O fio da memória
uma história de amnésia e de um conto que tinha a chave da memória
Graças a sua coleção de fantoches, Policho era uma lenda na minha infância. Nas estantes de sua casa, dezenas de figuras caricaturais e mágicas ficavam longe do meu alcance, só os olhos podiam tocá-las. Não eram brinquedos, eram atores, apenas estavam repousando. Seu dono era um “bonequeiro”, fazia teatro de fantoches: em suas mãos eles falavam, dançavam, brigavam muito e arrancavam gritos e risadas da platéia. Fantoches são exagerados.
Atrás do artista havia um homem politizado, ativista em tempos pouco propícios para isso no Uruguai, onde vivíamos. Por isso foi preso e barbaramente torturado. Entre seus crimes estava o fato de ser filho de um importante educador cubano e pai de dois jovens considerados perigosos, como se tornaram os jovens naquele então. Na cela após a jornada de suplícios, ocorreu-lhe uma avassaladora amnésia. Na determinação de calar, já não lembrava quem era: saber-se era perigoso. Fruto do esforço de evocar, veio-lhe à mente o pedacinho de uma história que ele passou a contar a si mesmo. Infelizmente não sei qual era, se conto, lenda ou romance, e não há como lhe perguntar, ele já partiu. Dia após dia, a trama crescia. Scherazade de si mesmo, foi atiçando a própria curiosidade e sobrevivendo à miséria da desesperança. Quando a narrativa se completou em sua cabeça foi como se tivesse atravessado um portal. Ela era a chave: toda sua memória voltou, com ela a identidade e a força para suportar a dor.
A evocação que o livrou da amnésia, podia ter sido de uma lembrança de infância, da família, uma música, o número da carteira de identidade ou endereço, elementos da realidade pessoal que ele procurava resgatar. Mas o que voltou foi uma história. É o mesmo caminho traçado por Umberto Eco em seu livro “A Misteriosa chama da Rainha Loana”, no qual um homem recupera a memória perdida visitando o porão da casa que fora do avô, onde ficara sua antiga coleção de gibis. Reencontrar-se com histórias de que gostava foi o método para encontrar a própria identidade porque nelas ficam guardados sonhos e desejos.
São nossas divagações fantasiosas, enfeixadas em histórias que lemos, assistimos ou nos contaram, que melhor nos traduzem e representam: ali está o tesouro da hipotética verdade de cada um. Talvez, se algum dia precisar, eu possa recorrer às histórias que aqueles bonecos quietos na estante me cochicharam, encenadas no palco da imaginação infantil. Eles eram só fantoches, mas tinham um amo que certamente sabia que uma boa história é a chave de tudo o que somos.
O preço da masculinidade
Sobre os desafios que um menino enfrentava para provar-se homem. Esse tempo acabou?
No interior do Rio Grande do Sul alguns pecados são imperdoáveis. Para um cão pastor atacar uma ovelha é evento que só acontece uma vez: pagará com a vida. Aliás, um dos ditos que corre por aqui é “cachorro que come ovelha, só matando”. Supõe-se que o ato selvagem despertará uma gula ancestral, a fera acordada não se resignará mais à doma.
Esta é a história de um menino e seu cão “criminoso”. Ela me foi contada por sua irmã mais moça, que já avó nunca esqueceu. Era um pastor belga, a sombra negra do seu jovem dono, mas cometeu o crime de caçar o que devia proteger. O pai, homem antigo, achou que o animal devia ser punido pelo dono, assim tornando o evento exemplar para seu filho. Exigiu que ele matasse seu animal de estimação. O garoto recusou, mas os peões por ali reunidos observaram que não seria muito máscula semelhante covardia. A provocação funcionou e ele se embrenhou com seu parceiro no mato. Sumiu o dia todo. Noite fechada, as mulheres da casa choravam e já temiam por ele, quando voltou, silencioso, soturno. Nunca mais falou sobre isso, mas parecia ter executado a própria alegria. Era agora um homem, mostrou o desprendimento de um guerreiro, pagou o preço da masculinidade. Tornou-se um adulto tumultuado, nunca abandonou as terras do pai, foi seu predileto e razão de seus cabelos brancos.
Muito se diz sobre o árduo caminho das mulheres pela libertação. Foram milênios de opressão e dois séculos de luta das feministas. A cada 8 de março saudavelmente lembramos disso porque ainda há muita desigualdade. Por sorte, na esteira das lutas feministas, também a condição masculina teve suas regras alteradas. Histórias como essa tendem a não se repetir. Se bem é verdade que sempre cometemos algum gesto de assassinar a própria infância para crescer, a doação dos brinquedos preferidos já basta. Quanto à identidade sexual, cada dia fica mais claro que é incerta e transitamos sempre perto da raia do sexo oposto. Isso não se confunde com ser gay: homossexuais amam o próprio sexo, mas têm os mesmos dramas de identidade que os héteros.
