A bombacha e o kilt
No mundo moderno o mito adquiriu uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos.
A história não poderia ser mais triste. No distante século XIII, o príncipe Llywelyn sai de casa e deixa seu filho pequeno sozinho. Por sorte seu cachorro Gelert cuida da casa. Voltando não encontra o filho. Apavorado observa que o cachorro está com a boca, o focinho e o pelo empapados de sangue. Num impulso de raiva mato o cão assassino. Pouco depois encontra o filho que estava escondido e, a seguir, um lobo morto. Desolado se dá conta que entendeu tudo ao avesso. Matou o fiel cão que salvara a vida de seu filho. Cheio de remorsos, enterrou com honras o cão para reparar seu erro. Quem visita o condado de Caernarvon no País de Gales ainda pode ver o marco funerário.
A história é boa, nos ensina a pensar sempre com calma, não se deixar levar pelas aparências. O único problema dessa história é que, com pequenas variações, é conhecida por
vários povos do mundo todo, e claro, sempre contada como verdadeira, com local e personagens definidos. Essa coincidência nos coloca uma pulga sobre a autenticidade do relato. De fato, a placa existe, mas a história é mito. A lápide foi feita por um hoteleiro proprietário do Royal Goat Hotel em Beddgelert e dizem que a lenda (adaptada) também seria de sua autoria. Os turistas adoraram a história que ganhou até um poema famoso onde se conta o incidente. Esse fato diz muito de nós, sempre tendemos a acreditar mais nos mitos, que são mais ricos, mais sábios, mais elevados, do que na triste e pálida história. Entre o mito e a histórias tendemos a preferimos o mito.
Creio que qualquer pessoa medianamente informada já sabe que ontem, dia 20 de setembro, a data gaúcha por excelência, celebramos um mito que inventamos para nosso deleite. Saudamos uma revolução que não foi revolução, cantamos uma vitória que foi uma derrota (forçando muito, um empate em casa), e assim por diante. Criamos uma mitologia gaudéria com elementos díspares, geralmente com pouco contato com a realidade vivida. Mas qual seria o problema? Afinal, tantos povos fazem isso, o folclore é sempre uma criação a posteriori que edita para melhor nas nossas mazelas históricas.
E existem micos maiores, Eric Hobsbawm no seu livro A Invenção da Tradição demostra, com exaustiva pesquisa histórica, que o Kilt, o saiote escocês que é o símbolo da identidade escocesa, nunca fora usado antes de ser “descoberto” como o traje típico. Toda aquela arenga de cada tecido (tartan) lembrando um clã é pura farofa. Portanto, o que perderíamos cultivando a nossa pequena pátria imaginária, que pelo menos usa bombacha para tapar as pernas? Há quem vá mais longe nesse argumento do mal menor, ou do fato inofensivo, quando lembra do imaginário caipira atual do interior de São Paulo. Lá se copia o pior dos cowboy texanos. Logo, dizem, poderíamos estar pior, tendo que aturar rodeio com chapéu de vaqueiro americano. Isso sim seria o fim da picada.
Portanto, mito por mito, melhor contar com algo feito em casa, certo? O problema é que a questão é um pouco mais complexa. Não vivemos sem um relato histórico, tanto que se não o temos, inventamos. Precisamos de origem, de pais fundadores, de raízes que não nos deixem soltos no rio da história. Aqui entra o gaúcho, como nosso ancestral primitivo, simples, franco, rude, mas leal e honrado.
Na sociedade tradicional o mito era o horizonte do pensamento. Mais do que uma coleção de histórias, como hoje nos chega, o mito era uma forma de interpretar o mundo, portanto uma forma de pensar e de processar informações. No mundo moderno o mito adquiriu a função oposta: ele é uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos. Impede que possamos ver o nosso passado diferente das formas fixas que os tradicionalistas elegeram.
Se o mito fosse só para dias festivos não haveria problema algum. Assim é o Carnaval e o20 de setembro tem algo dele, mas aqui com a fantasia única e regrada. Não uso Carnaval como metáfora, mas como conceito mesmo: como um tempo em que se suspende o presente para que se possa viver uma fantasia, e que se dilua, ao longo de seus festejos, a hierarquia social. No Carnaval cada um vive seu personagem e adquire o valor que imagina que tem ou que gostaria de ter. Um tempo de exceção para sonhar em voz alta e esquecer a estreita e pálida realidade.
O problema, no nosso caso, é que nossa fantasia de origem gaudéria se desborda para o ano inteiro. O que seria uma festa, um mito fundador, torna-se ideologia. Usamos o mito para criar auto-estima, mas também para pensar os fatos que se nos apresentam hoje. Mas fica a questão: como uma fantasia pastoril do século XX, idealizando o XIX, pode nos fornecer chaves para entender a complexidade do XXI? Tentamos, mas o fato de usar bombacha e idealizar nosso passado não nos poupa dos dilemas do nosso tempo. A aceleração da história nos coloca desafios constantes, o novo nos invade e pede que o decifremos para não sermos engolidos. Não temos opção de não viver nossa época. Todos esses movimentos de criação de identidades regionais fazem parte duma tentativa de barrar a globalização, de se defender do novo. São reafirmações do local frente ao global, e do passado frente ao presente.
