Coringa. o vampiro de Denver
O Coringa é uma carta cuja identidade depende do jogo, os assassinos como o do cinema em Denver também são personagens miméticos. Que jogo revela a população civil americana fortemente armada?
Os filmes de super-heróis têm padecido da síndrome das origens: heróis e vilões tiveram seu passado investigado e com Batman não foi diferente. Corretamente, o cinema bate na tecla de que somos fruto da nossa história. O caso do atirador de Denver, que matou 12 pessoas durante a estréia do filme Batman, também nos leva a tentar compreender suas razões, a origem da sua deturpada personalidade.
Teóricos apressados, assim como a ficção, adoram encontrar traumas. De fato, existem traumas, mas não há uma forma unívoca de reagir a eles, tudo depende do que fizemos a partir do que a vida interpôs em nosso caminho. No caso de Holmes, o atirador da vez, não há traumas visíveis. Ele era reservado, mas não sofria bulliyng. Americano, branco, estudante de medicina e neurociência, bem apessoado até, eis um monstro que foge aos nossos clichês.
Na falta de conjecturas melhores, Batman, o super-herói do filme, foi levianamente acusado de estar na origem da motivação do evento, e o assassino reforçou essa tendência ao comparar-se ao vilão Coringa. Por que não se teve tanta urgência em questionar a paixão norte-americana por armas? Não há como esquecer que Holmes vive nos EUA, um país onde a população convive com um arsenal de pólvora e testosterona sem aplicações práticas, um campo minado. Dentro de casa, armado até os dentes, qualquer medíocre, obscuro e fracassado pode se imaginar soldado de uma guerra imaginária, um cowboy à espera dos bandidos e sair atirando. Por que somos tão condescendentes com a realidade das armas e severos com a fantasia do cinema?
Num baralho, o Coringa é uma carta-camaleão. Convém tê-la, mas só vale no contexto, assumindo a identidade em função das que a acompanham. Se Holmes está se mimetizando, vale pensar com o quê. Coringa é um bom nome de vilão para esses psicopatas, pois são como vampiros: alimentam-se da morte, migram do anonimato para a fama a partir das vidas que suprimem. Atiradores malucos, assim como assassinos de celebridades, ganham vida eterna na mídia. Alguns sugam a fama daqueles que matam, como os assassinos de Kennedy e Lennon, outros apostam no atacado das vidas inocentes. São modos vampirescos de angariar reconhecimento na sociedade do espetáculo. A personagem Kevin, de um livro e filmes recentes sobre um desses atiradores de escola americanos, agradecia a seus crimes a fama alcançada, pois ninguém iria falar dele se tirasse boas notas em matemática.
Mas de que “traumas” são tecidos? Quase na totalidade homens, esses assassinos que se tornam personagens da mídia talvez reflitam uma fragilidade contemporânea nas identificações viris. Quanto mais rudimentar uma personalidade for, mais ela vai precisar de identidades alheias, totalitárias e violentas para se mimetizar. Provavelmente é para alimentar fantasias de virilidade, de reconhecimento social e de controle sobre a morte que tantos homens anônimos e insignificantes querem ter seu arsenal doméstico. Se as cartas são essas, não é difícil saber a cara que o Coringa terá.
A história do macaco
Sobre a paranóia nossa de cada dia, essa que nos cega para a solidariedade e os bons encontros!
Um sujeito dirige de madrugada por uma estrada erma quando descobre que está com o pneu furado. Pior, está sem macaco. Desesperado, enxerga uma luz ao longe. Deve ser uma casa, pode pedir ajuda. Começa a caminhada rumo à salvação, quando lhe ocorre que o julgarão inconveniente por acordá-los àquela hora, sendo um estranho e pedindo um macaco. Talvez atirem pensando ser um ladrão. Pode estar interrompendo um casal que namora e irão odiá-lo. Segue seu rumo imaginando cenários terríveis e que irão lhe negar o pedido, mas mesmo assim bate na porta. Quando ela se abre, nosso viajante já está furioso com os moradores e convicto que irão maltratá-lo. A primeira coisa que ele diz é: “Quer saber de uma coisa, pegue esse seu macaco e enfia…..!”.