Como o menino da história, estamos sempre sendo chamados a provar que nos tornamos suficientemente masculinos ou femininos, uma conquista sempre incerta. Que o digam as mulheres sem filhos, assombradas pelo olhar superior das supostamente legitimadas pela maternidade; os solteiros ou separados heterossexuais, que se envergonham sem a presença ostensiva de um parceiro sexual; os virgens tardios. As mulheres já não sabem bem o que é ser uma e, graças a elas, os homens carecem das certezas milenares. Não deviam queixar-se disso, já não serão eternos soldados, não precisarão pagar o preço da tristeza de assassinar a própria sombra, essa que brinca ao nosso lado enquanto caminhamos.
(publicado na Revista Vida Simples, edição de março)
Filhos da máquina de sonhos
Sobre o filme “A invenção de Hugo Cabret” e a herança enquanto um enigma.
Por que na ficção os mestres se expressam por enigmas? Quando Harry Potter está com a vida a prêmio, o prof. Dumbledore em vez de dizer o que ele tem que fazer, lança uma charada que deve ser decifrada em meio às correrias. Mas por que não ajudar os meninos, não vê o velho mestre que a situação está preta?
Só que o enigma é o encanto da aventura! Decifrar a frase misteriosa faz com que eles cresçam com a missão. Tornados detetives acabam entendendo no que estão metidos e seu papel na trama. Do contrário, seriam como soldados no front, a quem cabem estreitos heroísmos. Hoje não admiramos a alienação, a obediência; o engajamento deve ser ativo, original, inteligente.
Cada um de nós é, de certa forma, portador de um enigma. Afinal, não teríamos vindo ao mundo à toa. Carecemos imaginar uma sofisticada engrenagem da qual supomos ser peça imprescindível. Esse é o raciocínio do menino Hugo, protagonista do filme “A invenção de Hugo Cabret” de Scorsese. Somos parte de um mecanismo, pensa ele, cada um tem utilidade peculiar. Cabe-nos desvendar o mistério de seu funcionamento, consertar seus estragos.
Ele é aprendiz de relojoeiro, trabalhava com o pai nesse ofício até a morte trágica deste. Ambos dedicavam-se ao conserto de uma espécie de boneco robot, que havia sido encontrado abandonado. Hugo, que já havia perdido a mãe, torna-se órfão e é levado por um tio imprestável a habitar os corredores internos, as entranhas, da estação de trem, onde fazia a manutenção dos relógios. Abandonado ali, vivia clandestino, tendo por companhia apenas o boneco estragado. Se descoberto, seria colocado num orfanato, mas preservava sua liberdade para viver consagrado à tarefa de completar a obra do pai. Estava convicto de que esse boneco, ao funcionar, revelaria alguma mensagem paterna, dando um sentido à perda e à sua vida. Enquanto esgueira-se e realiza pequenos roubos, principalmente das peças necessárias para refazer o robô, seu destino se cruza com o de um velho senhor que se torna parte da charada.
A descoberta final de Hugo é surpreendente: mais que fatos, verdades, há sonhos que são sempre enigmáticos. A herança que recebemos é composta das fantasias dos que nos precederam. Crescer é terminar e recriar o boneco que os pais sonharam. Apesar do valor que nossos ancestrais possam ter provado, seu maior legado foram seus devaneios. Por isso o filme é uma homenagem aos fundadores do cinema, aos artistas, trabalhadores da fantasia. Somos, afinal, uma engrenagem da incansável máquina de sonhos dos homens. Espero que imprescindível.
Waldrausch
Uma palavra certa pode ser a proteção necessária contra as tempestades da vida
Esses dias fazia de segundo violino para Lya Luft numa palestra. Escutando uma história da sua infância quase me perco da minha função. Sua prosa envolvente, onde realidade e ficção perdem o sentido do limite, me embalava.
Ela estava no jardim de sua casa quando começava uma tempestade. Sentia a vegetação sinistramente agitada pelo vento, aquela inquietude da natureza que conhecemos, um ar carregado de ameaças. A tempestade é um encontro menor com o caos, ergue-se como um tsunami pocket para tirar tudo do lugar. No vento, que anuncia a água e os trovões, há uma gravidade, uma urgência no ar. É um momento de desamparo: dá vontade de correr para um abrigo, “estar dentro”, não importa do que.
Eis que mãe se aproxima da pequena Lya paralisada, os olhos azuis arregalados, abaixa-se e lhe sussurra em alemão, língua na qual transitava na infância: é o “waldrausch”. O “rumor do bosque”, ela nos traduz. A criança se acalmou, o medo transmutou-se em poesia. A ameaça do mau tempo tornou-se uma espécie de conto de fadas, assustador, mas fascinante, como um filme de terror, uma sinfonia angustiante, que nem por isso deixa-se de escutar. Uma simples palavra pronunciada pela mãe fez a diferença. Deve ter sido assim que ela virou escritora, ofício que, aliás, começou a exercer depois de tornar-se mãe, não por acaso.
