Zero Hora
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Escravos da infantilidade

ter uma criança interior não significa ser infantilóide!

Sábado à tarde, supermercado lotado. No caixa paciência para os carrinhos abarrotados, mas dessa vez precisei de uma dose extra. À minha frente, ar aparvalhado, um jovem pai de família, forte e normal, esperava imóvel seus produtos passarem no caixa e serem empacotados. Em pé, olhar perdido, boca entreaberta, fitava o vazio, só faltava o fio de baba. Lembrava aquelas crianças que são carregadas junto com a família para um lugar que não lhes interessa, distraídas, alheias. Nesse supermercado existem empacotadores prestativos, mas eles não davam conta. Não custa ajudar, ir organizando, embalando junto, cooperar.

No comportamento passivo do meu companheiro de caixa, impossível não evocar a figura do nobre, sendo vestido, banhado, alimentado e conduzido nos braços de seus servos ou escravos, um eterno bebê. Quanto mais evoluídos nos tornamos, caminhamos em direção à autonomia, prescindimos de serviçais. É assim com as crianças, que aprendem a cuidar de si mesmas cada vez melhor. Mas será que me comporto diferente quando consigo pagar um hotel mais estrelado? Quem não curte café na cama macia, toalhas limpas, massagem, chofer? O que é um restaurante, senão ficar sentado enquanto o solícito garçom se dedica a atender nossos caprichos? São ocasiões em que voltamos no tempo, nos quais amar é maternar, cuidar. À vezes, ser independentes exaure, queremos algum mimo.

Os trabalhos associados aos cuidados maternos primários, nos quais adultos adquirem privilégios de crianças, sempre foram desvalorizados. Mulheres, pessoas socialmente exiladas, escravos, ocuparam os bastidores da nossa vergonha. Na verdade, aquele que abre mão da autonomia também se abstém da liberdade que ela proporciona, da intimidade, da privacidade. Por isso relega-se ao ostracismo aos que fazem parte dela. Mães, pobres e escravos tornaram-se ralé da vida pública, escondidos no armário de nossa carência afetiva, associados ao medo de ficar sozinhos. A infantilidade é um segredo.

Entregar-se nos braços de alguma comodidade é uma delícia, mas como exceção, descanso de guerreiro, conquista. É gostoso, um luxo que só é tal se não for um hábito. Mas no dia a dia, a dependência é uma forma de alienação, uma existência empobrecida. Que dizer de alguém, aparentemente crescido, que precisa se fazer adotar pelo primeiro empacotador franzino que encontra pela frente? Por favor, supermercado não é Spa, há adultos na fila!

Memórias de um tempo não tão distante

sobre o seriado “Mad men”e os costumes da época (anos sessenta)

Quando eu era pequena, há menos de meio século atrás, o chão era o melhor lugar para o lixo, fumava-se em qualquer ambiente, inclusive hospitais, aviões e o quarto das crianças. Negros e brancos vivam em mundos distintos, gays habitavam o armário e as mulheres, quando tomavam algumas liberdades eram chamadas de prostitutas. Caçador era herói, tinha-se armas em casa, poluição era decorrência natural do progresso. Sexo antes do casamento até acontecia, mas a união estável era destino certo. Não lembro de muitas mulheres sozinhas, fora as viúvas. Ecologia era um delírio de poucas vozes excêntricas.

Na minha adolescência, década de 70, apesar das conquistas da revolução de costumes, não lembro de gays assumidos no colégio. Apesar de ter estudado sempre escolas públicas, raramente tive colegas negros. Na faculdade isso tudo melhorou um pouco, mas ainda estávamos longe das liberdades e da tolerância com as diferenças que hoje começam a ser consideradas itens não opcionais.

Lembro quando comentavam que alguém era tão idoso “que viveu no tempo da escravidão”. Pois é, começo a me sentir tão idosa que venho do tempo da discriminação desavergonhada, de uma cultura de depredadores do planeta.

