O fio da memória
uma história de amnésia e de um conto que tinha a chave da memória
Graças a sua coleção de fantoches, Policho era uma lenda na minha infância. Nas estantes de sua casa, dezenas de figuras caricaturais e mágicas ficavam longe do meu alcance, só os olhos podiam tocá-las. Não eram brinquedos, eram atores, apenas estavam repousando. Seu dono era um “bonequeiro”, fazia teatro de fantoches: em suas mãos eles falavam, dançavam, brigavam muito e arrancavam gritos e risadas da platéia. Fantoches são exagerados.
Atrás do artista havia um homem politizado, ativista em tempos pouco propícios para isso no Uruguai, onde vivíamos. Por isso foi preso e barbaramente torturado. Entre seus crimes estava o fato de ser filho de um importante educador cubano e pai de dois jovens considerados perigosos, como se tornaram os jovens naquele então. Na cela após a jornada de suplícios, ocorreu-lhe uma avassaladora amnésia. Na determinação de calar, já não lembrava quem era: saber-se era perigoso. Fruto do esforço de evocar, veio-lhe à mente o pedacinho de uma história que ele passou a contar a si mesmo. Infelizmente não sei qual era, se conto, lenda ou romance, e não há como lhe perguntar, ele já partiu. Dia após dia, a trama crescia. Scherazade de si mesmo, foi atiçando a própria curiosidade e sobrevivendo à miséria da desesperança. Quando a narrativa se completou em sua cabeça foi como se tivesse atravessado um portal. Ela era a chave: toda sua memória voltou, com ela a identidade e a força para suportar a dor.
A evocação que o livrou da amnésia, podia ter sido de uma lembrança de infância, da família, uma música, o número da carteira de identidade ou endereço, elementos da realidade pessoal que ele procurava resgatar. Mas o que voltou foi uma história. É o mesmo caminho traçado por Umberto Eco em seu livro “A Misteriosa chama da Rainha Loana”, no qual um homem recupera a memória perdida visitando o porão da casa que fora do avô, onde ficara sua antiga coleção de gibis. Reencontrar-se com histórias de que gostava foi o método para encontrar a própria identidade porque nelas ficam guardados sonhos e desejos.
São nossas divagações fantasiosas, enfeixadas em histórias que lemos, assistimos ou nos contaram, que melhor nos traduzem e representam: ali está o tesouro da hipotética verdade de cada um. Talvez, se algum dia precisar, eu possa recorrer às histórias que aqueles bonecos quietos na estante me cochicharam, encenadas no palco da imaginação infantil. Eles eram só fantoches, mas tinham um amo que certamente sabia que uma boa história é a chave de tudo o que somos.
Filhos da máquina de sonhos
Sobre o filme “A invenção de Hugo Cabret” e a herança enquanto um enigma.
Por que na ficção os mestres se expressam por enigmas? Quando Harry Potter está com a vida a prêmio, o prof. Dumbledore em vez de dizer o que ele tem que fazer, lança uma charada que deve ser decifrada em meio às correrias. Mas por que não ajudar os meninos, não vê o velho mestre que a situação está preta?
Só que o enigma é o encanto da aventura! Decifrar a frase misteriosa faz com que eles cresçam com a missão. Tornados detetives acabam entendendo no que estão metidos e seu papel na trama. Do contrário, seriam como soldados no front, a quem cabem estreitos heroísmos. Hoje não admiramos a alienação, a obediência; o engajamento deve ser ativo, original, inteligente.
Cada um de nós é, de certa forma, portador de um enigma. Afinal, não teríamos vindo ao mundo à toa. Carecemos imaginar uma sofisticada engrenagem da qual supomos ser peça imprescindível. Esse é o raciocínio do menino Hugo, protagonista do filme “A invenção de Hugo Cabret” de Scorsese. Somos parte de um mecanismo, pensa ele, cada um tem utilidade peculiar. Cabe-nos desvendar o mistério de seu funcionamento, consertar seus estragos.