A questão não é abrir as portas do Rio Grande ao que vem de fora de modo a perder a identidade regional. Penso o contrário: em como fazermos nossa própria versão de modo a responder ao que a ocasião nos pede. Nesse sentido, a ideologia gaudéria não soma, na verdade nos deixa mais frágeis. Como todo mito, ideologia ou religião, seu aparato conceitual faz uma leitura simplória do mundo. Oferece boas soluções para um mundo que já desapareceu e não ajuda a enxergar melhor o presente multifacetado que é o nosso verdadeiro desafio.
O gaúcho pilchado e a cavalo faz uma figura elegante, o pala o protege do minuano, mas não dos ventos inclementes da história atual. Essa ideologia não nos ajuda, serve apenas como barreira imaginária ao que vem de fora, e nos fornece apenas armas ilusórias para uma batalha real, que é fazer desse estado um lugar realmente melhor.
A invasão zumbi
Zumbi, você ainda vai ser um… na melhor das hipóteses.
Uma dinastia pode estar chegando ao fim. Depois de reinar absoluta durante todo o século XX a primazia dos vampiros no uso da ficção de terror encontrou um adversário à altura: os zumbis chegaram. O começo foi tímido, na década de 30, quando nasceram no Haiti, e seguiram obscuros até os filmes de Romero nos anos 60, mas depois disso ganharam um impulso irresistível e crescem sem parar. Hoje o zumbi é o personagem mais usado para filmes, séries de terror e para imaginar cenários pós apocalípticos. Mas ele é muito mais do que isso, sua marca ganhou nossa imaginação: o zumbi está em games, quadrinhos, existem as “marchas zumbis” em inúmeras cidades, recentemente ganhou uma excelente revista digital: ZumbiGo! Acreditem, até comédia romântica com eles já temos (Meu namorado é um zumbi), ou seja, nenhum cenário de Halloween estará completo sem sua presença. De qualquer forma, a comparação com o vampiro não é sem interesse, afinal, sai um morto-vivo para entrar outro.
Os fanáticos por zumbis vão odiar que eu misture os passivos escravos que eles foram quando nasceram no Haiti, apenas mortos que voltavam à vida pela magia de um feiticeiro para serem usados como força de trabalho barata, aos misteriosos e organizados Caminhantes Brancos de Guerra dos Tronos. Mas estou mais interessado neste momento em suas semelhanças do que nas nuanças que os categorizam. Pois uma questão é comum, e é dessa que quero falar: eles estão mortos mas vivem, e isso partilham em comum com os vampiros.
A questão que devemos nos fazer é o que esses mortos-vivos dizem de nós? Se estão tão em voga, talvez sejam eco de recônditas questões que não nos atrevemos a pensar, e por isso elas abrem espaço na nossa consciência via fantasia.
A morte perdeu espaço na modernidade, sua antiga forma pública foi encerrada dentro de hospitais. Da mesma forma, falamos menos da finitude, e tememos o envelhecimento como crianças temem o bicho papão. Espichamos o tempo de vida, mas encolhemos a reflexão sobre a existência. Portamo-nos de forma ambígua: nos cuidamos para durar mais, mas não encaramos o fim como natural. Desprendida das antigas convenções tradicionais e sem acreditar numa transcendência, a modernidade nos confinou na hipertrofia do presente, por isso a reflexão sobre a morte não prospera. Porém somos, ainda que contra vontade, seres para a morte, a condição humana passa por isso. Se não houver reflexão sobre o tema, ele voltará para nós como sonho e pesadelo. Esses zumbis somos nós, em uma forma lúdica e rebaixada de filosofar sobre nosso destino.
O zumbi fala não só da morte como de sua fronteira: a temida velhice. Os zumbis também representam os velhos, sua incomoda lentidão, seus passos pesados, seus movimentos em câmera lenta. Se a morte nos aguarda, na melhor das hipóteses esse pesadelo vem junto com outro: ficar velho, com o corpo corrompido pelos anos. A contaminação é inevitável, todos seremos zumbis.
Qualquer plataforma mítica comporta múltiplos significados, justamente seu sucesso demostra essas camadas de possibilidades. O corpo decaído é a marca zumbi por excelência. Ora, nosso tempo nos pede um cuidado exaustivo com o corpo. Ele deve ser modelado, malhado, adequado a padrões exigentes. A forma zumbi expressa nosso cansaço com essa demanda de mimar um corpo que inevitavelmente vai decair. É como se disséssemos: vamos ser feios de uma vez, chega de privações e de trabalho forçado, essa casca de pele não vale o esforço exigido! Nesse sentido o corpo zumbi é a recusa do corpo disciplinado e diz que seguimos vivos se não o temos. O zumbi é o protesto contra nossa vaidade excessiva e o culto a saúde.
Um fato difere categoricamente os vampiro dos zumbis: os primeiros são aristocratas e os segundos são plebeus. Certamente outro fato que o zumbi expressa é a massa. O vampiro está no topo da cadeia alimentar, literalmente se alimenta de todos e ninguém se alimenta dele. O fenômeno zumbi é a revolução francesa no território da ficção, a plebe angariando fatias de prestígio. Nossa ideologia prega a individualidade, devemos ser únicos, afinal, ser confundidos com a massa, ser ninguém, é o grande horror. O fenômeno zumbi sugere um cansaço também com essa ideologia individualista, nos aponta a luta inglória e sem sentido para despontar na multidão, como também a força dos excluídos. O mundo dos vampiros é para eleitos, o mundo zumbi é a verdadeira democracia, aceita a todos, todos seremos zumbis.