Tudo isso ficou muito claro ao assistir ao seriado Mad Man, (que arrasou no Emmy deste ano) no qual ando viciada. O que me mesmeriza na série vai além da dramaturgia e elenco, é a reconstituição histórica, retrato cruel da época em que cresci, essa que descrevo acima. A história centra-se no cotidiano de uma agência de publicidade em Nova York nos  anos de ascensão de Kennedy, da guerra fria. Na vida das personagens, os homens mais velhos traziam memórias da Guerra Mundial e da Coréia (Vietnã estava a caminho), a prosperidade não escondia a barbárie e as mulheres viviam a realidade descrita por Betty Friedan em A Mística Feminina. Apesar da psicologia e a psicanálise já terem alguma popularidade, as crianças nunca eram escutadas.

O “Dever da Memória” costuma estar associado a heróis e vítimas de tempos difíceis. Inclui desde os necessários tributos aos que souberam se posicionar com coragem, até o julgamento dos que foram indignos, criminosos. Mas os tempos duros não se restringem a guerras, ditaduras e extermínio. A vida privada também deve ser lembrada, pois na intimidade igualmente se produzem injustiças, discriminações e infortúnios e nesse sentido o passado quase sempre nos condena. É bom lembrar das conquistas, mas também do que não nos orgulha, e contar tudo isso aos mais jovens é uma tarefa que nunca deverá ter fim.

A vaca, dez anos depois

Sobre o filme “Um conto chinês”e os dez anos do 11/09.


Coisas impossíveis acontecem: na China uma vaca caiu do céu sobre um barco. Isso não é fantasia, foi um fato. Assim como quando, há dez anos atrás, dois aviões de passageiros se estraçalharam sobre as torres gêmeas, destruindo um ícone da confiança do império americano.

Eu estava no consultório, na mensagem da secretária eletrônica meu marido avisava que caso alguém me contasse tal estapafúrdia notícia, não pensasse em internar o relator por insanidade: ocorrera, de fato, um atentado terrorista, macabro espetáculo filmado em tempo real. A vaca voadora e o desastre americano eram igualmente improváveis. O imprevisível nos deixa inquietos. É sobre essa base que se estrutura o delicado filme argentino “Um conto chinês”. Em espanhol, a expressão “cuento chino” define a lorota, história improvável, embuste. Serve também para descrever essas situações absurdas nas quais alguém morre quando estava tão vivo, tão seguro, nas quais tendemos a dizer: “não pode ser”.

Roberto, o dono da loja de ferragens, personagem do filme argentino vivido por Ricardo Darin, levava uma vida previsível, obsessivamente estruturada. Mas seu lazer apontava para o avesso: colecionava notícias de jornal com eventos que provavam a força do imprevisível, principalmente em seu aspecto trágico. Histórias como a da vaca que caiu do céu eram sua fonte de fantasia. Na vida real cultivava certezas, dormia sempre à mesma hora, comia o mesmo cardápio, visitava o túmulo dos pais aos domingos, seus cenários e personagens mudavam o mínimo possível. Até que irrompeu em sua vida um chinês perdido, vítima de um assalto, que não falava uma palavra de espanhol, do qual se compadeceu. A jornada do personagem do filme é na direção da vitalidade: desafiado pela presença em sua casa do estrangeiro desamparado vai perdendo a rigidez. Paro por aqui para não estragar o prazer da história.

Para quem perdeu um ser querido é muito difícil acreditar que aquela pessoa simplesmente sumiu. Tantas coisas que se diria, ou mesmo se silenciaria num pacto de conivência mútua, ficarão para sempre suspensas. A morte sempre vem incompreensível, incontrolável como uma vaca ou uma torre que caem e não existe defesa. É impossível fugir da catástrofe final: evitar vínculos, apostas, antecipar fracassos, só amortece a aventura de viver. Essa conduta não deixa de ser outra forma de morte, pois quem tanto tenta controlar o destino acaba minimizando a própria existência.

