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Gambiarra

Uma ética de trabalho.

Sabe a Gambiarra, aquele atadinho com arame que se eterniza nos caminhos do cotidiano? É aquilo que fazemos apressadamente e não voltamos para corrigir. O interruptor que só fica ligado com ajuda do clips, o vazamento amarrado com pano, a joaninha no lugar do botão. Tenho alergia a esses enjambres.

Meu pai dizia que do futuro nunca se sabe, então, por que não fazer também um curso prático? O conselho era bom e fiz. Escolhi e me formei como torneiro mecânico pelo SENAI (já posso ser presidente!). Nunca duvidei de que iria estudar engenharia, logo, essa escolha seria também um passo nessa direção.

No SENAI encontrei o meu mestre zen da paciência e da meticulosidade. Jorge, meu instrutor de mecânica, era contra todas formas de gambiarra e classificava os mecânicos em dois grupos: os que usam todas as ferramentas e os que fazem tudo com o martelo. Na improvisação da ferramenta para ganhar tempo o resultado até pode ser igual, ou de uma diferença imperceptível, mas às vezes quebramos a peça, quando não quebramos o martelo. Enfim, ele lutava contra o espírito da pressa, da improvisação de materiais e instrumentos.

Claro, numa emergência o improvisador ganha, pois é necessário criar com o que se tem à mão. Ali a genialidade é fazer a melhor gambiarra. Mas em situações corriqueiras ela é a malandragem para terminar logo, a economia nos detalhes para tapear. É o vai de qualquer maneira ao menor custo. O que Jorge nos ensinava é que a gambiarra, mais do que uma maneira desleixada de produzir, é uma atitude, um jeito de ser. A esperteza é uma solução que não inclui o futuro: ali na frente aparecerá o furo.

Não levava jeito para mecânica e nem terminei a Engenharia. Mas posso dizer que aprendi que os atalhos sempre cobram seu preço. Luto contra a improvisação desde então e ela segue me irritando. Afinal, vivemos no país do jeitinho.

A escravidão marcará o Brasil por muito tempo ainda. Uma das coisas que fundou nossa concepção do trabalho foi a alienação a ele. A única saída do escravo para se proteger de ser desgastado como uma ferramenta, de ser visto como um bem não durável e descartável, era se esquivar das tarefas. O jeitinho brasileiro é o herdeiro dessa malandragem defensiva. Quando combato em mim a gambiarra me identifico com o país que ainda não elaborou totalmente esse aspecto do seu passado. Jorge intuía que a nossa saída era criar uma nova ética do trabalho como forma de mudar a malemolência nacional.

Pois é, do futuro nunca se sabe mesmo. Paradoxalmente, fui parar em outras praias, trabalhando com a vida das pessoas onde não existe uma maneira única de ser. E é tão difícil a empreitada da vida, que mesmo quando nossa subjetividade é colada com durex, tá valendo.

10/10/14 |
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Happy Harbor

Jequice do estrangeirismo dos imóveis

– Não senhor, Bois de Boulogne não é uma raça de gado de corte nem de leite.

– Não senhora, não é um molho, é um bosque em Paris, mas não me pergunte como se pronuncia. Aliás, estamos dando desconto para quem souber pronunciar o nome desse edifício.

Estas falas podem ocorrer na compra de um apartamento, mas nunca uma sala comercial pois essa será no Wall Trade Corporation Tower Prime Building. Ou coisa que o valha, que, mesmo com todo esse nome, talvez tenha apenas quatro andares.

Os nomes dos nossos imóveis comerciais tendem ao inglês, e os residenciais têm mais liberdade criativa, mas o francês comparece com maior frequência. É Maison pra cá Petit Village para lá. Confira você mesmo, a leitura dessas propagandas de lançamento em sinaleira pode ser bem divertida.

Até se conseguem imóveis com nomes em português, mas são mais baratinhos, vocês me entendem. Chic mesmo é uma engronha que a gente não pesca bem, mas que tem web space, fitness center, smart laudry, indoor pool, home theater, playground, petspace enfim, algo para você que tem lifestyle. Você compraria um apartamento onde nem ao menos existe um Espaço Gourmet? Sem falar no kids space com área baby?