Esta é uma anedota antiga, mas muito bem nos ilustra. Quantas vezes ocorre estarmos precisando de uma mão amiga e supomos antecipadamente que nos será negada. Ao invés de pedir ajuda, agredimos a quem nos quer bem, mal interpretamos seus atos, convictos de que traduzem rejeição ou má vontade.
Quando infelizes, olhamos tudo e todos com as lentes do mau humor e do ressentimento. Alguém deve ser culpado pela tristeza que sentimos. Sem perceber, odiamos todo mundo. Por que, então, não haveriam eles de sentir o mesmo em relação a nós? Melhor ainda, preferimos pensar que são os outros que odeiam. Aos próprios olhos, somos anjos que só querem o bem do próximo. Atribuir seus sentimentos ao outro é uma “projeção” – sentir que vem de fora o que está dentro – é assim que os psicanalistas chamam esse mecanismo. Considerar-se alvo de intenções ruins por parte dos outros não deixa de ser uma paranóia, forma da loucura que se serve fartamente da projeção.
Paranóico é o sujeito que acha que o mundo conspira contra ele. Nessa visão delirante, tudo gira em torno de si. Ele possui a certeza de ser o umbigo do universo. Alguém tão importante só pode ser a reencarnação de Jesus, John Lennon, Joana D’Arc ou Napoleão, conforme o gosto do freguês e o momento histórico. Dizemos que ele tem delírio de perseguição, pois de fato trata-se de alguém sempre alerta, que precisa ficar esperto para não sucumbir.
Mais triste é dar-se conta da paranóia cotidiana entre aqueles ditos normais. Na maior parte do tempo os outros não querem nosso mal, tampouco nosso bem, simplesmente estão ocupados com outra coisa que não nossa digníssima pessoa. Os outros são como os moradores sonolentos daquela casa, até abrir a porta e escutar o que queremos, não estão nem aí para nós. Mas, uma vez informados dos nossos pedidos, necessidades e queixas, em geral há em volta gente boa com quem contar. Teremos o macaco de que precisamos e, não duvido, ajuda para trocar o pneu.
Os inúteis
Invejamos os funcionários públicos que recebem salários nababescos para fazer nada? O que isso revela de nós?
Há aqueles que dedicam grande energia a cultivar seu horror à política, seu discurso enojado costuma encontrar eco nas mais variadas rodas de conversa. Recentemente, esses cidadãos queixosos têm encontrado na divulgação dos salários dos funcionários públicos muita brasa para seu assado. Vejo uma espécie de voyeurismo, certa excitação até, ao referirem-se a essa personagem: o servidor público inútil e fartamente remunerado, assim como aos que recebem injustamente obscuras e nababescas pensões. Há, de fato, tristes distorções no salários, além de históricos maus tratos, entre os quais os trabalhadores públicos da educação são sem dúvida as maiores vítimas.
O fascínio com os aproveitadores do erário público têm aumentado e merece nosso olhar. Principalmente, porque vem acompanhado de outro discurso, mesmo uma prática, que é almejar um cargo público para “ganhar muito e trabalhar pouco”. Entre os críticos é comum a observação: – “isso eu queria para mim!”, como se o problema não fosse a corrupção, mas sim o fato de que não estamos sendo beneficiados por ela!
Esse funcionários ocupam o lugar simbólico daquele que, entre os irmãos, recebe mais cuidados e presentes. Pode ocorrer nas famílias que algum dos filhos seja o “estragado”, a quem os pais não fazem exigências, encobrem seus fracassos e transgressões, concedem todo tipo de favores. Não raro, esse tratamento produz toxicômanos, desajustados ou filhos eternos. Apesar disso, aos que não foram distinguidos com essa triste sina resta um sentimento de injustiça: por que tanto é dado ao pródigo? Não há reconhecimento por méritos e esforços?