Também faz dez anos que escrevo neste espaço (Jornal Zero Hora, Segundo Caderno), inaugurado com uma reflexão sobre o pânico do atentado. Sobrevivemos, veja só.

Deficiências e amores

sobre ser e amar a partir do que não se tem

A foto do jornal era de uma passeata peculiar, comemorava a abertura da Semana de Valorização da Pessoa com Deficiência. A imagem mostrava a Miss Deficiente Visual, Gisele Hübe, empurrando a cadeira de rodas de Juliana Carvalho, uma das idealizadoras do evento. Ou estaria Juliana guiando Gisele? Seria natural que a moça cega se beneficiasse dos olhos da cadeirante, que por sua vez contasse com as pernas da primeira. Assim seriam os amores, onde um pode oferecer ao outro o complemento do que lhe falta. Mas se a deficiente visual conduzisse a cadeirante com sua capacidade de andar sem ver o caminho e fosse puxada pela mobilidade que é possível ter sem as pernas?

As pessoas com deficiência desenvolvem dons ímpares, eficiências relativas às quais os ditos normais somos também deficitários. Já pensou em andar vendado, fazer uma refeição ou vivenciar uma experiência artística sem enxergar? Deveríamos fazer isso freqüentemente para perceber como somos limitados em termos perceptivos. Da mesma forma, nos vínculos temos mais a oferecer a partir dos desafios que vencemos frente ao que nos faltou, do que das facilidades que recebemos.

As adversidades grandes ou pequenas que enfrentamos na vida nos obrigaram a inventar-nos além do óbvio, elas estão na origem do que temos de mais interessante. Ao contrário de tornar-se gigolô das próprias desgraças, arauto da superação, de viver recolhendo uma admiração dízimo da pena; trata-se de aprender a ouvir como os que não vêem, a ver como os que não ouvem. São dons criados, tão diferentes dessa fantasia de que dependemos de dádivas da natureza, ou da genética. A vontade de um cadeirante de ir a algum lugar, por exemplo, é a expressão de um desejo do qual muitos são deficientes, eis o oposto da depressão.

Entre os amantes, é comum que se tornem imprescindíveis um para o outro porque se sentem, de alguma forma, inválidos. O somos todos, em tantos sentidos. Do ser amado esperamos que ilumine nossa escuridão, nos carregue para além das nossas forças, só isso. A vida não é muito acessível mesmo, mas somando as saídas encontradas por cada um, os vínculos amorosos nos guiam e conduzem. Bem dizia minha avó: não procure alguém cujas qualidades combinam com as tuas, mas sim aquele cujos defeitos se encaixem nos teus. Acrescento, busque alguém cujas deficiências tenham se tornado soluções, seus obstáculos saídas inusitadas. Os revezes estão na origem de modos peculiares de viver, definem mais do que as capacidades. A questão não é o que o destino nos deu, mas sim o que conseguimos fazer a partir disso.

Carta aos futuros pais

sobre adoção, pais que esperam para conhecer seus filhos

Quando era pequena gostava de imaginar que aquele a quem um dia amaria estava em algum lugar, apenas ainda não nos conhecíamos. Havia nessa fantasia uma idéia de predestinação otimista, não queria supor acasos que me condenassem à solidão. Acreditava que o que era meu estava reservado, quando fosse a hora “ele” chegaria. Na verdade tratava-se de uma fantasia de esperança baseada na experiência: meu pai faleceu quando eu ainda era um bebê e até meus seis anos passei achando que um dia chegaria um pai, que era como um príncipe-encantado, que tanto desejava ter. Afinal ele chegou e nosso encontro deu certo. Quando partiu, bem velhinho, deixou-me a memória de uma paternidade legítima. Disse isso a ele em todos os dias dos pais que tivemos e ainda sinto falta de fazê-lo agora. Desta vez dedico a outros futuros pais meu otimismo, os votos de que outros tenham a sorte que eu e ele tivemos.