Porém a forma pejorativa de ser massa também se expressa no zumbi. Ele começou como escravo e ainda tem muito dele. Um ser sem vontade e sem cérebro, talvez por isso goste tanto de comê-lo, quem sabe ingerindo comece a ter algo dele. A civilização mecânica e burocrática, onde o pensar não tem vez e consumir é a meta, nos faz zumbis. Embora pareça na contramão de qualquer organização social, a toxicomania na sua forma mais acentuada nos deixa zumbis. Drogados são seres para os quais o mundo se esvaziou de sentido, afinal, só se interessam pelo seu objeto, sua substância mortífera. Ou alguém tem dúvida que as cracolândias não são habitadas por zumbis? O zumbi expressa tanto a obsessão nociva da droga como a anorexia do desejo, essa apatia tão comum, mas que corriqueiramente se confunde com depressão.
Zumbi rima com apocalipse, geralmente ele aparece em cenários distópicos. O mundo zumbi é inóspito. Mais por sorte do que por mérito, apenas uma família e amigos se salvam, o resto é inimigo. O olhar político nesses casos beira o simplório: nosso mundo não tem conserto nem esperança, só resta seguir vivendo numa pequena comunidade que se cuida e evitando todos os outros, já que o mundo é, de fato, muito perigoso.
Enfim, o zumbi chegou e terá uma longa vida pois possibilita expressar inúmeras ideias soltas e pensamentos que buscam uma forma. Nada nos mostra que caminhamos na direção de uma convivência mais pacífica e harmoniosa com a morte e com nosso corpo. O pensamento burocrático impera, a crença em objetos mágicos (químicos) que nos adormecerão a vontade também. O mundo nos aparece como mais perigoso e violento. O horizonte político não entusiasma. As condições são propícias para aparições zumbirescas e outras assombrações. E pior, se um zumbi não morder você, um dia teu próprio espelho o fará.
Festival de Besteiras
O Festival de Besteiras continua assolando o país
Nos anos sessenta Stanislaw Ponte Preta lançou três coletâneas de fatos que eram piadas prontas. Registrava o surto de burrice protagonizado pela ditadura no poder. Os livros chamavam-se FEBEAPÁ, sigla de: Festival de Besteiras que Assola o País. Lembro disso porque, novamente, uma parte do Brasil sente que vivemos uma época de piadas de mau gosto.
Muita gente se juntou às passeatas, mas o motor delas, o gatilho do movimento, são jovens urbanos, bem informados, conectados às redes sociais. São pessoas mais sensíveis a pautas sobre comportamento, ecologia e estilo de vida. Para eles certos fatos beiram o irreal e lhes dão a ideia de que o país está emburrecendo. As mais óbvias, que dispensam comentários, são a cura gay e a bolsa estupro, mas existem outras. A política de combate às drogas é falha, e recentemente foram aprovadas medidas que aprofundam os equívocos anteriores, nos atrelando ao modelo americano que não dá certo nem lá.
É esse mesmo pessoal que pede mais bicicletas e menos automóveis nas ruas, vê com tristeza árvores sendo derrubadas para alargar engarrafamentos. Se irrita com o crédito fácil para carros novos enquanto se usam os mesmos ônibus sucateados. Não percebe nada de novo para os velhos problemas de mobilidade urbana. Jaime Lerner disse que o carro é o cigarro do futuro e para essas pessoas esse futuro já chegou. Não enxergam o carro como charme, mas como incômodo.
Esse mesmo pessoal quer sair da caricatura do Brasil como país do samba e do futebol, por isso não sente a copa como sua. Ainda não sabem o que os representaria como o novo caráter nacional, por enquanto apenas recusam a velha marca. Pelo humor dos cartazes eles não rejeitam a alegria do carnaval nem o coletivo do futebol. Apenas querem ser outra coisa.
É claro que a crise se dá por uma questão de credibilidade, ninguém se sente representado por nada. Ela é mais que contra o governo, é contra o estado brasileiro, que se mostra surdo e corruptor. Mas esses movimentos também representam o choque do novo contra o velho. O país urbano, jovem, laico, sonhador, querendo inovar, contra o Brasil periférico, religioso, conservador e resignado. De um lado uma tentativa de crescer em harmonia com a natureza, do outro o progresso a qualquer preço que sempre foi praticado. Qual o seu lado?
Sem Facebook
Porque é impossível ser feliz sozinho, conectar-se é um hábito que nunca saiu de moda.
Das minhas relações mais próximas, só três comungam comigo não ter facebook. Não pensem que tenho críticas, sou um entusiasta, apenas não quero usar. Pouco dou conta dos meus amigos, onde vou arranjar tempo para mais? Minha etiqueta me faz responder a tudo, teria que largar o trabalho se entrasse na rede social. Só recentemente minhas filhas me convenceram que se não respondesse um spam ninguém ficaria ofendido.