Puxa sacos, safados e mafiosos dedicam a vida a uma obra que nada tem a ver com trabalho, atenção ao outro, construção de conhecimento ou qualquer realização. São como esses filhos atrofiados: vivem para cultivar relações escusas, fazer pactos de mediocridade. Um filho que nunca cresce entristece seus pais, mas jamais os abandona, nunca se sentirão descartáveis. A felicidade é ver os filhos tornarem-se capazes, mas o contrário, o filho dependente, é um destino tragicamente comum.
No fundo, gostaríamos de não ter que lutar tanto na vida, de não precisar ficar provando nossas capacidades em troca de parco retorno. Esquecemos que, assim como os filhos inúteis, os funcionários corruptos têm que conviver com essa triste versão de si mesmos. Nunca conhecerão o prazer da realização, da conquista, da superação. Antes mesmo de serem denunciados, já são condenados ao pântano da mediocridade, à pobreza de espírito. É apenas uma outra forma, ainda que invejada, de fracasso.
Mentiras sinceras me interessam
Frente a todo elogio, nos consideramos uma fraude. Já as críticas, ganham credibilidade imediata!
Noite, pai e filha param numa loja de conveniência para uma compra rápida. A menina se impressiona com as moças exuberantes que estavam ali, e pergunta ao pai se elas, tão altas, não seriam modelos. Num momento de distração da garota, o pai aproveita para transmitir a observação dela às duas travestis, que ficaram naturalmente encantadas. Seu trabalho exaustivo de montar uma bela e convincente imagem feminina fora recompensado.
As travestis são biológicamente homens, mas sentem-se mulheres e têm que carregar o fardo do sexo em que nasceram. Costumo brincar que o melhor filme sobre mulheres, para quem lhes quiser conhecer os segredos, é: “Priscila, a rainha do deserto” (Stephan Elliott, 1994), onde os protagonistas são duas travestis e uma transexual. Afinal, ninguém sabe melhor do que esses abnegados cultuadores da condição feminina, que ninguém nasce mulher, torna-se. Naquele encontro, graças ao involuntário elogio da filha do meu amigo, parecer femininos é um desejo deles que se realizou. O estranho é que elogios são sempre assim: quando os recebemos nos sentimos enganadores, como se houvesse alguma falsidade ali, uma ilusão que alimentamos, uma mentira.
O que temos de positivo é, aos nossos olhos, vivido como uma farsa, ridícula imitação dos nossos ideais. Um dia seremos desmascarados. Se alguém louva nossa obra, aparência ou valores, está, pensamos secretamente, redondamente enganado. Quando imaginamos algo que vamos fazer, as fantasias sempre incluem algum tipo de vitória, algo grandioso, frente ao qual qualquer realização parece indigna de nota. Quanto à beleza, não é à toa que ela se chama de “aparência”. Lembro da Claudia Schiffer, dizendo que depois de acordar levava mais de hora para ficar com cara de Claudia Schiffer. Os valores morais, então, são os piores candidatos à autenticidade: um mínimo de intimidade consigo mesmo revela a condição egoísta, mesquinha e violenta dos nossos anseios e pensamentos. Por sorte, na prática é outra coisa.
É justamente essa consciência dos próprios bastidores que faz com que as críticas não sofram o mesmo descrédito que os elogios. Qualquer observação que nos desmerece ou diminui é tomada imediatamente como verdade absoluta. Se alguém der a entender (ou mesmo se achamos que essa pessoa pensa assim) que somos chatos, medíocres, incompetentes ou feios, levamos fé e faremos coro com essa voz. A crítica habita nosso interior e quando encontra aliados, reais ou pressupostos, se fortalece, se agiganta. Talvez as travestis se assemelhem mesmo às belas modelos, pois aquilo que forjamos, com trabalho e superação, é uma autêntica e admirável conquista. Aplausos são para o que conseguimos fazer com o que a vida nos deu. Somos mentiras sinceras, verdades construídas. Palmas para elas.