Ele é aprendiz de relojoeiro, trabalhava com o pai nesse ofício até a morte trágica deste. Ambos dedicavam-se ao conserto de uma espécie de boneco robot, que havia sido encontrado abandonado. Hugo, que já havia perdido a mãe, torna-se órfão e é levado por um tio imprestável a habitar os corredores internos, as entranhas, da estação de trem, onde fazia a manutenção dos relógios. Abandonado ali, vivia clandestino, tendo por companhia apenas o boneco estragado. Se descoberto, seria colocado num orfanato, mas preservava sua liberdade para viver consagrado à tarefa de completar a obra do pai. Estava convicto de que esse boneco, ao funcionar, revelaria alguma mensagem paterna, dando um sentido à perda e à sua vida. Enquanto esgueira-se e realiza pequenos roubos, principalmente das peças necessárias para refazer o robô, seu destino se cruza com o de um velho senhor que se torna parte da charada.
A descoberta final de Hugo é surpreendente: mais que fatos, verdades, há sonhos que são sempre enigmáticos. A herança que recebemos é composta das fantasias dos que nos precederam. Crescer é terminar e recriar o boneco que os pais sonharam. Apesar do valor que nossos ancestrais possam ter provado, seu maior legado foram seus devaneios. Por isso o filme é uma homenagem aos fundadores do cinema, aos artistas, trabalhadores da fantasia. Somos, afinal, uma engrenagem da incansável máquina de sonhos dos homens. Espero que imprescindível.
Vizinhos, melhor tê-los.
sobre os vínculos afetivos com os vizinhos.
Não faz muito, caminhão de mudança me dava arrepio. Apesar de que havia feito uma boa troca: um apartamento por uma casa bonita onde minhas filhas cresceram brincando com os vizinhos à moda antiga. Mas ainda me ressentia do caos da chegada, da longa jornada de improviso. Num lugar maior, os poucos e esmirrados móveis pediram para ficar juntos por medo da solidão e não havia dinheiro para povoar aquele latifúndio. As meninas nem ligavam, mais espaço para correr. Por sorte o resto dos habitantes do condomínio semi ocupado também usavam lençóis no lugar das cortinas. Quando todos nos assentamos, com estofados e móveis sob medida, perdeu a um pouco a graça.
Quintana já dizia que amar é mudar a alma de casa e, parodiando-o, posso dizer que mudar é amar em outras casas. Não me refiro à família, que muda junto, mas aos vizinhos. Podem ser de porta, de condomínio, de rua, de bairro. São pessoas que encontramos nas horas de desalinho, nos momentos descontraídos, ou nos quais parecemos por vezes atropelados: quando acordamos, ou voltamos destruídos do trabalho, ou ainda nos ocorreu algo triste. É infalível, o vizinho sempre está lá, no elevador, na porta, ele pode trocar um comentário ou não, mas nos testemunha.
Escrevo sobre vizinhos porque perdi minha primeira vizinha. O nome não lembro, nós a chamávamos de Chichi (no Uruguay, se pronuncia “Tchitchi”). Guardava dela uma lembrança infantil doce: ela dando-me um banho na sua casa. Nunca entendi por que essa imagem me era tão grata. Pois agora, quando soube da sua morte, à minha mãe ocorreu contar-me um episódio que conscientemente eu não lembrava. Foi essa vizinha que me deu o primeiro banho, ajudando minha jovem mãe atônita. Também lá estava ela em vários outros momentos importantes da minha primeira infância. Ambas nos mudamos, ela de casa e eu de país, mas sua proximidade me marcou. Simplesmente porque estava ali ao lado e soube entender que era necessária. O coração fica um pouco em cada casa, adeus Chichi!