A cidade ganhou a parada. Acabou o pequeno mundo onde todos se conheciam, onde não se podia esconder segredos e pecados. Viver na urbe é cruzar com desconhecidos, sentir a frieza do anonimato. Essa é a realidade da maioria.
Meu apreço com as redes sociais é por acreditar que elas são um antídoto para o isolamento urbano. São uma novidade que imita o passado, uma nova versão, por vezes mais rica, por vezes mais pobre, da antiga comunidade. Detalhe, não quero retroceder, a simpatia é pelo resgate da nossa essência social. Vivemos para o olhar dos outros, essa é a realidade simples, evidente. Quem pensa o contrário vai na conversa da literatura de auto-ajuda, que idolatra a auto-suficiência e acredita que é possível ser feliz sozinho. É uma ilusão tola, nascemos para vitrine.
Quando checamos insistentemente para saber como reagiram as nossas postagens somos desvelados no pedido amoroso. O viciado em rede social é obcecado pela sociabilidade. Está em busca de um olhar, de uma aprovação, precisa disso para existir. Ou vamos acreditar que a carência, o desespero amoroso, e a busca pelo reconhecimento são novidades da internet?
Sei que o facebook é o retrato da felicidade fingida, todos vestidos de ego de domingo, mas essa é a demanda do nosso tempo. Critique nossos costumes não o espelho. Sei também que as redes são usadas basicamente para frivolidades, é certo, mas isso somos nós. Se a vida miúda de uma cidadezinha fosse transcrita, não seria diferente. Fofoca, sabedoria de almanaque, dicas de produtos culturais, troca de impressões e às vezes até um bom conselho, além de ser um amplificador veloz para mobilizações.
Também apontam que amigos virtuais não substituem os presenciais. Todos se dão conta, justamente usam a rede na esperança de escapar dela. O objetivo final é ser visto e conhecido também fora. Usamos esse grande palco para ensaiar e se aproximar dos outros, fazer o que sempre fizemos. O facebook é a nostalgia da aldeia e sua superação.
Apressados
Se não sabes onde vais, por que teimas em correr?
Quando estou apressado lembro de um conselho de meu avô: “estás com pressa? Então faz devagar, pois só farás uma vez!” O conselho é bom, tentando ser rápidos atropelamos as maneiras corretas de proceder e o preço é refazer ou desgastar a experiência. Premidos pelo horário engolimos a comida. Como fica sem gosto, comemos em dobro. Correndo não vemos a paisagem nem o carrossel de pedestres. Afobados não escutamos os outros. Mesmo os ruídos internos são abafados, nos distanciamos até de nós mesmos. A pressa é angustia maquiada.
A marca da nossa época é a velocidade. A indústria revolucionou a maneira de fazer objetos e a forma de encarar o tempo. A ordem é: mais produção em menos tempo. O trem, o automóvel e o avião encurtaram o mundo e a internet o fez ainda mais próximo. Isso tudo é bem-vindo, mas é bom lembrar que esse é o modo de funcionar da máquina, não o nosso. Intimamente nada mudou, para pensar e sentir ainda somos os mesmos. Para aprender e assimilar os golpes da vida, o tempo cobra o mesmo preço. O mundo nos exige a velocidade da máquina, mas às vezes somos nós que nos espelhamos em nossa criação e queremos ser como ela: rápida, eficiente e sem sentimentos.
Existe um fado onde Amália Rodrigues canta: “se não sabes onde vais, porque teimas em correr.” A sutileza do verso capta outra dimensão da pressa: ela coloca sentido onde não há. Quem não sabe para onde vai, corre a modo de formatar o caminho. O apressado parece ocupado, sério, um trabalhador orgulhoso de sua missão. Nove entre dez vezes, é apenas um desorganizado, atabalhoado, querendo nos fazer crer o contrário. Mascara com velocidade o vazio de sua missão, quando não, dele mesmo.
O novo DSM-5, a bíblia da psiquiatra americana, recém saído do forno, estipula em duas semanas o prazo para avaliar a passagem do luto normal ao patológico. Veja só, uma vida inteira ao lado de alguém e ficar arrasados por mais de quinze dias nos deixa sob suspeita. A dor de perder os pais, um filho, um amigo, agora funciona na lógica da legislação trabalhista. Pelo jeito a pressa, contingência de nossa época, subproduto da ordem industrial de conceber o mundo, virou parâmetro de normalidade. Pessoalmente creio que nos pedem um coração de lata, só assim para se despedir tão rápido.
Câmeras na escola
Com o olhar onipresente da família não se cresce.
Entrei na escola com cinco anos. Fui sempre o mais novo da turma, tinha entre um e dois anos menos que os colegas. O físico tampouco ajudava, franzino e míope. Não venham me ensinar o que é bullying, sei o que é ir para a aula e enfrentar o pátio. Isso me tornou sensível a propostas que tentam diminuir o mal-estar na vida escolar. A discussão sobre o uso de câmeras nas escolas me tocou.
As câmeras de vigilância estão em todos os lugares. No começo, a novidade incomodava, evocava um mundo controlado, totalitário. Mas logo nos demos conta que elas inibem e esclarecem crimes, ajudam em coisas prosaicas como controlar o trânsito. É uma vigilância barata, segura, muitas mais virão.
