O benefício da dúvida
Sobre a relação com o sucesso
As revistas de divulgação científica andam preocupadas com nosso sucesso. Ou melhor, nós é que andamos obcecados com o assunto e provocamos o sucesso dessas pautas. Numa delas (Mente & Cérebro), um artigo defende uma posição interessante: explica que para chegar “lá” é preciso ter foco, mas também é necessário de certa forma perdê-lo. Trata-se de um estudo onde dois grupos de voluntários cumprem a mesma tarefa, sendo que um deles simplesmente recebe as instruções do que fazer e lança-se em sua resolução. Enquanto isso, um segundo grupo é instigado a perguntar-se se deseja desempenhá-la e se acha que conseguiria. A maior eficiência foi revelada por parte daqueles que puderam duvidar e precisaram escolher fazê-lo, do que pelos outros, que teoricamente começaram focados. O contraponto entre os “mais decididos” e aqueles que precisaram buscar uma “inspiração interna” levou os estudiosos a afirmar que o sucesso Continue lendo…
Pobre Rottweiler
Sobre altruísmo
No meu caminho não tinha uma pedra, tinha um rottweiler. Ele montava guarda em um estabelecimento comercial que fechou, era um desses cães de aluguel. Meu problema é que sempre me emociono por coisas ridículas e erradas e isso novamente aconteceu. Não podia vê-lo ali em seu território inóspito, amarrado e solitário que me cortava o coração. Muitas vezes, a caminho do consultório, cheguei a atravessar a rua para não sofrer. Para piorar as coisas, na calçada em frente ao lugar guardado pelo animal acamparam vários moradores de rua, vivendo ao relento entre trapos e restos de comida espalhados. Seria deles que eu deveria me compadecer, mas não vou mentir, meu coração amolecia pelo rottweiler abandonado. Continue lendo…
Saudosa senzala
Sobre classes sociais
O Brasil mudou muito nesses últimos anos e nem todos prestamos atenção ou nos demos conta, para bem o ou para mal não somos os mesmos. Especialmente as classes C e D são as novas protagonistas num país que não estava acostumado com isso, agora elas compram, estão mais visíveis. Pequenos detalhes, como ter um telefone que era caro e difícil, hoje é barato e banal, estão acessíveis a geladeira nova, a TV maior, o trânsito está entupido por novos carros. Prestações e carnês enchem as lojas e esvaziam as prateleiras. Continue lendo…
Os mistérios do mar
Relação com o mar como metáfora de modo de vida
Nasci na beira do mar. Não do tipo cálido, com águas amigáveis, quentes e transparentes. Mas de caráter revolto, gelado, cheio de opinião e mães d’água: o mar do Uruguai. Lembro dos invernos em que ele desbordava a praia, engolia calçadas, do frio salobro, das histórias de turistas afogados, que os nativos da praia adoravam contar. Por isso, ao contrário de uma familiaridade inata, desenvolvi com ele uma relação de cautela, um respeito distante, marcado pelo temor e a admiração. Eu e o mar nunca fomos íntimos. Continue lendo…
Intempestivo
Sobre o significado virtual das palavras
Concordo com o Prof. Dr. em Lingüística Aplicada e Semântica Profunda Fernando Veríssimo quanto ao tipo de relação que devemos ter com as palavras: “a gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda”, diz ele. Quanto a mim, também tenho minhas birras com as palavras e suas regras. A pior delas é com o significado de “intempestivo”. Continue lendo…
Um violinista em Auschwitz
Sobre o vídeo
“Viemos das cinzas, agora dançamos”. Com essa frase o Sr. Kohn, um sobrevivente do holocausto, agora com seus 89 anos, defendeu a iniciativa que está provocando polêmica no youtube. Acompanhado de sua filha, uma artista plástica que idealizou o vídeo, e de três netos, Kohn dançou “I will survive” nas dependências dos campos de concentração de Auschwitz, Terezin e vários outros locais onde os judeus foram supliciados.
Muitas pessoas se sentiram incomodadas. Considerando a dança desrespeitosa com quem sofreu lá, pois eles teriam feito algo equivalente a dar uma gargalhada num funeral. A visita aos campos costuma produzir lágrimas e uma enorme desolação pessoal: vê-los é encarar o lobo do homem demasiado perto. Imagino que não deve ter sido fácil dançar lá, o que torna o gesto dessa família mais político, um ato significativo.
Torcedoras
Sobre mulheres no futebol
Existem mulheres que genuinamente gostam de futebol, infelizmente não estou entre elas. Muitos acham que é um embuste, um subterfúgio feminino para aproximar-se “deles”, invadir a reserva ecológica dos maridos. Mas os fatos são eloqüentes: hoje, discussões que envolvem termos como meia esquerda e ponta direita, a escalação do time adversário no campeonato passado, os cabalísticos números 3-4-2, 4-4-2, assim como as incompreensíveis tabelas, incluem um número crescente delas; além disso, os times femininos de futebol já ocupam espaço nas canchas e elas levam a sério seu esporte. Céticos insistem que isso é mimetismo com os nativos do futebol, os machos. Elas deviam ater-se a esportes que incluam saltos de gazela e shortinhos, sem encontrões e caneladas. Na dúvida, assista a um bom jogo de vôlei feminino para ver toda a “delicadeza” requerida. Continue lendo…
Quem ama até mata
Sobre crimes coletivos cometidos por amor
Certos senhores chineses, gravemente desequilibrados, deram para invadir escolas primárias e agredir a marteladas e ou facadas todas as crianças que conseguirem atingir. Este ano já foram quatro ataques. Esses eventos provocam o mesmo estarrecimento que as chacinas de jovens estudantes promovidas por colegas, que comovem os Estados Unidos com freqüência.
Quando alguma tendência desagradável se repete em nossa vida, seja um ato, uma enunciação, um tipo de vínculo, enfim, nos pegamos insistindo em fazer algo que nos é prejudicial ou estranho, chamamos isso de sintoma psíquico. Continue lendo…
O sótão
Sobre memórias
A morte de uma paciente aumentou meu sótão. Quando ela partiu (a idade a levou), fiquei em seu velório um tempo, em pé, perdida. Não sou da família, tampouco amiga, a única pessoa ali com quem eu falaria seria ela própria. Provavelmente comentaríamos a bonita despedida que estava recebendo, mas creio que ela sabia que seria assim. O problema é que fiquei com as lembranças que ela deixou em mim e sei que ela nunca mais vai buscá-las. É assim com meu trabalho de psicanalista: guardamos milhares de histórias, personagens, sonhos, que em geral ficam ali, empoeirados. Não quer dizer que fico pensando nisso, aí não seria sótão, seria cristaleira: aquelas coisas que se tira o pó, usa-se em ocasiões festivas, olha-se de vez em quando. Sótão é para guardar as coisas que se tornaram inúteis, não se quer mais, mas tampouco ousaríamos jogar fora. Continue lendo…
Nadie te quita lo vivido
Sobre a dificuldade de aproveitar o dia
Da maior parte das janelas do meu apartamento possuo uma detestável vista para as casas dos vizinhos, e tenho certeza que, como eu, eles lastimam tanta proximidade. A exceção é para as janelas de lado, as quais se abrem para um belo e imenso plátano que domina o terreno baldio vizinho. Ele é o descanso dos olhos, mas também o problema: esse terreno lateral tem dono e vivo em sobressalto frente à possibilidade de ver minha árvore querida substituída por mais um conjunto de detestáveis janelas. Mas isso não aconteceu, ainda, talvez nunca, sei lá. Continue lendo…