Sabe o térreo? Isso não existe mais, agora é Apartamento Garden. E quando os atributos são em português é necessário um tradutor de eufemismos. Encontrei em um anúncio o “sistema de segurança perimetral eletrônica” e pensei logo em robôs circulando, mas era só uma cerca elétrica. Já achei no catálogo de um imóvel a promessa de um “Wireless totalmente sem fios”. Imagine, deve ser fantástico!

Houve quem quis proibir anúncios e impressos com palavras estrangeiras, o que acho que cai no outro extremo. Às vezes, é mesmo necessário e não há mal algum em usar uma palavra estrangeira quando não encontramos similar, ou de mesma precisão, no léxico pátrio. A questão é outra, aqui o uso e abuso de estrangeirismos serve para dar valor a um produto que se tivesse toda essa bola não precisaria desse truque.

Enquanto criticamos os Maiquisons, as Dienifers e Sheyslenes que nascem no subúrbio, moramos em prédios com nomes que também são uma versão brega de usar outro idioma para tentar nos autoenobrecer. Quanto menos sobrenome alguém acha que possui, mais supõe que o nome do filho precise se impor como ímpar. Nos imóveis vale o mesmo raciocínio: para esconder nossa jequice os batizamos com termos em outra língua.

Meu receio é que, se continuarem a construir edifícios com esses nomes, com tantos acessórios e supostas possibilidades, talvez queiram trocar o nome da nossa cidade para Happy Harbor. Menos mal, já que a outra possibilidade seria Gay Harbor, evocando algo que ainda deixa muita gente, chique ou brega, melindrada.

Você já foi síndico?

Ser síndico é uma experiência administrativa mínima com ganhos máximos em aprendizado político.

Numa conversa, por acaso, os interlocutores se dão conta que ambos já foram síndicos. Depois disso tudo muda, uma confiança mútua invade a cena e dissolve a tensão. Agora eles sabem que sua discussão vai ter o respaldo do bom senso, partilham uma experiência comum que os transformou. A provação passou e estão num padrão mais profundo de compreensão do funcionamento da sociedade humana. Pertencem a uma irmandade que comunga a cura de muitas ilusões. Eles foram síndicos e sobreviveram.

Por momentos o foco da discussão se perde, contam seus casos passados, experiências entre o bizarro e o anedótico. A fala fica um tanto catártica, afinal, similar às neuroses de guerra existem as neuroses de síndico. Estão compartilhando experiências difíceis e, não menos importante, vendo se o parceiro está falando a verdade. Sim, existem os falsos ex-síndicos, pessoas que não viveram o martírio e querem se fazer passar por sábios. Querem a carteirinha da nossa legião sem ter feito esse serviço militar. Mas é só deixar falar, quem nunca passou pelo front logo se denuncia. É impossível enganar um síndico veterano.

Eu sei porque já fui síndico, várias vezes, sempre a contragosto, e tenho meu cartão de sócio. Frequentei as reuniões do grupo de apoio para quando estamos prestes a surtar, por isso colaboro com a caixa de pensão para os que enlouqueceram em serviço. Sei dos símbolos herméticos da nossa fraternidade, recebo os boletins, os bônus de descontos em ferragens, ganhei o software que calcula exatamente os sobrepreços dos orçamentos, o programa que prevê o dia certo da reunião de acordo com os biorritmos e TPMs dos moradores, mas não conto nossos segredos nem empresto nosso arsenal. Quer saber? Quer ter? Vai ser síndico e espera o convite de um grão-mestre.

Só um síndico percebe que um xixi de cachorro no corredor envolve uma semiologia ecológico-política e sua resolução requer a intervenção firme de quem poderia ser mediador da ONU. Dizem que a política é a arte do possível, sim, mas no caso do síndico com todos contra. Não existe piedade nem compaixão pelo síndico. Todos são solidários até que estoura um cano, cai um disjuntor, emperra o portão. Subitamente a retaguarda some. Ser síndico é uma aula de solidão.