Ao pé da letra
O esquartejamento, como manifestação da loucura derivada do amor.
Elize Matsunaga descobriu que seu marido a estava traindo. O casal passou pelos desentendimentos usuais de um fim de relação, brigas, ódios, vontade de destruir aquele que ousou deixar de amar. Mas ela radicalizou: matou Marcos, esquartejou seu corpo, espalhando seus pedaços por vários lugares. Uma monstruosidade. Como é possível tanta frieza? De onde ela tirou forças para despedaçar um homem, como pôde fazer algo tão isento de humanidade?
Não me cabe diagnosticar a assassina confessa desta história, mas posso afirmar que a loucura, quando irrompe, ofuscando todas as razões que restam a alguém, dota sua vítima de força e determinação incontroláveis. O que não torna crimes cometidos nesse estado de espírito defensáveis ou justificáveis. Nas pessoas ditas normais, o surgimento dessa força sobre-humana ocorre em situações limite, urgentes, como guerras, violência urbana, doenças. Quando necessário, descobrimos a coragem, a energia e a iniciativa que desconhecíamos ter.
Uma pessoa abandonada, substituída no coração daquele que ama, pode sentir-se desmanchar. O amor não é apenas um momento de prazer, cumplicidade ou companhia, também é dele que provém a identidade. Declaramos nosso “estado civil”, ou seja, existe alguém que atesta publicamente nos amar e viver conosco. Depois de um rompimento, aquele que deixou de ser amado se desconhece, sente-se nada, um dejeto. Pensa que nunca mais será escolhido, aos seus olhos seus atrativos desaparecem. Todo mundo já passou por isso alguma vez. Situação difícil, costuma deixar um legado de lágrimas, lamúria, depressão. Ou pior.
Estamos acostumados a ver homens enlouquecerem por ciúmes ou desesperados mediante separações que não aceitam. Não é incomum que assassinem suas ex-parceiras, quando não chacinam os frutos daquela relação. Os filhos lembram a maldita mulher que os abandonou, devem também desaparecer. Talvez seja pelo costume, de uma sociedade machista onde a honra do homem tinha legitimidade jurídica para ser lavada, que não nos horrorize tanto. A masculinidade sempre foi mais ativa, às mulheres feridas de amor cabe definhar.
Elize reagiu como uma vingadora. Louca, como ficam esses homens que matam a família inteira, tirou forças dessa situação limite que nos transforma em heróis ou monstros. Seu mundo se desfez, passou, provavelmente, a funcionar com uma lógica delirante. Tomou a desgraça ao pé da letra, se era para dividir seu homem, repartiu-o por São Paulo. Neste caso, aparentemente o resultado foi um surto. Marcos Matsunaga tornou-se de todos e de ninguém. Assim, literalmente.
O amor é nosso sintoma mais precioso (entrevista)
Entrevista de Diana Corso para o jornalista Jorge Salhani Webjornal Mundo Digital, para a matéria “Amar é” (http://www.mundodigital.unesp.br/webjornal/materia.php?materia=2625) JS: No que o amor pode modificar uma pessoa? O amor é nosso sintoma mais precioso. Dizemos sintoma, porque é como aquelas obsessões, temores ou pensamentos grandes ou pequenos, que fazem parte da vida, sobre as quais […]
Entrevista de Diana Corso para o jornalista Jorge Salhani
Webjornal Mundo Digital, para a matéria “Amar é”
(http://www.mundodigital.unesp.br/webjornal/materia.php?materia=2625)
JS: No que o amor pode modificar uma pessoa?