Lembro de uma amiga que me contava história avessa. Sua mãe era fóbica, pouco saía de casa, sobrecarregando-a com o cuidado dos irmãos. Dentre as ameaças do mundo, eram as tempestades os piores inimigos dessa mulher, momento no qual recolhia os filhos e abrigava-se embaixo da mesa da cozinha. Ela cresceu corajosa, sina freqüente dos primogênitos que podem contar pouco com os pais. Porém, sofria de uma dependência amorosa, da qual custou a se livrar: o ser amado era seu lugar seguro. Um grande, e infelizmente fracassado, amor foi para ela como a mesa, abrigo que a mãe usava para se abrigar da tempestade. Quão diferente teria sido se fosse uma mãe que pudesse continuar lhe sussurrando ao ouvido cada vez que o desamparo ameaçava: “é o rumor do bosque”!
Esse bosque está sempre dentro de nós. Uma floresta de pensamentos, fantasias e pesadelos feitos de amor e morte. Em nossa turbulenta natureza interior, ventanias, cataclismos se armam de tanto em tanto. Tanto sabemos disso que trememos a cada brisa sinistra, carregada de cheiros que vieram sem ser convidados. Quando as memórias de infância carecem do encanto necessário, sempre temos na ficção um lugar seguro para estar enquanto a tempestade passa, cumpre seu ciclo. Os artistas são aqueles que partilham suas metáforas, seus bosques e ventos, ao pé do nosso ouvido. Quanto a nós psicanalistas, o tempo todo garimpamos essa palavra que permite atravessar a rude natureza da alma.
(publicado na Revista Vida Simples, edição de fevereiro)
Vizinhos, melhor tê-los.
sobre os vínculos afetivos com os vizinhos.
Não faz muito, caminhão de mudança me dava arrepio. Apesar de que havia feito uma boa troca: um apartamento por uma casa bonita onde minhas filhas cresceram brincando com os vizinhos à moda antiga. Mas ainda me ressentia do caos da chegada, da longa jornada de improviso. Num lugar maior, os poucos e esmirrados móveis pediram para ficar juntos por medo da solidão e não havia dinheiro para povoar aquele latifúndio. As meninas nem ligavam, mais espaço para correr. Por sorte o resto dos habitantes do condomínio semi ocupado também usavam lençóis no lugar das cortinas. Quando todos nos assentamos, com estofados e móveis sob medida, perdeu a um pouco a graça.
Quintana já dizia que amar é mudar a alma de casa e, parodiando-o, posso dizer que mudar é amar em outras casas. Não me refiro à família, que muda junto, mas aos vizinhos. Podem ser de porta, de condomínio, de rua, de bairro. São pessoas que encontramos nas horas de desalinho, nos momentos descontraídos, ou nos quais parecemos por vezes atropelados: quando acordamos, ou voltamos destruídos do trabalho, ou ainda nos ocorreu algo triste. É infalível, o vizinho sempre está lá, no elevador, na porta, ele pode trocar um comentário ou não, mas nos testemunha.
Escrevo sobre vizinhos porque perdi minha primeira vizinha. O nome não lembro, nós a chamávamos de Chichi (no Uruguay, se pronuncia “Tchitchi”). Guardava dela uma lembrança infantil doce: ela dando-me um banho na sua casa. Nunca entendi por que essa imagem me era tão grata. Pois agora, quando soube da sua morte, à minha mãe ocorreu contar-me um episódio que conscientemente eu não lembrava. Foi essa vizinha que me deu o primeiro banho, ajudando minha jovem mãe atônita. Também lá estava ela em vários outros momentos importantes da minha primeira infância. Ambas nos mudamos, ela de casa e eu de país, mas sua proximidade me marcou. Simplesmente porque estava ali ao lado e soube entender que era necessária. O coração fica um pouco em cada casa, adeus Chichi!
A construção da personalidade não se faz somente da família e escola: crianças sempre observam atentamente como vivem e se comportam as pessoas em volta. Nesse ponto, como elas, absorvemos o contexto, não importa quão impessoais as cidades tenham se tornado. Hoje, outra vez num apartamento, tenho bons vizinhos e uma ótima vizinha de porta. Nos encontramos nas horas amassadas para falar das filhas crescidas e dos cachorros velhos. Sei que à vezes dá azar, mas da loteria da vizinhança realmente não posso me queixar. Perdi o medo de me mudar, graças aos vizinhos
Precisamos falar (ainda mais) sobre o Kevin
Trechos de nosso livro sobre a obra de Shriver, maravilhosamente reatualizada pelo filme de Lynne Ramsey. Nosso Oscar vai, sem dúvida, para ele!
Quando escrevíamos nosso livro, procuravamos detectar histórias que sintetizassem fantasias em circulação, que fossem uma espécie de síntese de sonhos e pesadelos coletivos, mitos úteis a uma época. Quanto às obras antigas, é fácil reconhece-las, pois o tempo é o melhor avalista. Foi quando surgiu o livro de Lionel Shriver, “Precisamos falar sobre o Kevin”, cuja leitura nos arrebatou, de tal modo que todo o primeiro ensaio do livro se dirige a ele, como fecho de ouro do que queríamos dizer. Após a publicação, seguíamos nos perguntando se a aposta tinha sido certa, o livro era genial, mas duraria? Se ele caísse no esquecimento, se fosse apenas um livro de época, brilhante mas passageiro, nossa reflexão sobre ele permaneceria útil? Acabamos de assistir ao filme incrível da diretora Lynne Ramsey, uma obra prima feita sobre ele. Neste momento, achamos que valeu. Boa oportunidade para recolocar a discussão em jogo, reproduzindo os trechos do livro sobre o Kevin, do capítulo que se encontra disponível on line em nosso site (https://www.marioedianacorso.com/psicanalise-na-terra-do-nunca/capitulos-online)
Um monstro no ninho: trechos do livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia” , Ed. Artmed, 2010.