Ser síndico é a experiência administrativa mínima, mas permite ganhos máximos em aprendizado político, gerencial e financeiro. Por isso, e um tanto mais, somos céticos quando alguém chega com ideias sociais ingênuas, professa a suposta bondade humana, ou acredita na naturalidade da convergência sobre resultados quando existe ganho comum. Naquele momento você sente estar na frente de alguém que nunca botou a mão na graxa das experiências sociais. Então, eu pergunto: – Você já foi síndico?

09/07/14 |
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De volta à querência

Ah, é complicado ser gaúcho!

Como os outros brasileiros veem os gaúchos é uma questão. Como nós nos vemos é outra. Uma terceira, seria como entendem nosso estado aqueles de nós que percorreram caminhos mais largos no mundo. Eu prefiro a última. Afinal, é alguém que nos conhece e sabe do mundo. Como é daqui, gosta desse pago e não joga contra por jogar. Em suma, é um de nós com a dádiva de um olhar deslocado pela experiência estrangeira.

E o que dizem de nós os gaúchos que voltaram? Ouvi muitos relatos desses que têm esse olhar ao mesmo tempo forasteiro e crioulo, até que esses dias escutei um mais aguçado: do Walter Lidio Nunes, um gestor de empresa interessado em questões sociais. A fala dele precipitou um entendimento que já me perseguia. Ele diz que um pouco da crise pela qual nosso estado passa deve-se a nossa peculiar mentalidade conservadora.

Não entenda conservador como uma maneira mais lenta de assimilar o novo, trata-se de uma resistência à novidade, mesmo que ela seja melhor. E isso em qualquer setor, por exemplo: um engenheiro propõe uma maneira mais barata, mais eficaz e mais ecológica. Razões mais do que justas, mas a resposta é: mas nós sempre fizemos assim, por que mudar?

A novidade é vista aqui com desconfiança por ser sentida como estrangeira. O gaúcho parte do princípio de que o outro estaria querendo lhe tirar algo, logo, o que vem de fora é potencialmente prejudicial.

Já estamos acostumados com o conservadorismo de domingo, ao modo do MTG, a questão que interessa nesse caso é essa inflexibilidade nos dias de semana, que compromete os avanços do estado em várias áreas. Walter comenta que somos conhecidos pelas bipolaridades irreconciliáveis, praticamente não mudamos de opinião. Achamos que mudar é falta de caráter, preferimos seguir no engano, mostrando uma coerência com a história pessoal e não com a realidade fática. Capturados em reafirmar as pequenas diferenças, esquecemos as enormes convergências. Não nos interessa se a ideia é boa ou ruim, mas de quem ela veio, e a discordância é sempre em bloco, sem nuances. Transformamos a saudável discussão política em paixão clubista. Ou seja, facilmente atolamos pela incapacidade de atuar juntos. Em suas palavras: nosso estado se guia pelo retrovisor e não olha para frente.

São teses duras que infelizmente me fazem eco. Espero, pelo bem do estado, que estejamos enganados e que nos desmintam, que mostrem existir áreas em que ponteamos, em que somos inovadores. Mas por favor, com fatos, não com ufanismo, por que isso já é a inflação que acusa uma falha no valor. O orgulho exacerbado de ser gaúcho é uma resposta à queda de nossa importância politica e econômica no quadro do Brasil.

Deuses e astronautas

A fé e os discos voadores

Lido aos 16 anos, Eram os deuses astronautas, de Erich von Däniken, marcou minha adolescência. Hoje discordo de suas teses, na época encaradas com seriedade. Jung dizia que a fé e os discos voadores funcionam como uma gangorra. Por isso, quando a religião perdeu seu prestígio, surgiram os extraterrestres, a contribuição magna do século XX para o menu de seres fantásticos que nos assombram.

Este livro era uma resposta aos sempre presentes enigmas da origem. Segundo Däniken, o que nos tornou humanos e nos fez chegar onde chegamos, foi-nos oferecido por visitantes espaciais. Eles teriam feito parte do nosso passado, mas nossos tolinhos antepassados os tomaram como deuses. Apesar do acerto em pescar as questões quentes sobre a humanidade, a saída proposta resvala na superficialidade, confunde história e mito, e não resiste a uma crítica dos pontos de vista da arqueologia, história e antropologia. Enfim, uma simpática maluquice bem articulada.