Porém, a presença de câmeras na escola coloca outras questões. O objetivo seria o mesmo, proteger e prevenir. As intenções são louváveis, mas elas esquecem um fator fundamental: a escola é a primeira socialização não controlada pelos pais e é necessário que assim seja. Com o olhar vigilante e onipresente da família não se cresce. Crescemos quando resolvemos sozinhos nossos problemas, quando administramos entre os colegas as querelas nem sempre fáceis. Entre as crianças, inúmeras de rusgas se resolvem sozinhas, os pais nem ficam sabendo, e é ótimo que assim seja.
O bullying deve ser combatido, mas não dessa forma. O preço a pagar pela suposta segurança compromete a essência de uma das funções da escola, que é aprender a viver em sociedade sem os pais e a sua proteção, evocada pela presença da câmera.
Na sala de aula e no pátio da escola cada um vale por si. É preciso aprender a respeitar e ser respeitado. Nós todos já passamos por isso e sabemos como era difícil. Não existe outra forma, é isso ou a infantilização perpétua. A transição da casa para a escola nunca vai ser amena.
Essa proposta de vigilância não se ancora em razões pedagógicas e sim na angústia dos pais em controlar seus filhos. Não creio que seja a escola que reivindicam câmeras, mas quem a paga. São os pais inseguros que querem estender seu olhar para onde não devem. Existe uma correlação forte entre pais controladores e filhos imaturos, adolescentes eternos que demoram para assumir responsabilidades. É possível cuidar dos nossos filhos mesmo permitindo a eles experiências longe dos nossos olhos. A escola é deles, esse é o seu espaço e seu desafio. A escola ajuda seus filhos a crescer e eles não estão sozinhos, os professores estão lá, acredite neles. Puxe da memória, muito do que somos foi por ter enfrentado o pátio, comigo foi assim.
Estranho na minha alma
Separações com e como finais felizes, por que não?
Fim do dia, das forças. O amigo liga chamando para um chope. Chegando lá, agradável surpresa: na mesa estava sua ex-mulher! Inevitável não fantasiar uma retomada, a separação sempre deixa uma ferida mal fechada, uma vontade de colar o que quebrou. Sempre gostei dela, do casal que eles faziam, mas eu sabia que aquele amor acabou. Havia escutado meu amigo o suficiente para saber que seu coração tomara outros rumos. Quere-los juntos novamente era egoísmo. Apesar disso, a conversa foi deliciosa como costumava ser no passado, estávamos relaxados, contentes. Depois, cada um foi pacificamente para seu lado, sem ressentimentos visíveis.
Amigos também ficam sequelados com os divórcios, sofre-se junto. A pior partilha, quando um amor acaba ou colapsa, é a dos afetos. Os que estão de fora do relacionamento descobrem-se desagradavelmente dentro: são disputados, junto com livros discos e algum patrimônio. Os amigos raras vezes conseguem transitar igualmente entre ambos, sem ter que escolher. A posição é similar, embora menos grave, à dos filhos. Estes, no entanto, não podem, nem devem, nem querem se posicionar, precisam manter o equilíbrio.
Quando a separação é tinta fresca, os ex-amantes estão loucos. Afogados em ressentimentos, reprisam incessantemente as mesmas histórias. Exigem paciência budista. Descontam a perda em tudo o que passar pela frente, seja filho, amigo, parente ou mascote. O filhos, com o coração sem lar, precisam acolher a dupla de desequilibrados que substituiu seus pais. Os amigos sofrem mal menor, mas a costumeira intimidade agradável transforma-se no muro das lamentações.
Fico triste, mas não desaprovo separações. Já entendi que vínculos terminais devem ser eutanasiados. Relações destruídas ou destrutivas podem consumir os envolvidos até o fim. Vi muita gente florescer após um recomeço, por vezes em um novo amor, outras em importante romance consigo mesmo. Mas sei o alto preço disso. Das separações que vivi, minhas ou alheias, impossível esquecer o desgarramento, a devastação, o vazio, o sem sentido que restou. Dói, destrói. Conviver com um amigo separado é reviver esse luto, essa perda. Nessa hora, o amor fraterno é imprescindível, mas impotente, nossa presença não tapa o furo.
Aquele entardecer, na presença de uma ferida cicatrizada, me encheu de energia. “Estranha no meu peito. Estranha na minha alma. Agora eu tenho calma. Não te desejo mais. Podemos ser amigos simplesmente. Amigos, simplesmente. E nada mais.” A letra de Fernando Lobo, na música “Chuvas de verão” traduzia o encontro. O final feliz, por vezes, não é o dos contos de fadas, o casamento, pode ser também uma separação que finalmente aconteceu. Por que não?
O Papa Francisco e os Lamed Vavniks
No apoio ao novo papa, expressão da esperança mínima, presente em uma velha lenda do Talmud
Uma questão que se coloca quando lemos o Velho Testamento: por que Deus não destrói esse nosso mundo imperfeito? Afinal, pouco O veneramos e insistimos em tantos e repetidos pecados. Por muito menos do que somos ou fazemos Ele varreu do mapa Sodoma e Gomorra. O que O deteria agora de fazer agora o mesmo conosco?