Crianças demoníacas e monstruosas?
Em meados do século XX um novo monstro ganha terreno: o filho. Não estávamos em falta de figuras para o horror, ao contrário, nossa fantasia demonstra extrema criatividade em fabricar monstros. Qualquer novidade se incorpora ao nosso vasto bestiário fantástico, tanto que temos monstros de todos os tipos, encarnando todas as formas do medo, do horror, do inimaginável. Mas colocar as crianças, e principalmente as próprias, como monstros é realmente uma novidade.
A primeira metade desse século, convulsionado pelos massacres de duas guerras mundiais, mostrou o quanto somos capazes da destruição em massa, do caos, sem auxílios mágicos, sobrenaturais ou divinos. O mal foi dessacralizado, ele está entre nós. Foi em ventres humanos que se geraram os monstros que hoje nos assombram, e descobrimos quão longe podemos chegar. As crianças, os filhos, são caixinhas de surpresas: Curie, Einstein e Fleming foram filhos de alguém, mas Hitler, Mussolini e Stalin também!
Representações de crianças como sendo um problema, um incômodo, ou ainda como malditas, não são um fenômeno contemporâneo. Porém as histórias clássicas foram arranjando suas particulares maneiras de mascarar essas intenções, de suavizar o ataque. De forma velada, simbólica como nos sonhos, os contos de fadas narram vinganças dos grandes contra os pequenos, principalmente contra sua gula e o fardo de prover-lhes sustento. Aparecem como descartáveis comilões em João e Maria, onde são colocados como indignos de dividir o alimento com os pais, e acabam pagando caro pela voracidade de devorar até as paredes da casa de doces.
Em O Flautista de Hamelin o pedido da comunidade para livrar-se dos ratos pode ser lido como metafórico, pois as crianças também podem ser incômodas, parasitas inúteis. Não é por acaso então que o Flautista as leva embora pelo mesmo caminho trilhado antes pelos ratos. Estabelecendo uma equivalência simbólica, elas seriam nossos “ratinhos de estimação”.
Mas as crianças dessas histórias nunca se ocuparam do ofício da maldade. Na pior das hipóteses, elas constituíam uma personagem malcriada e egoísta, em contraponto com a boa alma da sua oponente, como a pequena heroína no clássico As Fadas de Perrault. A tarefa de representar o mal, de exercer a violência, o abandono, estava a cargo dos pais desnaturados, das madrastas, dos ogros carnívoros, de todos os malvados que deveriam ser responsáveis pelo seu crescimento. Os adultos eram os monstros, enquanto os pequenos eram as vítimas.
Também sempre houve filhos amaldiçoados, cujo nascimento acarretaria a destruição da família e do reino, como Édipo que desgraça Tebas, ou Paris que arruína Tróia, todas as mitologias conhecem personagens assim. O funesto destino dessas crianças estava marcado já antes do nascimento, geralmente devido a pecados cometidos por gerações anteriores, que agora vinham cobrar seu preço, arrastando seus pais e o reino para o desastre. De qualquer forma a maldade, o erro que iniciou a queda, precedia essas crianças que foram abandonadas para o bem dos pais. Como inutilmente fizeram Laio e Príamo, quando descartaram seus filhos, assim que souberam das profecias.
Em todas as histórias antes mencionadas, na dúvida entre uma geração e outra, os pais escolhiam a própria sobrevivência. Essa opção não é tão estranha em outra época ou culturas, como o é para nossos contemporâneos. Para nós, a proteção da criança é prioridade máxima, sendo a maternidade e a paternidade valores sociais muito importantes. Essa valorização é recente, data de poucas centenas de anos, quando o discurso moral e pedagógico passou a investir na sobrevivência e formação das gerações futuras, assim como a evolução sanitária lhes facilitou a sobrevivência. Antes, mais valia um adulto na mão do que várias crianças voando. Criança era um cidadão incerto, adulto era certíssimo.
Como para cada ação há uma reação, na vida e na ficção, vamos examinar como a atual exaltação da importância das crianças, e do papel dos pais, acarretou uma contrapartida, uma reação inconsciente, que está na origem de fantasias onde se atribui às crias humanas um valor negativo. Impedida de se exercer no discurso corrente, pois elas seriam o tesouro e a promessa da humanidade, a ambivalência em relação às crianças refugiou-se no território da fantasia.
Os exemplos são múltiplos, as fantasias de crianças-monstros estão bem disseminadas, mas escolhemos algumas, não necessariamente as melhores, mas as que fizeram um sucesso inequívoco. Sua popularidade, traduzida em permanência e difusão, nos indica que produziram algum eco social. A vantagem adicional é que contaremos com um acervo de histórias que é compartilhado, afinal, muitos as conhecem ainda que parcialmente.