Quando vejo o surgimento de novos mitos, lembro da minha relação com essas teorias mirabolantes, que foram presentes em um momento da vida cheio de inquietações. São teorias pseudocientíficas, conspiratórias, mitologia rala, vendidas como revelação, frente às quais tenho um certo incômodo e ao mesmo tempo empatia, já fui usuário.

A internet não as inventou, mas potencializa uma série delas, como a farsa da viagem à lua, vacinas que causam autismo, a AIDS que fora criada em laboratório, entre tantas. História e ciência levam muito tempo para serem entendidas, mais trabalhoso ainda é a coragem para enfrentar o desamparo de viver sem pensamentos mágicos. Infelizmente, a ciência não substitui bem a religião no item conforto espiritual.

Já a maioria das teorias conspiratórias, mesmo que tornem o mundo e o universo mais assustadores, podem ser repousantes. Paradoxalmente, é pior suportar o aleatório, o incompreensível, a sensação de ser apenas poeira cósmica. Levar fantasias a sério economiza estudo, pensamento, biblioteca e principalmente angústia. Ainda por cima elas somam o charme do secreto e transgressivo: seriam uma verdade da qual os poderosos estariam mantendo-nos alienados, mas nós enxergamos além. Supor que somos enganados é tentador, pois contém a ideia de que tudo têm explicação, apenas estamos alijados dela. Qualquer teoria, mesmo capenga, é preferível ao vazio de sentido com que podemos nos deparar.

O céu ainda me causa assombro, mas meu firmamento, para meu azar, ficou menos povoado. Sobrevivo sem deuses, anjos e astronautas, a fantasia teve que procurar outras moradas, mas eles me fazem uma falta!

As mãos e os pés

No mundo prático quem governa são as mãos, e elas são o símbolo do trabalho.
No mundo do avesso do futebol, são os pés que mandam!

Quem quiser saber por que o futebol se tornou o esporte mais popular do planeta terá que rebolar. Certamente a causa é multifatorial, mas arrisco uma teoria: o futebol é o reverso do mundo do trabalho. É o território do ócio, do esforço não produtivo, da competição brincalhona. No mundo prático quem governa são as mãos, e elas são o símbolo do trabalho. Não dizemos: mão de obra, dar uma mão, botar a mão na graxa? A mão é produção e nobreza. É ela que escreve, opera máquinas e aperta botões. Os pés nos levam de um lado a outro, mas são meros coadjuvantes, estão a serviço das artes das mãos.

No mundo do avesso são os pés que mandam, são eles que dançam, que jogam bola. No campo a mão não vale, não entra no jogo, a não ser a de Deus, como naquele dia em que, entre tantos dos seus nomes, Ele resolveu usar Diego. Pudessem tirá-la, os demais jogadores o fariam, elas estão ali só para dar graça e harmonia à corrida. Para não dizer que são completamente inúteis só servem para saída lateral, a cobrança mais rasa e insignificante do futebol. Quem pode usá-las é o goleiro, mas ele é a exceção e é o masoquista do time. Ele é o mediador entre esses mundos, é o único que não pode correr pelo campo, está fixo como um trabalhador no seu setor. Brinca mas não tanto, está no pior lugar. Indispensável, mas excêntrico ao grupo.

No fim de semana as mãos tiram folga e quem entra em campo são os pés. Nesse momento eles são valorizados e podem mostrar sua força, sua pontaria, sua destreza. Enquanto a motricidade das mãos é essencial para qualquer diligência prática, a dos pés nunca é treinada. Mão é cultura, pé é natureza. Poderíamos ter duas pernas esquerdas que ninguém perceberia. Já no futebol, é a inteligência motora dos pés que vale. O pé, como parte mais baixa do corpo, está ligado à terra, e recebe seus encantos pela sua condição animal, sua força indomada. No campo os pés estão livres para chutar, para correr, driblar, mostrar ao mundo e às mãos seu valor.

