Benjamin Button
Sobre as fases da vida
As fases da vida podem ser vistas como um círculo: no princípio, o desafio passa por aprender a não urinar e defecar nas calças; a missão seguinte, quando já se é um pouco maior, seria conseguir amigos; passada essa fase, o maior objetivo passa a ser fazer sexo; resolvido isso, a tarefa seguinte é conseguir dinheiro. Já na meia idade, a conquista, novamente, é fazer sexo; depois vem a fase de fazer amigos e o derradeiro desafio da vida de um homem consistiria em não fazer as necessidades nas calças.
Nós canhotos
Sobre essa condição como metáfora
Quem me conhece sabe que possuo duas mãos esquerdas. Apenas a minha melhor esquerda fica do lado direito, o que sempre me fez passar por destra.
Sorte no jogo
Sobre o sonho de ganhar na loteria
Sabe aquela piada do judeu que pede a Deus que o ajude a ganhar na loteria, pois passa fome, tem muitos filhos, pais doentes e outras desgraças. Ao que o Senhor lhe responde: – Mas Isaac, pelo menos compra um bilhete! Não é por economia que não compro bilhete de loteria: é por total descrença de que a providência tenha alguma boa surpresa guardada para mim. Quanto às ruins, tenho absoluta certeza que me espreitam, e se atirarão sobre mim como um felino de tocaia.
Memórias felinas
Sobre o Garfield que existe em todos nós
Meus gatos sempre abusaram de mim. Faziam gato e sapato, para ser redundante. Koshka, minha segunda cria felina, parecia dar discursos. Mesmo sem entender o gatês, eu sabia que ele estava reclamando do meu tempo de ausência, embora os dele pudessem durar dias. Ele era louco por briga e rabo de saia, suas temporadas mais caseiras coincidiam com olho purulento, orelha rasgada ou pata inchada. Entre minhas atribuições de escrava humana estavam, obviamente, os curativos. Minha primogênita, a Fera, era confinada num apartamento, o que só aumentava seu poder sobre mim, ela decidia em que posição eu iria dormir, sentar e comer, além de que sua farra noturna me exauria. Felinos passam o dia dormindo, assim ficam prontos para as noitadas. No caso da Fera isso incluía uma bolita de gude, que ela mantinha escondida e resgatava para fazer rolar pelo parquê e bater nos cantinhos nas altas horas da madrugada. Nunca consegui tirar a bolita dela, sumia providencialmente assim que eu me levantava, acho que ela guardava na boca…
Mickey Mouse octogenário
Sobre a arte de envelhecer, em 26/11/2008
Conheci um senhor velho com olhar de guri. Visto com zoom, seu rosto apresenta manchas, saliências, uma cara com sinais de uso, mas os olhos, ignorando o peso das pálpebras, fitam com picardia. Na maturidade, as cartilagens continuam crescendo, tornando-nos caricaturas de nós mesmos. Viramos duendes, bruxas, narigudos e orelhudos. Apesar disso, fui fisgada pela vivacidade daqueles olhos, tão diferentes daqueles, arregalados através de cirurgias plásticas, ou apagados pela vida bovina que lhes desenvolve catarata na alma.
Comendo livros
Sobre leitura e minicontos
Ainda guardo em mim alguns raciocínios infantis que me induzem a equívocos. Um deles é ler as coisas no seu sentido literal. É esse tipo de pensamento que pode levar uma criança a pensar que todas receitas contém chá e sopa entre seus ingredientes, já que colheres disso são sempre mencionadas, e que sapatos de salto são para saltar. Foi por isso que li enviesado uma manchete da capa da revista Claudia que dizia: “A dieta dos Best-sellers”.
Amores brutos
Sobre homens que matam suas amadas
“Quem ama não mata”. Essa era a frase das feministas, décadas atrás, protestando contra a matança de mulheres pelos seus homens. A afirmação é convincente, mas será que se trata de amor nesses casos?
Professora Simone
Homenagem a uma mestra
O nome dela era Simone, professora de Português. Ela não me tinha em grande conta, eu a achava poderosa. Entre nós houve apenas um momento marcante: certa ocasião, envergonhada de ser tão sonsa, fingi que havia colado. Fingi para mim mesma, já que o nervosismo da pretensão de transgredir me enevoava a visão e, de fato, não consegui enxergar nada na prova da colega. Se o feito não tinha sido grande coisa, pelo menos tentei fazer valer a intenção, contando vantagem entre meus colegas na saída da prova. Não é preciso dizer que a professora ouviu e tomou as medidas que lhe cabiam. Inicio e fim da minha incipiente carreira criminal. Conto isso para que não se julgue que se tratava de relação de mútuo afeto ou camaradagem, que recubra ou mascare o caráter simplesmente pedagógico do que se segue.
Estrangeira digital
Sobre os que nasceram antes do computador
Na minha infância a tevê tinha hora para começar e outra, triste e trágica, para terminar. Agora ela está sempre lá, disponível a qualquer hora em que a solidão ou a falta de sentido da vida bater. Graças a ela, os desesperados têm um balcão de bar sempre a mão para embriagar a alma exausta. Mais do que a televisão, agora existe a rede, a web, a internet, a teia, a trama que nos liga a todos e a tudo a qualquer hora.
Viver sem listas
Sobre o livro de Pierre Bayard e fixar objetivos para viver
Um homem da minha idade, 47 anos, Dave Freeman, autor do livro 100 Coisas a Fazer Antes de Morrer bateu a cabeça em casa e morreu. Não li seu livro, não lhe conheço a sabedoria, ou a ingenuidade, de acreditar que se pode ir embora com a sensação de estar quites com a vida. Meu pai morreu com 87 anos, correu o mundo, sobreviveu à guerra, e não achava que tinha feito o suficiente para abrir mão da vida. Morreu inconformado, sem saber a que endereço encaminhar a solicitação de prorrogação de seu prazo, ele que amava tanto resolver tudo com cartas.