O amor é nosso sintoma mais precioso. Dizemos sintoma, porque é como aquelas obsessões, temores ou pensamentos grandes ou pequenos, que fazem parte da vida, sobre as quais temos pouco controle. A vida é cheia deles, preconceitos, ritos, coisas que fazemos sem querer ou que deixamos de fazer sem saber porque. Vivemos comandados por nosso inconsciente e também é assim que amamos. A questão é que uma relação, quando se estabelece, torna-se um duelo saudável de subjetividades, onde uma modifica a outra. Qualquer transformação, que nos liberte de modos pré-formatados ou estereotipados de funcionar é libertadora. Sendo assim, numa relação meus “sintomas” precisam negociar e dividir espaço com os do outro e assim ambos ganham, deixam de ser escravos de si mesmos. A loucurinha da gente, essa prosaica banal, ela existe, mas não a enxergamos. Já a do outro salta aos olhos. Uma relação é um espelho falante, como o da Bruxa da Branca de Neve, já que ela voltou à tona. Esse fica dizendo como somos belos e atraentes, afinal nos deseja e preza nossa companhia, mas também fica apontando nossas estranhezas. Amando, nos conhecemos melhor, querendo ou não.
JS: Como o amor é encarado pela geração Y? Ela ainda é idealista, procura o príncipe encantado? É carente? Devido à frustração por não encontrar a alma gêmea, entrega-se ao sexo sem compromisso?
Não temos motivo para crer em um tempo de vínculos frágeis e devassidão. Abandonar uma relação estável e cheia de compromissos mútuos e sociais em troca de relações fugazes, marcadas pelo desejo passageiro, não é novidade, principalmente para os homens. Outrora, porém, mantinha-se a fachada do casamento, digamos que a hipocrisia imperava. Na verdade, muitas vezes esses casamentos nem chegavam a ser uma relação de fato, eram duas pessoas que conviviam sem jamais se conhecer, mantendo, em geral o marido, uma animada vida erótica fora de casa. Isso tende a desaparecer, pois uma das exigências das novas gerações é a busca de uma coerência entre o que se sente e faz, há menos espaço para uma vida estruturada com base na falsidade e hipocrisia. Quanto às ilusões amorosas, bem, elas seguem sendo nossos mais queridos sonhos. Encontrar uma alma gêmea, alguém que nos compreenda além das expressões mais óbvias é uma fantasia herdada da infância. Só a mamãe, quando éramos bebês, se tivemos uma suficientemente boa, leu nosso pensamento desse jeito, antecipou nossos desejos, agiu em total sintonia com nossas carências. É um paraíso perdido, nunca deixaremos de lamentá-lo, além de idealizá-lo, pois na memória tudo é mais bonito. Depois de crescidos, esperamos do amor esse encontro com aquele outro perdido, o que nos compreendia e amava acima de tudo: mamãe. Muitas relações padecem de ser pouco frente a essa ilusão, pois os amados podem se perceber e viver um para o outro, mas no fundo, sabem ser sós e órfãos dessa fantasia da complementariedade perfeita. Enfim, a ideia de alma gêmea deriva de uma ilusão que leva a muitos mal entendidos e faz mais pelas separações do que pelas uniões.
JS: “O amor é cego”. Pode-se considerar este ditado popular verdadeiro em meio à Psicanálise?
Não completamente cego. Como acabamos tendo namorados dentro da mesma classe social e faixa de cultura, se fosse completamente cego seriam mais comuns relacionamentos assimétricos em termos de dinheiro e cultura, mas não é assim. De qualquer forma, as escolhas quando realmente o amor acontece, não obedecem a critérios que possamos domar. Até podemos descobrir por que viemos a amar fulano ou beltrano, mas só depois que a relação já se estabeleceu. O inconsciente não é cego, ele escolhe o que quer e nos deixa à margem do processo. Somos cegos porque não enxergamos seus desígnios.
Efeito borboleta
Sobre Virgínia Woolf e a conquista de cada dia.
Certo dia, neste verão, tentei salvar uma borboleta. Estava presa entre as cortinas do hall de uma pousada. Sem jeito, tomei-a pelas asas e a destruí. Pode parecer ridículo, mas bom tempo sofri com a imagem do inseto mutilado martelando no fundo dos olhos. O episódio não estragou o dia, nem as férias, mas pinicava a alma, como assombração.