Muitos que se tornarão pais e filhos já existem em algum lugar, mas ainda não se conhecem. São crianças que perderam suas famílias, nunca tiveram uma, ou foram afastadas de maus tratos e situações de abandono. São pais que encaminharam os papéis de adoção e esperam por um encontro. Entre estes, além dos casais que enfrentam problemas de fertilidade, há ainda outras configurações familiares que incluem famílias monoparentais, casais gays, maternidades e paternidades tardias.

A função parental não é viabilizada por hormônios, nem pela capacidade da lactação ou acionada nos pais pela aparição de seus traços na criança. Sem um desejo que sustente o lugar de pai e mãe não há nada no mundo que viabilize uma família. Se um nascimento não passar de um descuido, um acaso irresponsável, um arrebato que não se sustenta, só assistiremos a desencontros e tristeza. Após a gestação e o parto sempre é necessário que pais e filhos se adotem uns aos outros. No reino da reprodução humana a natureza garante muito menos do que gostaríamos de crer.

Nossa sociedade fez da família nuclear clássica uma espécie de fetiche. Na teoria, pois na prática várias mudanças aconteceram. Testemunhamos histórias de arranjos diferentes e bem sucedidos, através das quais compreendemos a riqueza de possibilidades da relação de pais e filhos. Aliás, toda tentativa é bem vinda, pois a existência de famílias de propaganda de margarina nunca impediu que pais e filhos encontrassem destinos trágicos e infelizes.

Pelo que vivi, por tudo isso que fomos aprendendo, desejo a todos os pais e filhos que ainda não se conheceram um futuro feliz dia dos pais!

Viva e deixe morrer

Fiquei triste com a morte Amy Winehouse. Dizem que as drogas e bebedeiras a destruíram. Sim e não. Parece que terminou seus dias tentando afogar sua angústia com o narcótico mais à mão e de certa forma ela tinha razão: para alguns a lucidez pode ser insuportável. Apesar disso, acredito que foi a incapacidade de […]


Fiquei triste com a morte Amy Winehouse. Dizem que as drogas e bebedeiras a destruíram. Sim e não. Parece que terminou seus dias tentando afogar sua angústia com o narcótico mais à mão e de certa forma ela tinha razão: para alguns a lucidez pode ser insuportável. Apesar disso, acredito que foi a incapacidade de distinguir-se da personagem que criou que lhe foi realmente letal. Estranhamente bonita, vozarrão emocionante e letras corajosas, conquistou as graças da fama. Viveu rápido, morreu aos 27 anos, no prenúncio da balzaquiana que ela nunca será. Nesta época em que percebemos o amadurecimento como carrasco dos nossos horizontes todas as viradas de décadas são trágicas.

Paul McCartney tinha um pouco mais que isso quando criou “Viva e deixe morrer”. Ele dizia que o coração jovem é um livro aberto, mas este mundo leva a sofrimentos e desistências que fazem com que deixemos de simplesmente pensar “viva e deixe viver”. Realizamos alguns sonhos, mas não faltam contrariedades e limitações. Cada frustração é uma pequena morte, quer seja de um ideal, de um desejo. Falam que vivemos um tempo sem utopias. Bobagem, sobre a geração de Amy pesa a nossa mais cara utopia: a adolescência como a grande época da vida, momento de tirar todo o suco antes da mesmice da maturidade. Amy tinha uma mente inquieta, seu romantismo se alimentava de desencontros e embebedava sua urgência de amar e viver, parece nunca ter tido essa leveza jovem cantada pelo ex-Beatle.

A sociedade contemporânea merece todas as críticas por alimentar-se dessa competição nervosa para chegar a lugar nenhum, por essa gincana de quinquilharias, sustentada pela máquina de moer sonhos a que chamamos de bom senso. A resistência adolescente a crescer tornou-se uma das formas de questioná-la. Winnicott dizia que os adolescentes são passageiros, mas numa sociedade a imaturidade não o é: sempre haverá novos candidatos a carregá-la por um tempo de suas vidas. Ele lembrava ainda que é nessa saudável imaturidade que se inspiram as revoluções, as utopias. Gostaríamos de morar nelas, mas infelizmente, para não crescer é preciso morrer.