A tradição judaica tem uma boa resposta: nossa sorte estaria depositada em trinta e seis pessoas justas, os Lamed Vavniks. Essas pessoas seriam nossa salvação. Nas palavras sintéticas de Borges: “os pilares secretos do nosso universo”. Nosso mundo não é destruído porque pelo menos alguns homens retos habitam esse planeta infeliz. Seu nome vem do iídiche, mas proveniente do hebraico: “um dos trinta e seis”. Os Lamed Vavniks não sabem que o são, não sabem quem são os outros, tampouco desconfiam de sua missão. O que se sabe é que são todos muito pobres e se descobrem seu propósito morrem, sendo que imediatamente, outro é posto em seu lugar.
Várias questões se colocam: seriam todos homens? Ou existiriam mulheres Lamed Vavniks? Por que trinta e seis? Seriam todos judeus, ou Deus tem uma visão mais ampla dos seus garantes do universo? E a pergunta principal: quem criou os Lamed Vavniks? Afinal, se eles são a garantia de que Deus não nos esmague num momento de fúria, não faria muito sentido que Ele tivesse criado algo para Lhe fazer barreira posteriormente. Ou então, Deus é consciente de seus rompantes, e criou esses seres perfeitos para Lhe lembrar da esperança de que um dia viéssemos a nos corrigir. Essas questões permanecem sem resposta, mas a evocação dessa lenda me ajudou a pensar a simpatia atual pelo novo Papa Francisco.
É extraordinária a reação positiva de sua escolha entre os laicos, entre os quais me incluo. Que os católicos o recebessem bem faz sentido, depois de anos de papa sem carisma chegou um com dose dupla. Ele transmite uma nobreza e integridade por todos os ângulos. Se vai conseguir dar novos rumos para a igreja é assunto interno aos católicos, e dos que vão à missa.
Minha questão é: por que até os não católicos simpatizaram com a escolha? É difícil explicar, mas apostaria que um dos motivos é supor que ele funcionaria como um Lamed Vavnik, versão católica. E convenhamos, o ocidente anda precisando de um. Vivemos numa era sem estadistas. Sua figura seria uma esperança mínima de uma humanidade melhor, como se existindo pelo menos um moralmente superior, nós também poderíamos ser melhores.
O homem cria utopias para suportar sua precária existência, tanto concreta como moral, parte da ideia de que em algum lugar algo melhor existe, existiu ou existirá. O horizonte do homem não poderia ser só esse. As utopias sonham nossas melhores possibilidades, figuras públicas extraordinárias também.
O fim do (meu) mundo
Imaginar o fim do mundo é achar-se o ponto final, ápice da condição humana. Quanta pretensão!
Fim do (meu) mundo
Se você está lendo estas linhas é por que o fim do mundo, previsto para hoje, não aconteceu. Confesso uma ponta de decepção, o fim, ou ao menos uma catástrofe, engrandeceria o homem, nos restituiria a condição de protagonistas num universo indiferente ao nosso destino. O cosmos foi mais uma vez indiferente aos rogos dos humanos e às suas previsões, o universo e o planeta continuam na sua imperturbável mecânica celeste, independente e ignorantes das nossas malfadadas conjecturas.
Diga-se, em favor dos Maias, os pretensos profetas do apocalipse em questão, que isso não foi uma idéia deles, e sim uma leitura apressada nossa, a partir de informações incompletas sobre sua cultura e calendário. Se não foi dessa vez, não se preocupe, cedo ou tarde vão anunciar outro fim, e de novo vamos vacilar se acreditamos ou não. A temática apocalíptica é uma velha conhecida e parece que não sai de cartaz. Não faz muitos anos, em 2000, era o mesmo temor, o mundo iria acabar, e cá estamos nós, lampeiros como sempre.
Inútil reclamar da imbecilidade, invocar racionalidades de todas matizes, acusar os crentes apocalípticos de passar atestado de ignorância científica. Até procede, mas a questão é outra: esse temor tem raízes míticas, e esse sistema de crenças e medos não funciona com a lógica da razão. Quando se opera com o sistema mítico, a ciência e o bom senso não têm entrada. Qualquer sistema mitológico clássico, quando conseguimos captá-lo em sua forma mais articulada e completa, pensa o cosmos com os mesmos termos: o nascimento (ou renascimento), um período de auge glorioso, um declínio sofrido e, finalmente, a destruição com o retorno ao caos. Portanto, o apocalipse faz parte desse esquema, dessa visão do mundo. Quando se raciocina miticamente, mais dia menos dia, desemboca-se nesse vórtice.
A questão que muitos se colocam é: por que discursos assim, tão disparatados, ainda tem pregnância? Por que, contra todas as evidências possíveis, ainda há quem acredite nisso? Creio que a questão está mal posta, poderíamos pensar o contrário, por que não seria assim? Goste-se disso ou não, o tempo do mito não acabou. O avanço da ciência e seu método, se por um lado combate a religião, a superstição, a magia, deixa muitas questões sem respostas e é onde se abre a brecha para o retorno do pensamento mítico. Os homens podem viver com pouco, mas raramente abrem mão de um sentido para o mundo e para sua vida. Qual a razão da existência? Para onde vamos? De onde viemos? Se o futuro promete tanto, por que me tocou viver esta época tão menor? Que diferença fiz, farei, nada mudaria se eu jamais tivesse nascido?