Tenho uma particular sensibilidade ao mundo animal, pertenço ao vasto contingente dos que sofrem com as desgraças dos bichos. Isso não faz que me sinta uma pessoa melhor, sei que se pode ser doce com os animais e amargo com os humanos. Mas não era essa a razão do peso da cena da borboleta: todo pensamento é em camadas, sempre têm algo por baixo. Esse pequeno acidente representava outro, anterior. Há dois anos, nessa mesma pousada, mergulhei afoitamente na piscina e colidi com meu marido, deixando-o com um horroroso olho roxo. Recém chegados da estrada, a água azul era um oásis, cheguei correndo e tchibum! Mutilei o rosto do meu amado, as férias da família, e ainda escutei deles a reprimenda de que poderia ter sido pior se minha vítima fosse uma das crianças que nadava ali.
Lembrei disso ao ler uma frase do romance “As horas” (de M. Cunningham), que tem como personagem a escritora Virginia Woolf. Ao despertar, a personagem, que é a própria Virgínia, pensa: “pode ser que seja um bom dia; precisa ser tratado com cuidado”. Palavras muito simples, que contém o espírito da obra dela, a quem passei as férias dedicada. Na frágil existência, cada gesto, cada dia são decisivos. Mais que fatos, ela privilegiava a descrição do olhar de cada personagem, narrou a vida mínima, a que as mulheres observavam enquanto os homens faziam coisas consideradas grandes.
Virgínia, que como todos sabem acabou suicidando-se na meia idade, viveu mais intensamente do que muitos que chegam na velhice. Por vezes cansava-se da vida, principalmente de si, mas não se tornou uma narradora mórbida. Mais romântica do que gótica, era dada a perceber a beleza. Observou e descreveu os humanos ao redor como animais curiosos: queria saber do quê vivem, qual seu alimento subjetivo, de onde tiram motivos para cada novo dia. Por que seguem adiante, perguntava-se, mesmo os que parecem ter tão pouco para levar consigo? O que mantém a marcha do mendigo? A jornada dos obreiros? A persistência dos burocratas? Dos que têm que cuidar um doente desenganado?
A eminência da catástrofe, que pode mutilar como fiz com a borboleta, como o salto impensado, valoriza a vida como conquista cotidiana. Carece cuidar de cada dia, reconhecer-lhe o encanto em suas expressões mínimas, pois do próximo ninguém sabe. Este “hoje” que bate asas em nossas mãos, é frágil, mas pode ser bom.
O banho das freiras
Nos labirintos dos pensamentos mais bestas, mora a filosofia!
Quando pequena ouvi ou li um relato sobre a rotina de certas freiras reclusas. Nem sei se era real ou inventado. Mas o assunto me pegou, pois intrigavam-me certas peculiaridades sobre o banho dessas religiosas. Conforme recordo, elas jamais podiam desnudar-se, portanto trajavam um tipo de veste, como uma segunda pele, com a qual também se banhavam. Ficava a pensar como elas se lavavam, se podiam ou não colocar as mãos por dentro dessa armadura de pano e ensaboar as partes, digamos, mais inacessíveis. Ainda me preocupava com o aspecto da drenagem: se saíam com essa espécie de película de pano do banho, teriam que ficar secando ao relento antes de vestir o hábito, que do contrário ficaria molhado. Teriam elas aquecimento? Dedicava longas divagações à complicada logística do banho de uma pessoa que não pode se despir.
Na infância, minha filha tinha um problema de relevância similar. No caso dela era com o limite de peso que as pontes podiam suportar. Ela lia o peso nas placas. Como testariam a resistência daquela edificação? Após muito conjeturar, ela pensou que testavam com algum tipo de peso tal qual os das balanças antigas. Quando a ponte caía, construíam uma nova igual e anunciavam o peso máximo suportável. Porém, preocupava-se ela, a nova ponte não havia sido testada, e se fosse mais frágil do que sua similar anterior?