Os jovens se arriscam, tentam ignorar a morte, mas vivem a toreá-la – Eu morri uma centena de vezes, cantava Amy. Já a maturidade sabe que tem um prazo e odeia isso. Enquanto fantasia com as noites de glórias e excessos dos adolescentes, acorda para tomar seu iogurte com cereais e ir ao trabalho. Em sonhos somos onipotentes, na prática sabemos que basta viver para morrer um pouco a cada dia.

Bisavó precoce

sobre assumir os cabelos grisalhos

De olho no retrovisor, o motorista de táxi observou: a senhora tem netos, né? Eu ainda nem tinha os complicados 50 que recém me atingiram, mas fiquei mordida igual: – bisnetos, respondi. Ao longo da última década, desde que deixei de ocultar os cabelos brancos, tenho enfrentado vários desses episódios, até mesmo oferta de senha especial no banco. Não é fácil, mesmo que ache que não pareço uma idosa, não há argumento que torne leve o inevitável resultado do rápido duelo de olhares: nele o outro sempre associa o cabelo grisalho à velhice.

Tive duas avós, uma ficou totalmente branca aos quarenta e outra morreu aos oitenta com uma natural cabeleira castanha, adivinhe qual herança me tocou? Meus cabelos desistiram da sua natural cor de rato aos trinta. Exausta da luta, depois de ter passado por toda a gama de ofertas dos institutos de beleza e das farmácias, descobri que as mechas grisalhas misturadas ao cabelo marrom restante eram o tom mais bonito que eu já tivera na vida. Naquela época, encontrar um cabeleireiro que topasse a parada era quase impossível, mas adoro ser contra a corrente e o desafio me instigava. Não se engane: o cabelo grisalho não libera a visita rotineira ao salão, mesmo porque ele é rebelde, está sempre arrepiado e carece de atenção para parecer sedoso. Parei foi de fingir. Sei que é bobagem, mas tenho certa dificuldade com próteses, máscaras, lembro que até as ombreiras quando estavam na moda me constrangiam, parece roubar no jogo, doping. A maquiagem não me envergonha, pois ela é explícita, não esconde sua presença.

Não é preciso alongar-se muito sobre o que estamos cansados de saber: a velhice é um espantalho contemporâneo e ninguém quer enxergar tais traços em si mesmo. Mais do que uma questão de estética, é do pânico da finitude que se trata. Um idoso é alguém que tem mais vida para trás do que pela frente, mas somos gulosos, da nossa existência queremos um crédito infinito, o consolo de que se pode recomeçar a cada instante, que nada acabe. Ignoramos que a trajetória de uma vida se faz de sucessivas mortes do que já fomos. Mesmo a velhice obriga à constante reinvenção, pois as inevitáveis limitações precisam ser contornadas com a descoberta de novos prazeres, o da tranqüilidade, por exemplo.

Confundimos potencial com potência, ter muita vida pela frente significa mais tempo para tornar-nos mais próximos da perfeição. Mas jamais voltaria, pois amadurecer dá muito trabalho e nem pensar em reencontrar com todas as incertezas e os medos do passado. Cada fio grisalho que nasce é troféu de uma batalha vencida e há uma humildade que só o tempo ensina, na marra. Por isso, senhor taxista, ainda não tenho bisnetos, mas nem por isso devo mascarar o quanto já vivi. Já foi difícil chegar até aqui e não vou recuar.

Ufanismo Hétero

sobre orgulhar-se de ser homo ou héterossexual

Nunca tinha me ocorrido que deveria ficar orgulhosa de ser heterossexual. Seria motivo de orgulho se fizesse algo que exigisse empenho, superação, conquista, ou mesmo por ser ou fazer algo que enfrentasse forte desvalorização, a modo de confronto.   Sem dúvida os gays têm do que se orgulhar, porque a saída do armário pressupõe uma coragem de soldado espartano. Experimente dar a cara para bater cotidianamente, suportar os maus tratos e a maledicência, quando não a condescendência! Sem dúvida é uma valentia que pareceria desnecessária aos heterossexuais.