A ciência explica o mundo, mas quanto aos anseios de sentido de que padecemos, fornece mais dúvidas do que certezas. São poucos que agüentam a vida segurando-se no pouco que ela nos dá e encaram o sem sentido da existência. Já o pensamento mítico é um gerador de sentidos, ele capta o horror humano ao vazio e o preenche de qualquer maneira, com o que estiver mais à mão. Melhor um universo de conto de fadas, com entidades benignas ou malignas nos controlando que o nada. Nosso narcisismo não suporta que não haja transcendência, que sejamos um acaso na imensidão cósmica, um mero macaco melhorado.
O erro mais banal, mais primário, em que nosso pensamento cai, e como cai, é o de confundir-se com o objeto a ser examinado. Se alguém acredita que estamos no fim dos tempos, é possível que ele tenha razão, algum fim se aproxima, mas é mais provável que seja o fim dele, ou o fim de um mundo que reconhece como seu. Todos constatamos a velocidade com que a história anda e atropela tudo: costumes, formas de pensar, de viver. São tantas as novidades que perdemos as referências. A revolução da semana passada está velha, a tecnologia de ontem virou sucata.
A sensação é que o ritmo vem se acelerando. O fato é que nos sentimos ultrapassados a cada dia e, se não estamos em constante adaptação, corremos o risco de não entender o mundo em que vivemos. Nesse constante recriar-se para o novo, alguns se cansam e se perdem pelo caminho, ou ainda, simplesmente desistem. São esses os que vivem o fim do seu mundo, afinal, os valores que lhe ensinaram na infância já não servem, a paisagem não é a mesma, os anseios são outros. Não fica claro que o mundo está acabando? Quando chega a notícia do fim dos tempos, apenas confirma algo que já sentimos.
Sinceramente não desgosto de ondas apocalípticas, me sinto mais humano, mais completo, reencontro minhas desativadas ramificações religiosas que por momentos entram em alerta. Uso para fazer um exercício, que sugiro a todos: perguntar-se qual parte nossa está morrendo? Qual dos horizontes em vias de desaparecimento vamos sentir falta?
O homem não tem uma inclinação nostálgica por vocação mórbida, nossa substância é fornecida pelo tempo em que vivermos, que nos fez ser o que nos tornamos, isso é tudo de que dispomos. É duro pensar que tantos seguirão sem nós, por um tempo indefinido. Parece injusto, jamais saberemos da história que está por vir. Pensar que seríamos o último capítulo nos deixaria no admirável papel de ponto final, protagonistas essenciais, o que infelizmente não somos. Uma velha e saudosa senhora que conheci sempre dizia: “o cemitério está lotado de insubstituíveis”. Somos todos datados. A questão é quando expira o prazo. Viveremos um apocalipse privado, está é a única certeza.
O Facebook e o cérebro
Talvez o Facebook e sua sociabilidade hiperativa não sejam mais do que tentativas de resgate de formas tradicionais de relacionamento!
Esses tempos escutava as aventuras de um jovem médico voluntário no Xingu. A barreira da língua era um empecilho, a lógica das queixas, e as formas inusuais de expressar o sofrimento físico também. Mas o que realmente o desafiava era como manter uma ficha médica, como aproveitar as informações dos colegas que já haviam passado por lá. Por exemplo: a ficha indicava um senhor de aproximadamente 60 anos, mas lhe traziam uma criança. Como? Simples, lhe disse o intérprete, o avô tinha um nome muito respeitado, e como gosta muito do neto, deu o seu nome a ele. Logo, agora o fulano é essa criança. O avô tomou outro nome. Como que o intérprete sabe? Ora, todos sabem, responde o intérprete. Essa troca não era um caso isolado, portanto quem quiser fazer uma ficha médica dessa população vai ter que pensar numa outra lógica, e esqueça as referências espaciais, eles são nômades.
Para nós, a troca de nome beira o inconcebível pois acreditamos que devemos, de alguma forma, nos manter iguais a nós mesmos vida afora e nosso nome faz parte disso. Aliás, mudamos tanto durante a vida que é difícil saber qual é o núcleo que responde pela nossa identidade. Em outras palavras: o que é que muda e o que permanece inalterado em nós é uma pergunta sem resposta fácil.
O exemplo acima não é único, na maior parte das sociedades tradicionais os nomes variam ao longo da vida. Geralmente nos ritos de passagem o indivíduo ganha um novo nome, mas nem só: nascimentos e mortes também costumam também suscitar novas denominações nos parentes. Ou seja, um indivíduo pode se chamar de diferentes formas durante a vida. Quem vive entre eles sabe a lógica que preside a troca e acompanha as mudanças. Essas alterações constantes, aliadas às complicadas (em comparação às nossas) relações que regem os casamentos, de quem pode casar com quem e de quem não pode nem se aproximar, ou ainda quem pertence a cada clã ou sub-clã e a que linhagem o recém-nascido pertencerá, constituem um complexo enredo social que exige bastante do cérebro.