Examinaremos uma vertente das fantasias relacionadas às crianças: sua origem, histórias aterrorizantes envolvendo a concepção, o parto e a criação de um monstro. Por isso, a mulher, a mãe, é uma personagem envolvida de forma inevitável. Ela surge enquanto vítima, oponente, protagonista ou causadora do mal, ou enquanto todas essas ao mesmo tempo. Consideramos que são obras eloqüentes desse viés, a gestação invasiva, satânica e alienante em O Bebê de Rosemary; o “parto” que irrompe e mata em Alien; o filho como um estranho no ninho, um cuco demoníaco, em A Profecia; ou o horror, desesperadoramente humano, presente no livro Precisamos falar sobre o Kevin.
Todos eles são alusivos, de forma direta ou indireta, à gravidez conturbada e à chegada dum filho monstruoso. Inevitável pensar, que junto ao filho maligno estamos indiretamente exorcizando sua coadjuvante inevitável, a fêmea humana, que no século XX tornou-se tão outra, tão diferente daquilo que nos séculos precedentes acostumou-se a chamar de mulher.
(da Introdução do capítulo 1, pg.29)
Um demônio demasiado humano: Precisamos falar sobre o Kevin
Para a psicanalista Helene Deutsch, há diferentes tipos de maternidade, que ela divide basicamente em dois grupos: um tipo é a mulher que desperta para uma nova vida através de seu filho, sem ter o sentimento de uma perda. Tais mulheres desenvolvem seus encantos e sua beleza somente depois do nascimento de seu primeiro filho; o outro tipo é a mulher que desde o princípio sente uma espécie de despersonalização na relação com seu filho; tais mulheres dedicam seus afetos a outros valores (erotismo, arte ou aspirações masculinas) ou esse afeto é demasiado pobre ou ambivalente em sua origem e não pode tolerar uma nova carga emotiva; o primeiro tipo estende seu eu através da criança, o segundo sente-se limitado e empobrecido1. Datado de 1944, o livro de Deutsch encontra ainda as mulheres em papéis sociais mais rígidos. Hoje, os dois tipos que ela teoriza convivem em cada mulher, junto com todas as nuances intermediárias entre eles. Em um livro chamado Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver2, uma escritora norte-americana, a literatura produziu um exemplo do que seria o segundo tipo de mulher. Nesse livro vamos encontrar a mesma trama de estranhamento anteriormente discutida, mas sem o apelo do demoníaco.
Aqui estamos sem máscaras religiosas ou fantásticas, face a face com as fantasias mais monstruosas encenadas por gente comum. Justamente, essa novela assusta por evocar “a vida como ela é”. É uma história ficcional, narrada pela mãe de um “garoto columbine”, como ficaram chamados os meninos assassinos que matam vários colegas de escola. Seu primogênito, Kevin, realizou um morticínio múltiplo, friamente calculado, de onze pessoas. Entre os mortos figura a vida pública da mãe, obviamente destruída após o evento.
Como muitas mulheres de nossa época, essa mãe não tinha pouco a perder: levava uma vida bem interessante quando a maternidade a deportou para um mundo desconhecido, cheio de novas regras e exigências. Numa espécie de idealização da vida da mulher independente, avessa à rotina encerrada e monótona da dona-de-casa, a personagem de Eva Katchadourian é uma nova-iorquina, escritora de guias de viagens para jovens, portanto, uma viajante profissional, culta e próspera. No campo amoroso ela é apresentada como igualmente bem sucedida, vivendo um casamento romântico com um homem atraente. Porém, não foi com os crimes cometidos pelo filho que a derrocada dessa vida idealizada de mulher livre começou, foi com seu nascimento, ou melhor, já durante a gestação.
Como sua homônima, a personagem bíblica, condenada a padecer após a expulsão do paraíso, Eva gestou e pariu com dor. Seu relato da experiência é tocante, o corpo começa a assumir outras cores, os seios lhe parecem ubres, a vagina, outrora fonte de prazeres, se tornou caminho para alguma parte, um lugar real, e não apenas para uma escuridão na minha cabeça. Queixa-se de ser um instrumento biológico, seu corpo deixa de ser propriedade privada, tudo o que me fazia bonita era intrínseco à maternidade, e até mesmo meu desejo de que os homens me considerassem atraente era uma maquinação de meu corpo projetada para expelir seu próprio substituto. Cruzada a soleira da maternidade, de repente você se transforma em propriedade social, no equivalente animado de um parque público. Como se vê, a obra é farta em sinceridade quanto às fantasias e contratempos da gravidez.
Corroborando seus temores, o marido de Eva a congratula pela gestação: bem vinda à sua nova vida! Nessa nova vida, sendo que ela gostava muito da velha, ela não escolherá mais como administrar seu tempo, sua alimentação. Suas prioridades serão as do feto, e ela descobre isso logo de entrada. Como uma princesa da ervilha, queixa-se do incômodo da situação: já estava me sentido vitimada, como se eu fosse uma princesa, por um organismo do tamanho de uma ervilha.
