofrendo. Ela estranha-se da personalidade e frieza de seu menino, não consegue sentir com ele a conexão que supunha que existiria. Ambas suspeitam que haja algo de errado com seus meninos. O mais antigo, o diabo, ele tem suas razões, quanto a ele não é preciso angustiar-se, pois as forças do mal que podem fazer de um filho o algoz dos pais, estão além da vontade humana. Mas esse alívio moral não existe no livro de Shriver.
Na história de Kevin a mãe foi processada e condenada pelos pais das vítimas do massacre, a sociedade a fez pagar, privando-a totalmente de seu patrimônio e prestígio, pelos crimes do filho. É sua frieza, a incapacidade de ser mãe, a grande acusada pelos crimes do filho. Essa é a maior vitória dele, afinal, destruí-la era o que ele mais queria.
No livro, cada fiapo do tecido da ambivalência do amor materno é rastreado, assim como as contradições entre a maternidade e a liberdade das mulheres. Tampouco o pai sai pagando barato, é descrito como um cidadão típico americano, fútil e superficial, cujo ofício era buscar locações para serem cenários de comerciais. Na vida familiar é exatamente assim que ele se comporta, como alguém que apenas descobre o local, ele não cria nada.
Quanto a Eva, sua profissão também é metáfora de seu modo de vincular-se: para escrever seus guias, ela investiga formas, lugares e dicas para que as pessoas possam circular pelo mundo gastando pouco e incomodando-se o menos possível. Passar muito trabalho, gastar demasiado dinheiro, ou envolver-se em contratempos, não é uma boa forma de viajar, mas são percalços inevitáveis na vida cotidiana.
Viagens incluem revezes, mas eles não devem incomodar muito além de conexões perdidas, noites mal dormidas ou refeições ruins, não chegam aos pés dos sofrimentos que se pode ter quando no trabalho, no amor ou na família ocorrem fracassos, rupturas e dores. Viajando, andamos por lugares em que ninguém nos conhece, onde nada se espera de nós e procuramos extrair o máximo de prazer da forma menos dispendiosa possível. Eva conseguia viver assim, mas não havia jeito de ser mãe com esses critérios.
Na visão do pai, Kevin cumpria o papel social do filho, era um cenário, independente de quem ele fosse, enquanto Eva faria o da mãe, apesar de quem ela havia sido. Onde ela via alguém no filho, apesar de demoníaco, ele somente observava o clichê que queria ver, ficando ainda mais distante dele do que a mãe.
Os assassinatos cometidos por Kevin5, de certa forma, fazem valer o nome da mãe. Numa estranha negociação, Eva e o marido haviam decidido que caso o filho fosse menino, ele teria o pré-nome escolhido pelo pai e carregaria o sobrenome materno, Katchadourian, que é de origem armênio. Ela argumentou que seu povo foi cruelmente massacrado e por isso mereceria ser homenageado com a nomeação de seu filho6.
Na ausência de um pai que reivindicasse um papel maior, assim como do pai de Eva pouco sabemos, o menino tomou para si, literalmente, a herança desse massacre. Apenas mudou de lado, de vítima, passou para a posição de algoz, como se fosse um armênio que vingasse seu povo. Kevin sempre parece tomar as coisas de forma literal, como o fazem as crianças e adultos com graves perturbações psíquicas.
Uma mulher sem filhos, pode sentir-se “desfilhada”, como disse certa feita uma paciente que havia passado por múltiplas e sofridas experiências de abortos provocados. Em suas associações, essa expressão reverberava enquanto alguém que carecia de uma filiação, era “desfiliada” de uma família, por não tê-la continuado. Filiar-se a uma linhagem, ao inserir seu filho nela, pode fazer parte de um pacto entre uma mulher e um homem, a partir do qual eles criam algum projeto para seu descendente. A característica da negociação entre os pais de Kevin a respeito de seu nome determinou que ele tivesse que apegar-se a algum traço, de preferência materno, para fazer-se elo, conexão, entre uma origem, uma família, o passado de um povo, e um projeto de futuro, o seu futuro. Kevin é filho de um pai-cenário e uma mãe-viajante, entre eles não há síntese.
Para delinear um papel na vida, para fazer seus planos, um filho inspira-se em suas origens. Ele pode fazer isso a partir daquilo que orgulha ou mesmo do que envergonha a seus pais e antepassados, pode tomar essa base para continuá-la ou para romper com ela, mas sua família sempre cumpre algum papel. Será melhor se isso lhe for transmitido de alguma forma explícita, senão tentará fazer sua versão, fazer-se elo de uma linhagem de algum jeito, não necessariamente de forma patética como Kevin.