As mãos quase falam, os pés são mudos. As mãos são imperialistas, não basta trabalharem são elas que afagam, que selam pactos. São elas que deslizam pelo corpo do ser amado. Os pés querem sua parte, seu quinhão de importância, para isso ganharam os gramados de domingo.

A cabeça encontra razão motora apenas no futebol, na vida não damos cabeçadas. Usamos a cabeça para pensar a vida, mas ela fica quieta sobre os ombros e no máximo segura um chapéu e ganha um afago. Só no futebol ela pode ser animal e desferir um golpe fatal no inimigo. Com o futebol, e o uso lúdico dos pés e da cabeça, a democracia corporal se estabelece, o corpo se integra e vive a felicidade de um feriado com sol.

19/06/14 |
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Suspiros de fumaça

Ciúmes do cigarro.

“Parar de fumar é muito fácil. Eu mesmo já parei umas vinte vezes”. Assim dizia meu pai brincando para minimizar sua maior derrota: nunca conseguiu largar o cigarro. Quando, pela doença, as proibições chegaram, fumava escondido. Anos depois que partiu, minha mãe seguia encontrando maços em esconderijos insólitos.

Meu primeiro contato com o comércio foi comprando cigarros para meu pai. Diligentemente, não aceitava o troco em balas, o acerto justo dignificava a missão. Hoje lembro dessas incursões com um pingo de culpa, como se nelas houvesse uma névoa de conivência.

Claro, eu era criança. Se é para ter culpa, melhor lembrar dos últimos anos do meu avô materno quando já era adolescente. Outro que levou o cigarro até o fim. Embora quem levou quem seja a questão. Respirando muito mal, os médicos lhe cortaram o hábito. Mas houve um apelo e uma concessão: três meio cigarros ao dia. Quando estava comigo roubava no jogo e eu fazia escandalosa vista grossa. Trocávamos olhares e eu esquecia de cortar o cigarro, ou me enganava na difícil matemática que é discernir entre três e quatro.

Sinto falta do cheiro de tabacaria, de comprar cigarros, mas não sei o que faria com eles. Eu jamais fumei e meus fumantes se foram. Não descobri se nunca fumei para não desafiar quem derrotou meu pai ou para triunfar onde ele falhou.

Quando minha mulher chegou na minha vida fumava. Trazia essa familiaridade de um gozo que eu não entendia. O cigarro para Diana era um amigo fiel que pontuava e sublinhava sua vida. Antes disso, depois daquilo, no momento de angústia, nos momentos de alegria, contra a solidão, enfim, arrimo para todas as pausas. Mas minha paciência com o cigarro, e o custo que ele me trouxe, já havia esgotado. Agora era eu ou ele. Quase perdi! Havia um inimigo na trincheira, minhas memórias, tinha uma queda pelo inimigo. Mas consegui. Depois de anos de luta e com o decisivo apoio da minha tropa de choque, minhas duas filhas, vencemos.

Se existe algo que aprendi com o cigarro é não menosprezar sua força e o preço que os fumantes estão dispostos a pagar. Tingir de morte o seu prazer, como a medicina explica e agora está impresso em qualquer maço, ao meu ver pouco ajuda. Talvez só denote o que ele é, uma tourada com a finitude, desafiando e chamando a morte à cada tragada.

O preço por esse prazer letal é enorme para a saúde pública. Mas o pior, talvez mais doloroso por ser mais próximo, é testemunhar essa escolha entre a fuga solitária do canudinho de fumaça e a nossa companhia. Gostaria que todos os fumantes que amei tivessem escolhido a minha companhia à dele, de cuja preferência sempre terei ciúmes. Precisamos ganhar os fumantes de volta para nós.

12/06/14 |
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Vou estar verificando

O que aprendemos com o telemarketing…

Se existe uma unanimidade nesse mundo tão díspar é a má vontade com o telemarketing. Tenho uma tolerância maior e aponto minhas razões.