Essas são questões de criança, com o tipo de solução estapafúrdia que elas costumam inventar. Mas não são muito diferentes de uma série de raciocínios práticos com que os adultos costumam se distrair, principalmente em noites de insônia. Problemas ridículos e soluções dispensáveis ocupam longas jornadas de reflexão. Tanto matutar, nos leva a desconfiar de que é sobre questões realmente significativas que se trata. É inevitável pensar que uma menina ocupada com o direito de desnudar-se e tocar-se está às voltas com a sempre animada sexualidade infantil. Na mesma linha de inferência, a preocupação com a segurança das pontes indica uma precoce inquietude sobre as garantias que o mundo oferece. Sempre poucas e vagas.
Esses pequenos dilemas constituem verdadeiras questões, travestidas de charadas aparentemente fúteis. Fingindo ser pueris e aleatórios, apresentam-se pensamentos significativos: desejos, freqüentemente sexuais, assim como questões filosóficas. O problema das pontes, por exemplo, é uma inquietação lógica: como uma experiência pode gerar certezas para compreender uma realidade similar? Desse ponto de vista, até parecemos (e no fundo somos) bem mais profundos! Melhor assim.
Uma magra na sala e…
Sobre as fantasias associadas ao preconceito com os obesos.
“Gordinha é como pantufa, todo mundo gosta de usar mas ninguém sai de casa com ela!”
Eis como uma amiga descreve sua vida amorosa, não pouco atribulada. O problema é que seus parceiros costumam desaparecer antes do sol nascer. Ela acha que fazem isso por vergonha de ser vistos em sua companhia, o que seria um ponto negativo para o currículo deles. Talvez ela tenha razão nessa inquietude: quem come mais do que devia acaba sendo, a princípio, um tipo de transgressor. Gordura, fruto da gula, passou a ser o pior pecado capital…
Talvez, para nossos tempos em que a imagem é tudo, a gorda represente um novo tipo de mulher proibida, da qual acredita-se ser possuidora de um tipo de luxúria oral. Capturada nessa armadilha de fantasias, minha amiga sente-se exilada das relações amorosas legitimadas, relegada a uma espécie de bordel da imaginação.
Hoje como ontem, dá muito trabalho parecer uma mulher recomendável. Agora é preciso suar pela boa forma e cobrir formas irregulares, comer quase nada em público, bronzear-se (sob supervisão dermatológica, claro) e ocultar marcas da idade. Parceiras jovens ou “bem conservadas” pontuam mais. Se necessário, como um dócil objeto de Pigmalião, terão que recorrer à lipo-escultura. Carnes brancas e flácidas não ficam bem. O espartilho, agora invisível, impera como nunca.
Gordinhos representam a tentação e são condenados por viver alheios à cultuada abstinência, por não destilarem em suor suas impurezas. Eles não têm os volumes nos lugares certos: seios fartos, traseiros carnudos, mas a barriga lisa, conforme apregoado pelo cânone da Barbie. Mas, se hoje as garotas podem exibir suas formas em decotes intermináveis e saias sumárias, não seriamos finalmente corpos liberados? Não é o que parece, pois só pode ser visto o que estiver dentro das regras. E com tantas regras a seguir, o exercício e a fome acabam se constituindo numa espécie de burka internalizada. Já o implante de silicone é a voluptuosidade domada.
Os gordos evocam um desejo fora de controle. É como se comendo impudicamente burlassem o trabalho civilizatório, esse que nossa selvageria interior sempre ameaça. Evoluímos para nos alimentar sem voracidade, no lugar da compulsão, queremos ver a força de vontade. Boas maneiras e boa forma são ditadas pelo mesmo manual de etiqueta, essa que nos faz parecer tão ponderados e adequados. Idealizadas magérrimas mulheres francesas que saboreiam mini porções são o antônimo dos estigmatizados gordos, apresentados como selvagens devoradores de montanhas de fast-food. De fato, há gordos que comem sem prazer, só para se estufar, afogar a ansiedade, mas não é só disso que a obesidade é feita. Porém, a verdadeira pergunta é por que isso é mais condenável do que o igualmente estranho prazer de passar fome?