A recusa de uma mulher à maternidade parece ser a ameaça visível à continuidade das famílias e o livro de Shriver é um exemplo das fantasias geradas por esse medo, do quanto isso soa ameaçador e teme-se que custe caro para a mulher e para a sociedade. Eva é incriminada pelos assassinatos de Kevin, assim como a sociedade teme as monstruosidades que podem advir da ausência do amor materno. Em suma, esse livro une-se ao coro dos que têm maus presságios sobre a falta de pendor de muitas mulheres para a maternidade. Em histórias como essa, as monstruosidades provém das mães contrariadas, por isso Eva é habitante do inferno, porque o esse filho endemoniado teria sido obra sua. Por outro lado, pode funcionar como um alerta contra a coerção social que mobiliza todas as fêmeas humanas na direção da procriação: cuidado, se elas forem forçadas, um monstro pode estar sendo gerado!
Sentimos alívio ao final das obras policiais, quando fica claro quem é o culpado e quais foram suas motivações. Essa é a função desse tipo de novela, circunscrever o mal para que possamos livrar-nos dele. Por isso, frente ao deslocamento que ocorre nessa obra, da origem do mal do diabo para uma vaga psicogênese, assim como do papel do assassino do anticristo, para um filho enlouquecido pela rejeição inconsciente dos pais, ou por qualquer outra sutileza, fica difícil dormir em paz.
1 Deutsch, Helene. La Psicologia de la Mujer, Parte II – Maternidad. Buenos Aires: Ed. Losada, 1960, Pg. 59.
2 Shriver, Lionel. Precisamos falar sobre Kevin. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2007.
3 Ibidem, pg 66, 67, 69, 71 e 76.
4 Ibidem, pg. 45
5 O livro de Shriver contém uma chave na trama, que nos absteremos de analisar para não estragar o prazer da leitura para aqueles que ainda não a fizeram.
6 Também conhecido como “Holocausto Armênio”, iniciado em abril de 1915, foi o extermínio sistemático dos armênios residentes na Turquia, punidos pela intenção de constituir uma pátria autônoma. Esse é considerado um marco histórico na experiência do genocídio, pela sua documentação e pelas provas da intenção deliberada de bani-los da face da terra. Acredita-se que morreram 1,5 milhões de armênios nesse genocídio. É interessante observar como nessa ficção o pequeno monstro é conectado com uma das experiências paradigmáticas do mal, aquele para o qual não necessitamos de mensageiros sobrenaturais, do qual nós humanos nos incumbimos pessoalmente.
Confesso que olhei
sobre mulheres, imagem corporal e desejo
Estávamos em um táxi, uma amiga e eu, quando, no meio de nossa conversa fui assaltada por uma visão: uma mulher ostentava um traseiro exuberante. Indaguei se ela havia visto “aquilo”, mas não, só eu fora capturada. Noto bundas porque, nesse aspecto, a natureza não foi muito justa na distribuição das suas benesses. Acredito que algumas mulheres receberam a parte que me cabia neste item. Esse olhar para o mesmo sexo não me faz uma exceção entre as mulheres: temos os olhos postos umas nas outras, mas sempre na busca do “que ela tem que eu não tenho”. O maior zelo na indumentária feminina responde a uma preocupação com o olhar crítico das outras: por trás dessa rígida avaliação há uma disputa, um desprezo que esconde as falhas que cada uma julga ter.
Muitas cenas de ciúme baseiam-se no momento do casal em que se percebe, ou se supõe, que o ser amado estaria desejando outra pessoa. Mas frequentemente os ciumentos estão equivocados: reconhecem melhor o próprio desejo do que o do outro. Meu marido costuma dizer que sempre fico com ciúmes das mulheres erradas. Procede, pois ele me escolheu, e como boa mulher ainda não entendo o que o teria levado a fazer isso, portanto, jamais teria ciúme de alguém que remotamente lembrasse meu tipo. Prefiro as que trazem o que me falta, são essas que me interessam.
A discórdia conjugal sobre quem é atraente revela que as motivações para olhar alguém são diferentes. O desejo sexual representado por esses olhares responde muito mal às tentativas de enquadrá-lo em clichês e padrões. Por exemplo, supomos que ele sempre se direciona para um objeto que gostaríamos de possuir, mas muitas vezes ele é guiado pelo que queríamos ser.
Para as mulheres, a relação com a própria mãe é de exclusão, não há lugar para duas no mesmo castelo, como bem sabia a Rainha bruxa, madrasta de Branca de Neve. A madrasta de Cinderela dava jeito de esconder a única filha bonita; foi uma velha fada contrariada (provavelmente com sua velhice) que condenou Bela Adormecida ao sono eterno, justamente quando ela atingia a flor da idade. Apesar de madrastas e bruxas, todas elas são figuras maternas, histórias são como sonhos: um baile de máscaras. O sexo feminino construiu sua identidade sob uma tradição de disputa, em que se luta por ser “a escolhida”, portanto, os maiores atrativos de uma mulher são os que ela imagina que a tornam elegível.
Como se vê, um olhar, muito mais do que traduzir uma simples cobiça sexual, é pautado por todas essas pendências. Por isso, sem vergonha nenhuma, confesso meu segredo: reparo em bundas. Elas representam os atributos que acredito que me faltam, nelas encontro a fantasia de uma mulher verdadeira, perfeita, essa que nenhuma nunca será.