A primeira é a o acréscimo gramatical inegável que eles nos legaram. Não foi Machado, nem Pessoa, nem ao menos um criador de palavras como Guimarães Rosa quem nos trouxe o encontro triverbal. Nunca antes usamos três verbos juntos como nesse exemplo prosaico: vou estar verificando… Como chamar isso? Talvez o professor Claudio Moreno possa nos dizer, seria promessa de gerúndio, ou presente gerundiado, ou ainda gerúndio do gerúndio?

A segunda é a percepção que o Brasil é grande. Já recebi ligações que começam com um boa noite estando com uma luminosidade plena na janela. Isso demonstra que meu interlocutor está numa latitude acima. Relembro das aulas de geografia e da inclinação do planeta.

A terceira é um exemplo positivo de ética do trabalho. Dizem que o brasileiro é preguiçoso, que nada, para essa legião isso não existe. Nunca é tarde ou cedo para ligar, sábados, domingos e feriados tanto faz. Isso nos passa uma ideia de que sempre é uma boa hora para trabalhar.

Um brinde adicional é a sonoridade. Podemos ouvir várias versões da nossa língua e um jogo extra: de onde será nosso atendente? É uma delicia ver nosso português ser mastigado em várias possibilidades. Palavras comuns ganham sons exóticos, acentos impensáveis.

Acima de tudo eles nos massageiam o ego. Seja sincero, quem mais te liga para dizer que você é uma Personnalité que merece ser cliente Platinum Gold Safira Plus? Nem nossa mãe. Só a moça do Wizardcred acredita no teu glamour.

Pense do desenvolvimento do autocontrole que é ficar duas horas a meia sendo passado de um atendente a outro, anotando vários protocolos de 36 dígitos, declinado o CPF o e RG para todos e depois cair a ligação. Nem no budismo conseguem tanto.

Mas se você é desses, que tem vontade de mandar o ser humano que está do outro lado da linha visitar sua progenitora, acrescido da suposição de que a mesma trabalhe em uma profissão ligada ao sexo com valor moral discutível, vai um conselho. Pense que o interlocutor pode ser um jovem, provavelmente no seu primeiro emprego – numa função que não gostaria – que tem um supervisor que lhe cobra insanamente produtividade. Ele veio de família humilde, está naquela idade em que ainda temos sonhos e nos orgulhamos de ao menos ter um emprego. Mesmo inoportuno ele não merece nosso mau humor. Pense que vocês dois são prisioneiros de uma engrenagem burocrática, impessoal e desumana que transcende a todos. Se o mundo chegou a ser assim: que cidadania é comprar, convenhamos, não é o rapaz do telemarketing o culpado.

07/06/14 |
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O dono do mundo

Ele que tinha tão nada, era louco de pensar que possuía tudo… (sobre psicóticos na rua)

Passeava com minha filha na Cidade Baixa e encontramos o dono do mundo. Pelo menos era o que ele gritava aos passantes, desde a calçada onde estava estirado. “– O dono do mundo sou eu, não são os americanos, não são os japoneses, não são os alemães, eu sou o dono…” Além de reclamar para si a posse do planeta, xingava a todos, delimitando sonoramente seu reino. Passamos reto, pisando leve em seus domínios. Nós sabíamos do que se tratava, já trabalhamos com pessoas assim. Discutimos se ele estaria melhor num hospício.

A abertura dos manicômios trouxe para as ruas uma população que permanecia oculta. De uns anos para cá aumentou o número de loucos de rua entre os mendigos habituais. Nossa reação automática é pensar que isso foi um erro, na rua eles estão sem ajuda, sem terapia, sem medicação. Estão misturados ao lixo, com que provavelmente estão identificados, ocupando um lugar de dejeto social.

O certo é que não estavam melhores antes, mesmo se internados numa das poucas boas instituições, e se esse abrigo fosse dotado de bons profissionais. Os antigos manicômios eram museus de peças humanas falhadas ocultas do nosso olhar. É duro reconhecer uma impotência, mas nós não temos uma resposta a não ser paliativa para certos desistentes da nossa sociedade. Nesses casos extremos tratamentos que visem abordagens corretivas são inúteis. Para ajudá-los só nos resta acompanhá-los e tentar fazê-los sentir-se considerados, como outro cidadão qualquer.

