Portugueses com ginga
Impressões sobre uma viagem a Portugal
Existem várias maneiras de conhecer o Brasil. Nessas férias escolhi a mais enviesada: fiz as malas e fui para Portugal. Já suspeitava que somos mais portugueses do que gostamos de admitir. Confirmou-se. Talvez o brasileiro seja apenas um português com açúcar. Como eles, negociamos pouco, só fazemos o que queremos e do jeito que achamos certo, só que eles fecham a cara enquanto nós enrolamos.
Livros Adotivos
Sobre a aquisição de uma obra de Eisner
Raras coisas acontecem na educação deste país das quais possamos nos orgulhar. Porém, ocorreu algo interessante: a aquisição pelo governo, entre outros, de uma obra de Will Eisner, chamada Um contrato com Deus. Os exemplares estão sendo distribuídos às escolas, para acervo em suas bibliotecas ou uso pelos professores.
Eisner é responsável por consagrar a fusão dos quadrinhos com a literatura, empresta seu nome ao maior prêmio desse gênero no mundo. Quadrinhos são a prova de que a imagem não mata o texto, pode casar-se com ele. O livro em questão ilustra poeticamente trechos da vida de gente sofrida, assim como seu Pequenos Milagres, outra obra prima. Acredito que ele representa o que Charles Dickens foi para seu tempo. Continue lendo…
Biografias de espectros
Sobre uma conferência de Milton Hatoum, memória e narrativas
Dois Irmãos, de Milton Hatoum é uma experiência imperdível, se você não leu, comece agora. Se o livro já é de deixar uma leitora psicanalista entusiasmada, as colocações do autor em sua palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento completaram o encantamento. Para ele, a “literatura é a transcendência dos fatos”, escreve, como é inevitável, tendo o passado como uma fonte de riquezas, pois “os momentos seminais da vida de um escritor acontecem na infância e na juventude”, do quais, completa: “a distância é importante para inventar essas lembranças”. Hatoum afirma que começou a “re-trabalhar a memória enquanto literatura, quando os velhos da família estavam indo embora” , acrescentando, para meu deleite, que a escrita é “uma biografia de espectros, por isso a literatura e a psicanálise tem algo em comum”. Visto dessa forma, o passado deve ser visto mais como uma história que nos contamos, do que uma que vivemos, ele é sempre literatura, embora somente muito poucos saibam escrevê-la.
Zumbis
Sobre toxicomania
Vivendo um momento interessante de sua carreira, um amigo recebia os cumprimentos depois do fim duma atividade. Percebi seu olhar inquieto, abreviando as conversas, sendo sucintamente gentil. Tinha pressa. Queria comemorar de outro jeito: fumando. Compreendo perfeitamente, fui fumante por duas décadas. Como esse hábito ridículo de sufocar-se pode substituir um maior, um momento de reconhecimento e glória? É o tabagismo, primo pobre da mesma família à qual pertencem o álcool e as drogas. Destinos diferentes, o cigarro significa uma morte lenta e gradual, o álcool um prazer que leva os fracos à destruição, enquanto as drogas são muito mais perigosas, por quê?
Amar é terapêutico
Sobre os aspectos delirantes do amor
Lars é doido de pedra, não do tipo que quebra a casa ou enche o ambiente com seus fantasmas, ele é pétreo e não gosta de ser alterado. A história dele é sobre loucura, mas na verdade interessa-nos porque é uma também trama de amor. O filme, chamado “A garota ideal” (Lars and the real girl, direção Craig Gillespie, EUA) é de 2007. Deve ter vindo de balsa para chegar só agora.
O homem visível
Sobre imagem
O homem visível está no cartaz, ele é bidimensional. Dias atrás, passando por uma vitrine de perfumes, vi o cartaz de um homem visível: lindo, másculo, jovem, enigmático. Perguntei às pessoas que estavam comigo de qual filme era aquele ator, ninguém lembrou. Quando estávamos nos afastando, uma voz forte respondeu: – “É do Homem Aranha”. Levamos um pequeno susto, não tínhamos notado mais ninguém. Foi então que vimos um segurança parado ao lado da vitrine. Ele ria para nós e de nós, notou que nos assustamos. Era o Homem Invisível, um herói anônimo, fortemente paramentado para nos proteger caso necessário. É pena, mas o Homem Aranha está tão ocupado com sua carreira artística que já não aparece para nos salvar, nem ao menos nos leva para voar no seu cipó aracnídeo. Continue lendo…
Uma cidade de leitores
Sobre a confraria Reinações
Porto Alegre, 12 de fevereiro, entardecer, sensação térmica 40 graus. Fui ao encontro achando que seria a única maluca interessada em debater “História sem Fim” numa livraria do Bom Fim (Letras & Cia). Não era o caso. O bando de doidos que se encontrou naquele dia chama-se Confraria Reinações e completaram dois anos disso: reunir-se mensalmente na livraria para trocar idéias sobre literatura infanto-juvenil. A cada encontro decide-se qual será o próximo livro a ser compartilhado. Lemos clássicos ou qualquer outro que se mostrar marcante para esse público. Entre os presentes há escritores, professores, editores, artistas, alguns têm seus livros publicados, mas todos estão lá na condição de leitores. A discussão pode atingir todos os níveis, há liberdade para dizer: “gostei”, ou “detestei”, “me irritou e parei de ler”, “pulei partes chatas”, e assim por diante. É isso que faz o encanto dessa reunião, a leveza que permitiu que se continuasse trabalhando até no nosso fevereiro.
Fogo Amigo
Amigo sobre uma automutilação de repercussão global
Uma jovem advogada pernambucana foi agredida por skinheads na Suíça e sofreu um aborto. Ficamos indignados como todos os cucarachos latino americanos sempre mal vistos no primeiro mundo. Porém, como todos já sabem, ficou provado que ela não podia perder a gestação gemelar, por não estar grávida. Pior, os cortes com a inscrição da sigla de um partido neonazista em seu ventre e pernas foram auto-infringidos. Ficamos confusos.
Bruxas
Sobre um crime feminino insuportável
Numa mesma penitenciária, Anna Carolina Jatobá, Suzane Richthofen e Valdecina Alves de Almeida pagam seus pecados. Todas são responsáveis por crimes que impactaram a opinião pública: o assassinato de uma enteada, dos pais e o selvagem espancamento de um bebê, respectivamente.
Cadáveres de plástico não morrem jamais
Sobre a exposição educativa que utiliza cadáveres polimerizado
Nós enterramos nossos mortos. A cremação, que é a minha opção, está ganhando adeptos todos os dias. Mas esses não são os únicos destinos possíveis dos cadáveres: os egípcios e os incas mumificavam seus entes queridos, houve povos que os expunham aos animais para serem comidos, e inclusive ainda existe o canibalismo ritual dos mortos. De qualquer forma, o cadáver sempre foi objeto de reverência, o que fazer com ele nunca foi banal nem dum descarte fácil.