A construção da personalidade não se faz somente da família e escola: crianças sempre observam atentamente como vivem e se comportam as pessoas em volta. Nesse ponto, como elas, absorvemos o contexto, não importa quão impessoais as cidades tenham se tornado. Hoje, outra vez num apartamento, tenho bons vizinhos e uma ótima vizinha de porta. Nos encontramos nas horas amassadas para falar das filhas crescidas e dos cachorros velhos. Sei que à vezes dá azar, mas da loteria da vizinhança realmente não posso me queixar. Perdi o medo de me mudar, graças aos vizinhos
“Só” uma intérprete
Nos 30 anos da morte de Elis, a lembrança de que nada se cria, tudo se interpreta.
Depois que tomava uma música para si, Elis Regina lhe emprestava a alma. Olhava o público nos olhos, parecia que um a um. Era lúdica, gorjeava travessa, abria um sorriso solar, o corpo inteiro se engajava na voz, os braços abertos em hélice. As canções ficavam marcadas a fogo com seu selo, tornavam-se dela, abafava outras versões. Jamais escreveu letra ou melodia, sua autoria era conferida pelas interpretações. Amanhã farão trinta anos de sua ausência.
Um bom ator é um intérprete de seu personagem, mas a qualidade da cena dependerá da entrega, de que o porta voz esqueça sua própria identidade e vista o papel. Minha carreira teatral sucumbiu brevemente quando, tomada de suores e tremores, não conseguia esquecer minha pobre pessoa, cujo fracasso no palco se impunha sobre as falas da peça. Tão preocupada com meu vexame só conseguia interpretar a mim mesma. Um verdadeiro intérprete entrega-se à Pomba Gira, deixa-se possuir, e assim, num contragolpe, termina apropriando-se do espírito que o toma. Se for genial não conseguiremos diferenciar a criatura do criador, o demônio da vítima que o conjurou. Assim era Elis, de quem se dizia que era “só” intérprete.
Os psicanalistas se aproximam desse espírito: ao interpretar sonhos, por exemplo, o fazemos num estado de entrega, como o dos artistas. A verdade oculta sob o enredo maluco de um relato onírico pode ser lida sob o texto daquele que o narra. O paciente lembra o que sonhou, mas em sessão faz um relato peculiar onde, sem saber, opina sobre a aventura onírica. Seu analista exercita uma escuta sem preconceitos, sem deixar-se influenciar por suas teorias. É preciso surpreender-se por uma formulação curiosa de palavras, um desencaixe no relato, um estribilho: eis a dita atenção flutuante. Assim descobre a nota dissonante do relato e a destaca do contexto, essa será a chave do enigma ou pelo menos de uma porta para entrar nele. Também o analista se relaxa e se perde de si, pois sem entrega não ocorre essa peculiar forma de escuta. Interpretações, como se vê, são sempre uma inusitada autoria, onde alguém se apropria do texto do outro para produzir a novidade.
Somos versões dos nossos antepassados, adaptadas ao nosso tempo. Seus traços nos assaltam e com eles compomos uma identidade. A originalidade possível não passa da apropriação peculiar dessa origem, que é de certa forma uma interpretação. Uma intérprete, como Elis, é autora de versões. Versões também são obras de arte, ou, como diria Borges: obras de arte são sempre “só” versões.
A última viagem do Professor
sobre Monsieur Roche e a arte de ensinar uma língua estrangeira
Banido de sua Hungria natal pelo nazismo, meu pai não cessou de viajar até a aposentadoria. Nunca se aquietou de fato, enquanto o corpo permitiu seu armário era uma mala. Quando ficou velho e teve que parar fiquei preocupada: podia ficar horas lendo, mas eu sabia que para mantê-lo bem ele teria que seguir viajando. Então o apresentei aos cursos do Professor Alexandre Roche. Ele ensinava francês no instituto que leva seu nome, mas fazia isso contando histórias, levando seus alunos para jornadas históricas e literárias. Nascido em Alexandria, de pais franceses, estudou história na França. No Brasil, ensinava a língua de Voltaire com muito mais do que verbos e pronomes. Por vários anos, ele conduziu meu pai em suas últimas viagens, que não foram menos divertidas do que as que fazia de avião.