Eva desejou vagamente uma boneca, um bicho de estimação, um amigo imaginário, um substituto permanente do marido quando ele se ausentava, um troféu de sua relação, porém nasceu-lhe um novo papel social e um amo monstruoso. A vida anterior, da mulher bem sucedida e sem filhos é o paraíso perdido. Paradoxalmente, neste caso a tentação não veio da ruptura, da curiosidade e irreverência que sempre tornaram as mulheres tão perigosas. A tentação que provocou a expulsão de Eva veio do passado: desempenhar o mais tradicional papel feminino, a maternidade.
Não somos nós, é ela própria que se coloca na linhagem das mães de monstros, de que aqui nos ocupamos, ao descrever sua gestação assim: Já reparou quantos filmes retratam a gravidez como uma infestação, uma colonização sub-reptícia? O Bebê de Rosemary foi só o começo. Em Alien um extraterrestre nojento sai da barriga de John Hurt (…) Durante todo o tempo em que estive grávida de Kevin, combati a idéia de Kevin, a noção de que eu havia sido rebaixada de motorista a veículo, de proprietária a imóvel em si 3.
Uma vez nascido, o bebê Kevin foi visto pela mãe como possuindo uma personalidade própria, pré-existente, e destinada a se desencontrar com a dela. Ao contrário do marido, que esperava um filho genérico, tendo um papel pré-estabelecido para qualquer um que nascesse, para Eva não havia lugar nem para o feto idealizado. Desde o começo estabeleceu-se um duelo de subjetividades, uma tensão entre diferentes. Ele rejeitava seu leite, cujo sabor não suportava, sequer na mamadeira que tomava exclusivamente no colo do pai, chorava de forma incessante, alheio ao conforto de seus braços. As intermináveis gritarias de cólica pareciam ser exclusivamente para sua mãe, pois cessavam no instante em que o pai entrava em casa, e Eva via nisso uma intencionalidade maligna contra si.
Na primeira infância, Kevin negou-se a falar o quanto pôde, embora a mãe suspeitasse que ele estava apto para fazê-lo, e obrigou-a a lhe trocar fraldas até os seis anos, num descontrole esfincteriano que ela compreendia como mais uma forma de controlá-la, uma disposição do filho de obrigá-la a viver entre as fezes. Com o pai mantinha uma relação apagada, blasé, com a mãe de cotidiana tortura. A cumplicidade entre mãe e filho, na qual só ela parecia perceber a sordidez do espírito de seu pequeno monstro, só fez aumentar. O pai surpreende-se com as queixas da esposa, para ele Kevin era absolutamente normal, mas ela tinha certeza que isso era assim para que ela passe por louca.
A vida segue, as babás se demitem sucessivamente, os amigos o evitam, os professores o acham bizarro e ele se isola. O menino é diabólico a ponto de jamais ser pilhado, nunca é punido, faz a todos de bobos, principalmente o pai, que nunca vê o que não quer ver. A demonstração de sua perversidade só veio se comprovar com o desenlace do massacre final.
Após o banho de sangue, Eva e Kevin terminam vivendo um para o outro, continuando sua simbiose às avessas, dedicando-se e odiando-se mútua e intensamente. Nada mais lhes resta senão viver reclusos, ela transformada num fantasma, uma sombra do que fora, entocada em casa, apenas aguardando a próxima visita à penitenciária local onde ele cumpre pena pelos assassinatos. Justo ela, que sentia-se mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada na história alheia4.
Entre a mãe de Damien e a de Kevin há algo em comum, é o complexo de cuco. Embora parido das suas entranhas, Kevin é um ser com idiossincrasias próprias desde seu nascimento, cuja missão foi realizada: destruir a identidade de Eva. Damien, o menino-demônio, não descansa enquanto não elimina sua progenitora, ele não quer uma mãe, quer uma adoradora dedicada, uma fanática sem personalidade como sua babá Mrs. Baylock.
Embora não tenha empreendido o projeto da maternidade contrariada como Eva, a mãe de Damien também acaba sofrendo. Ela estranha-se da personalidade e frieza de seu menino, não consegue sentir com ele a conexão que supunha que existiria. Ambas suspeitam que haja algo de errado com seus meninos. O mais antigo, o diabo, ele tem suas razões, quanto a ele não é preciso angustiar-se, pois as forças do mal que podem fazer de um filho o algoz dos pais, estão além da vontade humana. Mas esse alívio moral não existe no livro de Shriver.
Na história de Kevin a mãe foi processada e condenada pelos pais das vítimas do massacre, a sociedade a fez pagar, privando-a totalmente de seu patrimônio e prestígio, pelos crimes do filho. É sua frieza, a incapacidade de ser mãe, a grande acusada pelos crimes do filho. Essa é a maior vitória dele, afinal, destruí-la era o que ele mais queria.
No livro, cada fiapo do tecido da ambivalência do amor materno é rastreado, assim como as contradições entre a maternidade e a liberdade das mulheres. Tampouco o pai sai pagando barato, é descrito como um cidadão típico americano, fútil e superficial, cujo ofício era buscar locações para serem cenários de comerciais. Na vida familiar é exatamente assim que ele se comporta, como alguém que apenas descobre o local, ele não cria nada.