Quando se é adolescente, apesar do corpo estar em seu momento mais viçoso, quase todos se sentem estranhos, fora de prumo, deformados, indesejáveis. Imagine, então, quando nesse momento de descobrir a própria sexualidade você deseja algo considerado “errado”. Sem uma imensa força de vontade não se inicia essa caminhada de encontro aos amores que fazem devanear, que dão tontura e arrepios, os quais, querendo ou não, para muitos envolvem pessoas do mesmo sexo.

Por isso, é extraordinário que gays existam e tenham encontrado o empenho necessário para amar-se e legitimar isso socialmente. Sua aceitação é fruto de militância, proselitismo e ousadia. Declarar o orgulho de algo tão condenado é a afirmação necessária para enfrentar o efeito negativo da condenação. Mas tanta hostilidade seria incompreensível se não percebêssemos que tornar-se heterossexual é uma condição tão frágil. Cada dia mais, visto que as identidades sexuais se viram esvaziadas de seus clichês, o homem poderoso e sua mulher submissa.

O projeto do parlamentar evangélico Carlos Apolinário (DEM), propondo o “dia do orgulho heterossexual” para as vésperas do Natal é prova da incerteza de que esse desejo seja um caminho direto e natural. Admitir que é preciso orgulhar-se disso, parte do pressuposto de que para amar alguém de outro sexo também é preciso vencer muitas barreiras. Para chegar a ser heterossexual será necessário manter no armário o caráter erótico de vários vínculos com pessoas do mesmo sexo: as amizades, que são amores que não vão para a cama, os desejos inadmissíveis entre a menina e sua mãe e menino e seu pai. Há muito mais confusão e incerteza no caminho que levará alguém a ser hétero do que a bancada evangélica poderia jamais admitir. Quem sabe, de forma inconsciente, eles estejam pressupondo que em termos de amor e sexo não há caminho natural? Sofre-se para chegar a qualquer definição, por isso seria preciso orgulhar-se de todos os resultados. Desconfio, porém, que não seja bem isso que o Sr. Apolinário tinha em mente.

Tempo sem glamour

sobre “Meia noite em Paris” e nostalgia

O tempo presente é o primo pobre da nossa imaginação. Com os olhos voltados para o futuro esperamos dele curas, invenções, prazeres, liberdades e outras maravilhas. Viver muito, testemunhar e aproveitar ao máximo o que virá, é o nosso lema. Os jovens encarnam o espírito de nosso tempo como ninguém, a vida adulta está associada à mediocridade e a velhice nos apavora. Mas há um tipo de passado que ainda reverenciamos: é a crença de que os grandes homens pereceram outrora, quando revoluções, guerras e diásporas desacomodavam a humanidade. Idealizamos os tempos de vida dura dos nossos antepassados. Frente a eles colocamo-nos como descendentes indignos, fracos, sem protagonismo, amolecidos pelas comodidades e pela paz. Resta-nos o sentimento de não ser autênticos, de nada ter de genuíno ou empolgante para relatar.

Septuagenário, Woody Allen está acertando as contas com alguns dos seus antepassados artísticos, hoje ícones culturais. Seu ultimo filme, “Meia noite em Paris”, é similar à “Rosa Púrpura do Cairo”, no sentido de uma passagem mágica a uma fantasia do protagonista. Gil, o alter ego de Allen da vez, é um americano, escritor de roteiros comerciais, fascinado pela cidade luz. Está em visita à capital francesa com uma noiva fútil, mas afasta-se dela em busca de inspiração artística e acaba encontrando-a em surpreendentes visitas a um passado fantástico. Noite após noite, ele embarca numa viagem mágica aos anos 20, quando uma legião de artistas estrangeiros, como Hemingway, Picasso, Cole Porter, Buñuel, Dali, Gertrude Stein, Zelda e Scott Fitzgerald, entre outros, exilaram-se em Paris para beber, amar e criar. Para Gil o presente é um tempo errado, no qual nada acontece, nem se produz algo memorável.