Recebi a triste notícia de que Monsieur Roche, como o chamávamos, também partiu. Gostaria de acreditar que eles se encontraram em algum lugar e estão botando a conversa em dia. Estes dois velhos se foram deixando-nos uma lição inesquecível: um professor e um aluno nunca se aposentam, ensinar e aprender pode ser um prazer que dure a vida inteira.
Uma língua é mais que um acervo de palavras, um decantado das culturas nela se expressa, carrega sentimentos, convicções, conta histórias. Idiomas são musicais, falar a língua em que se nasceu e cresceu é reproduzir a entonação e o ritmo do discurso amoroso que nos fez ser o que somos. A língua materna é a do acalanto, dos sonhos, é a que usamos para praguejar secretamente e contar quando estamos distraídos.
Aprender uma outra língua sempre será uma traição à original. Traindo a língua mãe produzimos diferentes versões de nós mesmos, experimentamos liberdades, mas também vivemos um exílio, a alma sente-se em viagem. Quando aprendemos um idioma depois de adultos conservaremos restos de sotaque que são nosso certificado de origem. Meu pai falava sete línguas com sotaque húngaro, língua em que encontrava poucos parceiros com quem conversar após os 17 anos.
Várias vezes estrangeiro, Roche sabia disso e não escondia seus erres arrastados em português. Mas para ensinar francês, fazia o possível para que seus alunos se sentissem em casa. Como um ancestral emprestado, oferecia as histórias de uma tradição aos que nunca serão nativos nela. Falava da França, do Egito, de literatura, política. Seu ensino era acima de tudo uma experiência de hospitalidade. Monsieur Roche, desta vez partiu numa viagem sem malas. Obstinado como um gaulês, deve estar ensinando francês para os anjos.
Meus heróis não morreram de overdose
Sobre a foto recentemente divulgada da Presidente Dilma sendo interrogada aos 22 anos e o medo nos tempos da repressão.
A foto não me sai da cabeça. Tirada em 1970 e só recentemente divulgada, mostra a presidente Dilma Roussef. Ela estava com 22 anos, sendo interrogada por militares que escondem a face com as mãos. O olhar desafiador da jovem militante, que vinha de uma jornada de tortura, contrasta com os rostos ocultos dos inquisidores.
Em 70 eu tinha apenas 10 anos, mas a próxima década me jogou numa militância que tinha conexão com aquela imagem. Nossa principal reivindicação era a abertura política e a libertação dos presos políticos: sentíamos um compromisso com os mais velhos que, mesmo apanhando, conquistaram o pouco ar rarefeito que se respirava. Admirava sua coragem, pois lembro bem do medo que sentia.
O clima ainda era de caça às bruxas, de paranóia: agentes infiltrados nas aulas e reuniões, pancadaria nas passeatas, a maior parte dos bons professores expulsos. Na vida cotidiana da maior parte das pessoas dos anos de chumbo imperava a alienação orgulhosa de si, a mediocridade convicta, o discurso retrógrado. Os rebeldes eram exceção.
As famílias classe média tomavam seu Campari e sentiam-se prósperas. Os governantes militares davam arrepios, mas pareciam ter chegado para ficar. Sentia que nadava contra corrente, não conseguia me acomodar. Embora barulhentos, éramos poucos os chatos que discursávamos proselitismos de revolução. O despotismo se firma esbravejando certezas nas quais muitos se acomodam, aniquilando discordâncias. Uma espécie de bullying em escala gigante.