O momento pede pratos exíguos: comida fina que parece natureza morta, de alto apreço estético e baixo valor calórico. A mulher magra e musculosa é tida como a boa moça, enquanto a gorda – não precisa ser uma obesa mórbida, basta fugir ao padrão – evoca prazeres pouco domesticados. Os mais interessantes. Outrora, ressaltando os territórios da boa conduta e o indispensável tempero do proibido, dizia-se às moças que lhes cabia ser como uma dama na sala e uma puta na cama. Quem sabe, agora mudamos a frase, para lhes recomendar que sejam como uma magra na sala e uma gorda na cama?
O preço da masculinidade
Sobre os desafios que um menino enfrentava para provar-se homem. Esse tempo acabou?
No interior do Rio Grande do Sul alguns pecados são imperdoáveis. Para um cão pastor atacar uma ovelha é evento que só acontece uma vez: pagará com a vida. Aliás, um dos ditos que corre por aqui é “cachorro que come ovelha, só matando”. Supõe-se que o ato selvagem despertará uma gula ancestral, a fera acordada não se resignará mais à doma.
Esta é a história de um menino e seu cão “criminoso”. Ela me foi contada por sua irmã mais moça, que já avó nunca esqueceu. Era um pastor belga, a sombra negra do seu jovem dono, mas cometeu o crime de caçar o que devia proteger. O pai, homem antigo, achou que o animal devia ser punido pelo dono, assim tornando o evento exemplar para seu filho. Exigiu que ele matasse seu animal de estimação. O garoto recusou, mas os peões por ali reunidos observaram que não seria muito máscula semelhante covardia. A provocação funcionou e ele se embrenhou com seu parceiro no mato. Sumiu o dia todo. Noite fechada, as mulheres da casa choravam e já temiam por ele, quando voltou, silencioso, soturno. Nunca mais falou sobre isso, mas parecia ter executado a própria alegria. Era agora um homem, mostrou o desprendimento de um guerreiro, pagou o preço da masculinidade. Tornou-se um adulto tumultuado, nunca abandonou as terras do pai, foi seu predileto e razão de seus cabelos brancos.
Muito se diz sobre o árduo caminho das mulheres pela libertação. Foram milênios de opressão e dois séculos de luta das feministas. A cada 8 de março saudavelmente lembramos disso porque ainda há muita desigualdade. Por sorte, na esteira das lutas feministas, também a condição masculina teve suas regras alteradas. Histórias como essa tendem a não se repetir. Se bem é verdade que sempre cometemos algum gesto de assassinar a própria infância para crescer, a doação dos brinquedos preferidos já basta. Quanto à identidade sexual, cada dia fica mais claro que é incerta e transitamos sempre perto da raia do sexo oposto. Isso não se confunde com ser gay: homossexuais amam o próprio sexo, mas têm os mesmos dramas de identidade que os héteros.
Como o menino da história, estamos sempre sendo chamados a provar que nos tornamos suficientemente masculinos ou femininos, uma conquista sempre incerta. Que o digam as mulheres sem filhos, assombradas pelo olhar superior das supostamente legitimadas pela maternidade; os solteiros ou separados heterossexuais, que se envergonham sem a presença ostensiva de um parceiro sexual; os virgens tardios. As mulheres já não sabem bem o que é ser uma e, graças a elas, os homens carecem das certezas milenares. Não deviam queixar-se disso, já não serão eternos soldados, não precisarão pagar o preço da tristeza de assassinar a própria sombra, essa que brinca ao nosso lado enquanto caminhamos.
(publicado na Revista Vida Simples, edição de março)