Quanto a Eva, sua profissão também é metáfora de seu modo de vincular-se: para escrever seus guias, ela investiga formas, lugares e dicas para que as pessoas possam circular pelo mundo gastando pouco e incomodando-se o menos possível. Passar muito trabalho, gastar demasiado dinheiro, ou envolver-se em contratempos, não é uma boa forma de viajar, mas são percalços inevitáveis na vida cotidiana.
Viagens incluem revezes, mas eles não devem incomodar muito além de conexões perdidas, noites mal dormidas ou refeições ruins, não chegam aos pés dos sofrimentos que se pode ter quando no trabalho, no amor ou na família ocorrem fracassos, rupturas e dores. Viajando, andamos por lugares em que ninguém nos conhece, onde nada se espera de nós e procuramos extrair o máximo de prazer da forma menos dispendiosa possível. Eva conseguia viver assim, mas não havia jeito de ser mãe com esses critérios.
Na visão do pai, Kevin cumpria o papel social do filho, era um cenário, independente de quem ele fosse, enquanto Eva faria o da mãe, apesar de quem ela havia sido. Onde ela via alguém no filho, apesar de demoníaco, ele somente observava o clichê que queria ver, ficando ainda mais distante dele do que a mãe.
Os assassinatos cometidos por Kevin5, de certa forma, fazem valer o nome da mãe. Numa estranha negociação, Eva e o marido haviam decidido que caso o filho fosse menino, ele teria o pré-nome escolhido pelo pai e carregaria o sobrenome materno, Katchadourian, que é de origem armênio. Ela argumentou que seu povo foi cruelmente massacrado e por isso mereceria ser homenageado com a nomeação de seu filho6.
Na ausência de um pai que reivindicasse um papel maior, assim como do pai de Eva pouco sabemos, o menino tomou para si, literalmente, a herança desse massacre. Apenas mudou de lado, de vítima, passou para a posição de algoz, como se fosse um armênio que vingasse seu povo. Kevin sempre parece tomar as coisas de forma literal, como o fazem as crianças e adultos com graves perturbações psíquicas.
Uma mulher sem filhos, pode sentir-se “desfilhada”, como disse certa feita uma paciente que havia passado por múltiplas e sofridas experiências de abortos provocados. Em suas associações, essa expressão reverberava enquanto alguém que carecia de uma filiação, era “desfiliada” de uma família, por não tê-la continuado. Filiar-se a uma linhagem, ao inserir seu filho nela, pode fazer parte de um pacto entre uma mulher e um homem, a partir do qual eles criam algum projeto para seu descendente. A característica da negociação entre os pais de Kevin a respeito de seu nome determinou que ele tivesse que apegar-se a algum traço, de preferência materno, para fazer-se elo, conexão, entre uma origem, uma família, o passado de um povo, e um projeto de futuro, o seu futuro. Kevin é filho de um pai-cenário e uma mãe-viajante, entre eles não há síntese.
Para delinear um papel na vida, para fazer seus planos, um filho inspira-se em suas origens. Ele pode fazer isso a partir daquilo que orgulha ou mesmo do que envergonha a seus pais e antepassados, pode tomar essa base para continuá-la ou para romper com ela, mas sua família sempre cumpre algum papel. Será melhor se isso lhe for transmitido de alguma forma explícita, senão tentará fazer sua versão, fazer-se elo de uma linhagem de algum jeito, não necessariamente de forma patética como Kevin.
A recusa de uma mulher à maternidade parece ser a ameaça visível à continuidade das famílias e o livro de Shriver é um exemplo das fantasias geradas por esse medo, do quanto isso soa ameaçador e teme-se que custe caro para a mulher e para a sociedade. Eva é incriminada pelos assassinatos de Kevin, assim como a sociedade teme as monstruosidades que podem advir da ausência do amor materno. Em suma, esse livro une-se ao coro dos que têm maus presságios sobre a falta de pendor de muitas mulheres para a maternidade. Em histórias como essa, as monstruosidades provém das mães contrariadas, por isso Eva é habitante do inferno, porque o esse filho endemoniado teria sido obra sua. Por outro lado, pode funcionar como um alerta contra a coerção social que mobiliza todas as fêmeas humanas na direção da procriação: cuidado, se elas forem forçadas, um monstro pode estar sendo gerado!
Sentimos alívio ao final das obras policiais, quando fica claro quem é o culpado e quais foram suas motivações. Essa é a função desse tipo de novela, circunscrever o mal para que possamos livrar-nos dele. Por isso, frente ao deslocamento que ocorre nessa obra, da origem do mal do diabo para uma vaga psicogênese, assim como do papel do assassino do anticristo, para um filho enlouquecido pela rejeição inconsciente dos pais, ou por qualquer outra sutileza, fica difícil dormir em paz.
1 Deutsch, Helene. La Psicologia de la Mujer, Parte II – Maternidad. Buenos Aires: Ed. Losada, 1960, Pg. 59.
2 Shriver, Lionel. Precisamos falar sobre Kevin. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2007.
3 Ibidem, pg 66, 67, 69, 71 e 76.
4 Ibidem, pg. 45
5 O livro de Shriver contém uma chave na trama, que nos absteremos de analisar para não estragar o prazer da leitura para aqueles que ainda não a fizeram.