Os efeitos desse mundo de adultos, pais, governantes e mestres, vivendo alegremente graças à ditadura se fizeram sentir em várias gerações de adolescentes, hoje adultos. Sofremos as seqüelas culturais e psíquicas da tentativa de extermínio, ou do exílio de uma boa safra de pensadores, artistas, militantes. Muitos morreram, outros nunca voltaram ou desistiram. O psicanalista Winnicott dizia que o questionamento dos jovens, sua irresponsabilidade criativa, capaz de pensar soluções novas para velhos problemas, era um tesouro para qualquer sociedade. Mas o despotismo nutre-se de salgar essa terra, cortar o broto da transformação. As ditaduras são estruturadas sobre a morte dos opositores e das utopias, com elas morre a juventude.
Eu devia ter visto antes aqueles rostos ocultos, vexados. É o detalhe da foto que mais me impacta: pelo jeito, a soberba dos repressores não era tão senhora de si. Se soubesse disso, poderia ter encontrado mais coragem.
Viajando nas figurinhas
Em defesa da literatura em quadrinhos, porque imagens não valem por palavras, elas as geram, são indissociáveis como letra e música.
Na infância, além viagra quadrinhos, adorava livros ilustrados. Meus preferidos eram os que passei a ler quando maior, com uma ilustração a cada muitas páginas, que sequer eram bonitos, mais fiéis que criativos. Costumava voltar à gravura de tanto em tanto, na medida em que o texto ia acrescentando um detalhe. Por vezes, voltava só para sonhar sobre o conteúdo da obra, como se o portal para entrar na minha própria fantasia estivesse na imagem. A palavra impressa impunha seu ritmo, conduzia a imaginação, o que é bom. É melhor entrar num labirinto desses com a certeza de ter um guia e uma saída, um fim. Até hoje sou leitora lenta, mais divago do que leio. Pena, meus livros raramente são ilustrados. Saudosa, lembro das figuras como o melhor lugar para onde ir quando queria fantasiar sobre a fantasia e recorro à capa do livro, que detesto quando não contém figuras.
Adulta descobri um tesouro: as “graphic novels”, traduzidas por “romances gráficos”. São histórias longas contadas através de quadrinhos. Os exemplos mais populares são os maravilhosos “Persepolis” (Marjane Satrapi) e “Maus” (Art Spiegelman). Ao contrário da leitura breve e desatenta que por preconceito que costuma ser atribuída ao quadrinho, elas são detalhadas na construção da linguagem visual, sempre peculiar. Entrar numa delas é como desvendar uma novidade literária a cada vez, um novo estilo narrativo. Cada autor tem um traço, um modo de inserir as falas, personagens e ambientes se devotam à máxima eloqüência. Ali, página após página, reencontro os portais em que costumava me perder. O que na literatura era uma relação clandestina, aqui torna-se estável, reconhecida, é o centro das atenções. As imagens não valem por palavras. Elas não dizem, nos fazem dizer. Não discursam, põem nossa cabeça a falar. Nas novelas gráficas a literatura se aproxima do sonho.
Tudo isso para recomendar uma delas: “Asterios Polyp” (de David Mazzucchelli, Ed. Quadrinhos na Cia.). A história de um famoso arquiteto em crise, que após um incêndio que destrói seu apartamento no dia do qüinquagésimo aniversário, resolve abandonar a vida que tinha. Com o dinheiro do bolso compra uma passagem até onde esse valor possa levá-lo e lá experimenta fazer tudo diferente. É uma fantasia que já tivemos: sair para comprar uma Pepsi e nunca voltar. Fim de ano é época de promessas de mudança e de sonhar com viradas radicais. Asterios pode ser um bom cicerone nessa fantasia. Perca-se nessas imagens.
Camaleões
Sobre o “A pele que habito”, de Almodovar. O amante, o cirurgião e quão longe podemos ir ao nos transformarmos pelo olhar daqueles que nos amam.