Mas lembro essa questão a propósito duma recente pesquisa: os cientistas da University College de Londres divulgaram os resultados de uma investigação mostrando uma correlação entre certas áreas do cérebro e o número de amigos que as pessoas possuem nas redes de relacionamento virtuais. As pessoas com maior número de amigos possuem certas áreas cerebrais mais desenvolvidas. Certo, mas o que determina o que? Eles tem mais amigos por ter essa área mais desenvolvida, ou possuem essa área mais desenvolvida pelo exercício da amizade? Os pesquisadores pararam por aqui. Certamente uma nova pesquisa partirá dessa pergunta. Dada a plasticidade adaptativa do cérebro, apostaria no uso, mas isso é um palpite, teremos que esperar um outro estudo.
O que sim poderia ser considerado é um outro dado dessa questão. Do ponto de vista histórico o número de pessoas que conhecemos durante a vida mudou muito. Vivemos numa sociedade individualista, em contato com muita gente, mas com poucos deles temos laços significativos. Sabemos e temos informações sobre nossa família, que é cada vez menor, e de alguns amigos eleitos. Freqüentamos muitas pessoas, mas de poucas retemos informações como o nome, filiação e um trecho de sua vida. Já não gastamos muita energia arquivando nomes de pessoas aleatórias, suas qualidades, seus defeitos, sua história. Num passado não tão distante isso era ao avesso. As sociedades tradicionais tinham a vida social em grande conta e as informações sobre os indivíduos que delas faziam parte eram cruciais.
Acredita-se que, do ponto de vista evolutivo, a forma de funcionar em relação aos parentes, às amizades, às pessoas que conhecíamos e à importância que damos a elas, certamente sofreu mais influência desse momento histórico anterior ao nosso, pois somos – a sociedade moderna individualista – uma exceção recente no longo percurso do homem.
Nosso cérebro foi moldado, e assim funcionou durante a maior parte do tempo, em sociedades tradicionais, ou seja, conectado a uma extensa rede social, onde sabíamos tudo de todos. Mais ainda, se considerarmos que essas sociedades têm um funcionamento distinto em relação aos mortos, pois eles não são esquecidos, são honrados e lembrados em rituais, somam-se essas referências além do carrossel de nomes dos vivos. No passado, as gerações mortas também contavam no acervo da memória, das relações que precisavam manter-se articuladas, constantemente evocadas. Logo, nosso cérebro evoluiu guardando um grande número de nomes, agregados ao lugar social e à origem de cada indivíduo, pois as sociedades anteriores à nossa davam à trama da vida social suma importância.
Talvez possamos lembrar aos pesquisadores, que “escanearam” o cérebro para essa investigação, que do ponto de vista evolutivo nossa mente pode ser anômala em relação ao que fez a aventura humana. Nesse sentido, nossas capacidades sociais pareceriam atrofiadas se comparadas às sociedades anteriores. Somos introspectivos e solitários, dependemos menos do olhar coletivo, no sentido presencial, do convívio de fato, enfim, do que era a aprovação da aldeia. Esperamos nosso reconhecimento de determinados indivíduos particularmente valorizados, com quem desejamos nos identificar, raramente de todo um grupo.
As redes sociais geralmente despertam um temor difuso em pais e educadores, eles ficam sem saber se aprovam ou não ver seus jovens consumir tanto tempo conectados a ela. Queria contribuir a essa questão colocando um ingrediente: talvez o motivo pelo qual os jovens possuam uma extensa rede social nas comunidades virtuais, seja menos uma novidade, e mais um retorno a uma forma antiga de funcionamento, para a qual nosso cérebro sempre foi apto. Claro, não da mesma forma, mas usando uma capacidade de se situar e sentir-se à vontade numa ampla rede de pessoas com diferentes pesos de significação. Isso se considerarmos do ponto de vista evolutivo. Já do ponto de vista histórico, poderíamos ver algo semelhante: as redes sociais simulam a aldeia, uma comunidade onde todos se conhecem e partilham informações.
O fato de vivermos numa sociedade individualista não quer dizer que não tenhamos saudades das antigas formas de convívio. Quem sabe as redes sociais nos apontem o esgotamento, a pobreza, ou uma insuficiência das formas contemporâneas de estarmos (ou não estarmos) uns com os outros. Seria uma crítica espontânea e ingênua ao individualismo. Enquanto julgamos mal os jovens pelas suposta superficialidade da conexão com seus amigos virtuais, deixamos de ver a profundidade da intenção de criar algo novo, algo vivo, em termos de laço social.
Talvez a minha geração deva deixar a arrogância de lado e perceber que pode aprender com o que os jovens apontam, e que até mesmo possa haver uma sabedoria que nos escapa na troca de nomes dos índios do Xingu. A rapidez dos diálogos e fragilidade da imagem mutante daqueles que se expõem uns aos outros, deixando-se influenciar pelos pares e figuras de referência, reflete indivíduos em processo de transformação, permeáveis aos desafios sociais. Poderíamos supor que nossos jovens hiperconectados estejam buscando caminhos para o resgate dessa herança social, uma retomada da vida em comunidade. Com sorte e muita prática, talvez possamos ver triunfar o exercício da solidariedade e da interlocução que o convívio propicia.