Convivendo e discutindo com esses autores-personagens, no momento em que suas obras nasciam, descobre que o gênio não se sabe tal enquanto cria. Até para eles o presente era trivial, enredado em amores, ambições e conflitos e só o tempo dirá o que se tornará perene. Nas viagens mágicas, Gil reconhece que no presente deles, seus heróis tampouco sabiam que sua obra e época valiam a pena, por isso sai delas capaz de legitimar seus sonhos. O filme revela nossa necessidade de buscar patriarcas, antepassados a quem possamos atribuir a filiação dos nossos empreendimentos. Para isso servem histórias de um passado idealizado, as Eras de Ouro. Fantasias são portais onde entramos para encontrar nossos desejos e segredos. Com ou sem elas, Woody Allen, acha que com certa sabedoria é possível aceitar a própria realidade e ainda achar graça disso.

Versões do abismo

Sobre o livro de Eliane Brum, “Uma:duas”, relação mãe-filha e jornalismo e ficção.


Alguma coisa acontece quando um jornalista se aventura na ficção. Narrativa assumidamente inventada, a literatura é livre, solta da verdade, conscientemente narcisista, ignorante da realidade. Já o repórter voa como um balão de gás preso a um cordão, não pode nem deve desconectar-se, pois dele esperamos um mundo menos incompreensível. Ser bom numa profissão é arcar com as utopias que ela carrega: a do jornalista é de que a informação seja confiável, de que podemos fazer a soma das versões e ter como resultado a verdade. São os jornalistas nossos olhos, ouvidos e pernas extra, graças a eles podemos transcender e compreender o que de relevante se passa além das nossas estreitas fronteiras.

Ao contrário do óbvio de seu ofício, que é fazer de seu trabalho telescópio, satélite, olhar maior, Eliane Brum sempre trabalhou com o microscópio. Pois não é somente o que está longe que nos escapa. Assim em suas reportagens, livros e documentários revelou gente que está conosco, mas não é visível a olho nu, experiências de vida, miséria, morte e superação às que nunca prestaríamos atenção. A peculiaridade desse trabalho sensível um dia ainda ia acabar em ficção, e assim foi.

Dar voz pública às mulheres trouxe como consequência a oportunidade de divulgar seus pesadelos típicos, entre eles o maior: o de afogar-se nas águas abissais da relação mãe-filha, uma luta corpo a corpo, onde uma fenece para que outra desabroche. É sobre isso o primeiro livro de ficção de Eliane: “Uma:duas”, publicado pela Leya. Sua personagem Laura é uma filha que procurava tirar a mãe do seu corpo, sabendo que sem isso, nada sobraria. Como sair das entranhas, sem poder partir completamente?

Mulheres precisam ocupar um corpo que a cada dia se torna mais semelhante ao da própria mãe. Minhas filhas tinham pavor da “Maria Degolada”, o fantasma de uma mulher assassinada, lenda da tradição de Porto Alegre. Dizem que se nos trancarmos no banheiro e gritarmos três vezes seu nome ela aparecerá no espelho. Elas tinham razão, para nós mulheres os espelhos sempre guardam uma assombração, é a cara da nossa mãe, é a nossa cara da mãe.

Mesmo navegando na fantasia, Eliane, a jornalista, não podia deixar de ouvir os dois lados. o pesadelo simbiótico tem duas versões, mãe e filha escrevem o que sentem sem ler uma à outra, cabe a nós a acareação da verdade inexistente. Elas se odeiam e amam com paixão e nos conduzem por sua dolorosa separação. É uma reportagem nos abismos. Eliane invadiu os divãs, os pesadelos das mulheres e de lá, mais uma vez, trouxe notícias quentinhas.

08/06/11 |
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