Minha tia ligou. É uma mulher sensível, gosta de cinema e sabe o que sente. Ela me pedia algo muito simples: posso matar o Almodovar? Ponderei que não valia a pena, afinal, ele nos deu tanto. Ela estava inconformada, saíra do filme “A pele que habito” muito inquieta. Não é que o filme seja ruim, dizia, é que “ele não tinha direito de fazer aquilo conosco”. Aplaquei sua ira com um argumento baixo, nem sei se verdadeiro: graças a ele temos Antonio Banderas. Ela amoleceu.
O filme de Almodovar trabalha na vertente persuasiva do horror, parte de premissas absurdas, inaceitáveis e as faz parecer viáveis. É a magia do cinema, mas a literatura consegue o mesmo com menos orçamento, pois o combustível do encantamento é nossa empatia, fonte dos melhores efeitos especiais. Nesta obra, um cirugião plástico transforma alguém em uma criatura construída à imagem de suas obsessões. Ele aprisiona e intervém nesse ser tornando-o outra coisa, seu belo monstro. É possível que alguém torne-se algo tão diferente do que seria normalmente só porque outro quis assim? É muito mais comum do que parece.
Os pais, amigos e parentes assistem a isso rotineiramente. Eis que alguém com quem sempre convivemos se apaixona e fica irreconhecível. Por força desse amor, vai se modificando de tal forma que sua identidade mais se parece com a fantasia que compartilha com seu atual parceiro. Se for um amor construtivo isso ocorre suavemente, nos parece natural e não produz grandes resistências.
Mas o chocante nisso é nossa suscetibilidade, a maleabilidade da imagem e da identidade, como se não tivéssemos uma essência. Entregues, em breve não conseguiremos mais diferenciar o que éramos daquilo que nos tornamos por amor. Encarnamos as fantasias daqueles que amamos com assustadora facilidade. Tão plásticos e influenciáveis, quem somos afinal?
Minha tia tem razão, Almodovar não precisava ter sido tão duro, isso dói. A pele que habitamos é um órgão sensível, uma superfície modificável pelo amor. Vai tomando a forma dos seus olhos. É assim que ocorre com todos os filhos, que se constituem inspirados pelo afeto e desejos de seus pais, por isso os filhos adotivos se assemelham aos pais não biológicos. Esse fenômeno segue vida afora e a cirugia plástica, com seus poderes de transformação, algum dia acabaria herdando a sina desse feitiço e desse horror. O bisturi é o instrumento mágico que representa o fato e a fantasia de que nos transformamos pelo olhar dos outros. Se um artista é aquele que melhor desvela as fantasias, só podemos por isso agradecer ao Almodovar. Além do Banderas.
Professores de leitura
Ler é uma aprendizagem, que requer mestres. A propósito da Feira do Livro de Porto Alegre.
Mara, professora aposentada de português, sente saudade de procurar textos para seus alunos. Adorava ler com a perspectiva de indicar trechos aos jovens, para os quais cada texto abria-se em descobertas. Recorda com particular carinho do trabalho com um poema de Cecília Meireles, “O anjo da noite”, sobre o guarda noturno, hoje figura extinta. Nas palavras finais dessa poesia, que narra as belezas da noite, aparece o outro lado, seu mistério assustador: “o guarda noturno está tomando conta da noite, a vagar pelas ruas, anjo sem asas, porém armado”. A escuridão, onde cada um se entrega à inconsciência, requer providências de segurança. No lugar da vigília, a presença vigilante de um anjo da guarda que nos proteja dos precipícios interiores, afastando os monstros que moram nas trevas íntimas. Imagino o prazer da professora ao fazer reverberar essas metáforas nos alunos, para quem a literatura era ainda uma experiência quase virgem.
