Mickey Mouse octogenário
Sobre a arte de envelhecer, em 26/11/2008
Conheci um senhor velho com olhar de guri. Visto com zoom, seu rosto apresenta manchas, saliências, uma cara com sinais de uso, mas os olhos, ignorando o peso das pálpebras, fitam com picardia. Na maturidade, as cartilagens continuam crescendo, tornando-nos caricaturas de nós mesmos. Viramos duendes, bruxas, narigudos e orelhudos. Apesar disso, fui fisgada pela vivacidade daqueles olhos, tão diferentes daqueles, arregalados através de cirurgias plásticas, ou apagados pela vida bovina que lhes desenvolve catarata na alma.
Comendo livros
Sobre leitura e minicontos
Ainda guardo em mim alguns raciocínios infantis que me induzem a equívocos. Um deles é ler as coisas no seu sentido literal. É esse tipo de pensamento que pode levar uma criança a pensar que todas receitas contém chá e sopa entre seus ingredientes, já que colheres disso são sempre mencionadas, e que sapatos de salto são para saltar. Foi por isso que li enviesado uma manchete da capa da revista Claudia que dizia: “A dieta dos Best-sellers”.
A promessa das máquinas
Sobre o trabalho doméstico, Revista TPM
Eu tinha duas famílias prediletas, ambas do futuro: Os Jetsons, um desenho animado, e os Robinsons, do seriado Perdidos no espaço. Achava-se que acabaríamos usando macacões prateados colados ao corpo e botinhas que finalizavam essa espécie de malha unissex. Era década de 60 e na televisão o porvir era representado igual ao presente, mudando só o figurino. Os homens ainda trabalhariam fora, enquanto as mulheres cuidariam do lar, mas haveria um atenuante: os robôs. Os Robinsons tinham um exemplar macho e os Jetsons tinham Rosie, uma eficiente empregada automática.
Amores brutos
Sobre homens que matam suas amadas
“Quem ama não mata”. Essa era a frase das feministas, décadas atrás, protestando contra a matança de mulheres pelos seus homens. A afirmação é convincente, mas será que se trata de amor nesses casos?
Professora Simone
Homenagem a uma mestra
O nome dela era Simone, professora de Português. Ela não me tinha em grande conta, eu a achava poderosa. Entre nós houve apenas um momento marcante: certa ocasião, envergonhada de ser tão sonsa, fingi que havia colado. Fingi para mim mesma, já que o nervosismo da pretensão de transgredir me enevoava a visão e, de fato, não consegui enxergar nada na prova da colega. Se o feito não tinha sido grande coisa, pelo menos tentei fazer valer a intenção, contando vantagem entre meus colegas na saída da prova. Não é preciso dizer que a professora ouviu e tomou as medidas que lhe cabiam. Inicio e fim da minha incipiente carreira criminal. Conto isso para que não se julgue que se tratava de relação de mútuo afeto ou camaradagem, que recubra ou mascare o caráter simplesmente pedagógico do que se segue.
XXY
Sobre o filme XXY
Assisti, com imperdoável atraso ao filme argentino “XXY“. Imperdível lição do quanto nossa identidade sexual é uma questão em aberto, que passamos a vida tentando, inutilmente fechar. A intolerância com todo tipo de ambigüidade e ambivalência por parte da sexualidade alheia é a mesma que temos com as indefinições de cada um de nós.
Estrangeira digital
Sobre os que nasceram antes do computador
Na minha infância a tevê tinha hora para começar e outra, triste e trágica, para terminar. Agora ela está sempre lá, disponível a qualquer hora em que a solidão ou a falta de sentido da vida bater. Graças a ela, os desesperados têm um balcão de bar sempre a mão para embriagar a alma exausta. Mais do que a televisão, agora existe a rede, a web, a internet, a teia, a trama que nos liga a todos e a tudo a qualquer hora.
Quem é o novo macho?
Sobre o livro Canalha! de Carpinejar
Imagine se nossos seios excitados ficassem eretos sob a blusa, alardeando que uma fantasia erótica atravessou o pensamento, numa reunião de trabalho! Como nos sentiríamos se a cada mínimo gesto suspeito as amigas gritassem “sapatona!”. Com os homens é assim. Não temos dúvidas de que ser mulher sempre foi difícil, mas achamos que ser homem é fácil. Errado. Na dúvida, pergunte ao Fabrício Carpinejar. As respostas virão sob forma de crônicas engraçadas e líricas, em seu livro “Canalha!” (Ed. Bertrand Brasil).
Efeito borboleta
Sobre a ópera Madame Buterfly
Dois primeiros encontros na minha vida, com a ópera ao vivo e com Madame Butterfly. A obra estreou ontem no Teatro Solis, em Montevidéu, e eu confesso que mal lhe conhecia a trama. Da história eu só tinha uma breve notícia sobre desengano amoroso e final trágico. Mas ambas foram muito impressionantes.
O gato e a montanha
Sobre a leitura da Montanha Mágica
Quando vejo essas entrevistas que são feitas a personalidades importantes, fico fantasiando que aconteceria se algum dia eu fosse suficientemente importante para que me perguntassem qual meu livro preferido, filme, prato, palavra, lugar. Respondendo mentalmente à entrevista que nunca me fizeram, o que me ocorre é que nessas horas não lembro de nada que li, de nenhum filme que vi, de nada relevante, pânico de opinar.