Sua postura no mundo, sua doença – pessoalmente prefiro evitar essa palavra pois não dá conta do problema – é recusá-lo em bloco. Eles desistiram de nós. Para tanto fundam um novo mundo, uma nova lógica. Nesse espaço imaginário eles vencem. Querer convencê-los do contrário é tão contraproducente como impossível. É mais fácil convencer alguém são de que seria louco, do que arranhar minimamente esses sistema delirantes.

O único motivo para mantê-los institucionalizados seria para não tropeçarmos neles e nos depararmos com as fronteiras sinistras da condição humana. A internação era boa para nós, pois a loucura nos constrange e desconcerta. Encerrados eles definham ainda mais, são privados dos cenários do mundo e de nós. Eles não recusam nossa presença, é da nossa lógica que eles prescindem. Gostam de circular nesse mundo, mesmo sabendo que perderam a guerra de impor seu sentido.

Se você duvida sobre minha opinião e testemunho (conheci muitos dos antigos hospícios) recomendo o livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex (Ed. Geração, 2013). Obra para estômagos fortes, conta histórias de internados. Esses mesmos que hoje estão nas ruas. Depois me diga o que é pior.

A outra história de Noé

Crescer é suportar a humanidade dos pais.

Noé salva o mundo outra vez, agora nas telas do cinema, no filme de Darren Aronofsky com Russell Crowe. Gosto desse herói, mas menos pela história do dilúvio e sim por uma trama secundária após a catástrofe.

Assim que as águas baixaram, Noé começou o esforço para reconstruir o mundo, as plantações inclusive e as videiras em particular. Ele não só plantava uva como produzia e bebia vinho. Certo dia, não sabemos se para comemorar ou para esquecer, tomou todas. Com sempre que se abusa, deu vexame. Tirou a roupa, fez discurso, essas coisas de bêbado.

Lembrem que Noé foi escolhido por Deus para salvar a humanidade por ser uma figura exemplar e incorruptível. E é aqui que começa a parte que nos interessa: apesar de herói era humano. As reações dos filhos frente à fraqueza do pai foram distintas. Enquanto Cam zombou de Noé e chamou os irmãos para verem o espetáculo de sua vergonha –ele estava nu – Sem e Jafé o cobriram, protegendo-o.

Os  mitos duram porque contam histórias atemporais, dramas que afligiram nossos antepassados e seguem nos fazendo questão. Nesse caso, o tema é como posicionar-se frente aos erros e fraquezas de nossos pais. Afinal, isso mais dia menos dia aparece e é uma grande provação para todos. Inevitavelmente nos defrontaremos com um momento em que nosso pai estará de alguma forma nu. Ele parecerá frágil ou vexado, errando ou administrando uma má decisão, sem força para os desafios que a vida não cessa de nos colocar.

Esse é o capítulo decisivo do fim da infância: como agir frente ao pai decaído. É um momento feito um dilúvio, quando as águas do tempo levam nossas ilusões, entre elas a de que nossos pais são mais sábios e mais retos que a maioria. Crescer é descobrir que eles são como todos, uma soma ímpar de virtudes e defeitos. Mesmo quando são grandes heróis não são deuses, e portanto, são falíveis.

Como no mito, existem duas reações possíveis. Podemos ser como Sem e Jafé que cobrem o pai, sendo naquele momento, o pai do pai. Estendendo a mão na hora certa, de forma que ele não se sinta humilhado pela ajuda. Mas também é possível agir como Cam, reclamar que ele não é mais grandioso como os pais são só na cabeça das crianças.

Insistir em apontar os erros dos pais é de certa forma seguir sendo filho, recusando-se a crescer e deparar-se com o pouco que somos. Crescer é entender a limitação que atinge a todos, é saber que a condição humana é falha, que um dia nós é que tropeçaremos. Crescer é sair da sombra cômoda e ilusória de um pai que seria sábio e protetor ontem, hoje e sempre. Crescer é prescindir dos pais, vê-los e aceitá-los como são, nem heróis nem anjos: humanos apenas.

23/04/14 |
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