Num livro, chamado “Borges oral & sete noites”, encontram-se reflexões onde o escritor argentino aborda o encontro do texto com a voz. Depois de ficar cego foi obrigado a passar à narrativa oral, porém, suas conferências e referências nunca abandonam o livro como hábitat, lugar de onde emana uma presença. Era leitor apegado, voltava inúmeras vezes aos seus clássicos prediletos como quem vai a uma praça ou uma praia em busca de um estado de espírito. Mesmo sem visão comprou uma enciclopédia: “lá estavam os vinte e tantos volumes impressos numa letra gótica que não tenho condições de ler, com os mapas que não tenho condições de ver; o fato era que os livros estavam lá. Eu sentia uma espécie de gravitação amistosa que vinha deles. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, homens, temos”. Ele precisou dos olhos de outros leitores, mas aos que lhe emprestavam a voz ele acabava contando histórias sobre o que estavam lendo, guiava-os pelos labirintos imaginários de sua Biblioteca de Babel, pelas páginas do Livro de Areia. Diziam que suas aulas de literatura eram de fato de leitura.
Os livros são lugares mágicos aos quais nos entregamos sem medo, porque a voz do autor nos conduz com segurança pela trama que ele fantasiou e organizou para nós. Se tivermos sorte, como os alunos de Borges e da professora Mara, contamos com a voz de outros leitores mais experientes, que nos acompanham ou orientam, pais e mestres que partilharam suas leituras. O livro é um sonho ou um pesadelo seguro, como uma noite vigiada por um anjo. Armado, é claro, pois não somos bobos.
Escutar os enlutados
sobre o tabu da morte e as consequentes dificuldades de escutar os enlutados
Eram um casal inseparável. Ambos obstetras, trouxeram centenas de bebês ao mundo. Dizem que os partos estão deixando de ser nascimentos, transformados em cirurgias eletivas, com eles não era assim. Criaram dois filhos, tiveram netos, estavam aproveitando o início de uma nova época, com menos trabalho, curtindo a sensação de dever cumprido. Subitamente ele partiu, sequer teve tempo de perceber a morte. Tranquilo, em casa, em meio a uma frase, foi traído pelo coração. Levou consigo os belos planos de (mais) vida a dois.
Nesse ano minha consulta anual atrasou-se. Não sabia o que dizer a ela, já mais amiga que médica. Nossos papos roubados costumeiramente abarrotavam sua sala de espera. Encontrei-a forte. No consultório que era de ambos, costumava se escutar a voz dele, alta e musical, agora o silêncio se fazia ouvir. Naquele dia fui disposta a inverter as coisas: a consulta era minha, mas queria que os assuntos fossem dela. Sabia que seria difícil escutar o que ela tinha para contar. Também constituo um casal no qual partilhamos o trabalho e o companheirismo dos tempos livres, por isso sempre nos vi neles. É insuportável pensar que um dos dois pode instantaneamente desaparecer. Por isso a missão de escutá-la era difícil. Temia sufocar o encontro com uma verborragia solidária mas vazia.
Descobri que sua relação com a dor foi admirável: deixou-se chorar, enfrentou a solidão, a nova imparidade. Continuou, como de hábito, sendo parteira da vida, desta vez da própria, arrancada a fórceps das suas entranhas. Mas encontrei também o que temia: a infinita solidão dos enlutados. Quando falamos com eles raramente suportamos seus depoimentos. Impomos nossa versão: relatamos o último encontro, nossa reação ao saber da perda, a falta que o falecido nos faz. Sempre temos algo a dizer, não importando se fomos próximos, íntimos ou remotos admiradores. Aliás, quando se trata da dor do outro, raramente conseguimos escutar suas queixas sem interpor nossos depoimentos: “também passei por isso e, veja bem, comigo foi pior”…
Colocar-se na cena serve para partilhar o sofrimento, ajuda na elaboração do trauma. Mas a tagarelice ansiosa que irrompe na hora das condolências é útil mesmo para abafar as palavras do enlutado. Quando estamos fora da dor do viúvo, do órfão, dos que foram privados da presença de um pai, irmão ou, o pior de tudo, um filho, não queremos chegar tão perto. Seu sofrimento assusta. O enlutado nos apavora mais do que o morto no seu caixão. Apesar de ser nossa única certeza, a morte segue tabu e o sobrevivente seu emissário.