6 Também conhecido como “Holocausto Armênio”, iniciado em abril de 1915, foi o extermínio sistemático dos armênios residentes na Turquia, punidos pela intenção de constituir uma pátria autônoma. Esse é considerado um marco histórico na experiência do genocídio, pela sua documentação e pelas provas da intenção deliberada de bani-los da face da terra. Acredita-se que morreram 1,5 milhões de armênios nesse genocídio. É interessante observar como nessa ficção o pequeno monstro é conectado com uma das experiências paradigmáticas do mal, aquele para o qual não necessitamos de mensageiros sobrenaturais, do qual nós humanos nos incumbimos pessoalmente.
Morrer de véspera
A consciência da morte obriga a objetivar as escolhas: não teremos tempo de ser e ter tudo
Bilbo tem 13 anos. Para humanos é o fim da infância, na sua trajetória canina é o fim da vida. Mas isso não é novidade para ele, nem para nós. Já faz cinco anos que dois veterinários diferentes lhe deram pouco tempo de vida. Alegavam, o que deve ser verdade, pois apareceu nos exames da época, que ele tinha o coração quase do tamanho da caixa torácica e trinta por cento da função renal. A não ser que um milagre tenha acontecido, isso só pode ter piorado. Na ocasião lhe receitaram vários remédios, ração especial, uma vida de velho. Ele detestou, é próprio da sua raça a infância eterna. Nenhum bulldog francês amadurece, só ficam mais lentinhos. Os tratamentos o tornaram muito magro e deprimido, ficava de mau humor cada vez que lhe empurrávamos mais uma pastilha. Por isso decidimos deixa-lo em paz: que durasse pouco, mas fosse feliz! Cortamos os remédios, a ração insossa. Livre da existência terminal, voltou a brincar e correr. Hoje, se fosse gente teria uns oitenta anos.
Na verdade, se fosse humano talvez já estivesse morto, de preocupação, de tristeza pela condenação que uma doença grave significa. Às vezes morremos de desesperança, achamos que a vida, se não for infinita, não adianta que dure. A religião tampouco consola, pois a suposta eternidade da alma já não conforta tanto. Mesmo com saúde, é só olhar em volta e acabamos fazendo os cálculos de quantas estimadas décadas nos restam, na melhor das hipóteses. Aliás, o envelhecimento é exorcizado principalmente porque informa do tempo que já gastamos. Velhice é folha corrida. A fantasia de ser eterno e intacto, como os belos vampiros contemporâneos, faz a vida parecer fonte de infinitas possibilidades. A consciência da morte obriga a objetivar as escolhas: não teremos tempo de ser e ter tudo. Mas entre a ignorância do animal e o pensamento negativista dos homens há outras atitudes bem mais inspiradoras.
Convivi com amigos que, ao invés de morrer de véspera, fizeram de uma má notícia fonte de sabedoria. Há duas décadas o diagnóstico da contaminação com o vírus HIV era um prenúncio de morte iminente. Felizmente, não foi assim para todos, mesmo antes da descoberta do coquetel. Em alguns casos, a ameaça de morte os livrou das dúvidas pueris, da adolescência eterna. Agarraram-se à vida com vontade, viabilizaram escolhas profissionais, relacionamentos estáveis. Acabaram o estágio. Pressionados, se efetivaram no emprego da existência. A medicação, que lhes devolveu a imunidade, já os encontrou de bem com a vida. Woody Allen dizia que a palavra mais bela que já tinha ouvido era: “benigno”. Sua hipocondria cômica sempre nos lembra que a consciência da morte pode ajudar a repactuar com a vida. Mesmo que o fim seja certo, por que não seguir alegremente? Como meu velho cão.
(publicado na Revista Vida Simples, edição de janeiro)
“Só” uma intérprete
Nos 30 anos da morte de Elis, a lembrança de que nada se cria, tudo se interpreta.
Depois que tomava uma música para si, Elis Regina lhe emprestava a alma. Olhava o público nos olhos, parecia que um a um. Era lúdica, gorjeava travessa, abria um sorriso solar, o corpo inteiro se engajava na voz, os braços abertos em hélice. As canções ficavam marcadas a fogo com seu selo, tornavam-se dela, abafava outras versões. Jamais escreveu letra ou melodia, sua autoria era conferida pelas interpretações. Amanhã farão trinta anos de sua ausência.
Um bom ator é um intérprete de seu personagem, mas a qualidade da cena dependerá da entrega, de que o porta voz esqueça sua própria identidade e vista o papel. Minha carreira teatral sucumbiu brevemente quando, tomada de suores e tremores, não conseguia esquecer minha pobre pessoa, cujo fracasso no palco se impunha sobre as falas da peça. Tão preocupada com meu vexame só conseguia interpretar a mim mesma. Um verdadeiro intérprete entrega-se à Pomba Gira, deixa-se possuir, e assim, num contragolpe, termina apropriando-se do espírito que o toma. Se for genial não conseguiremos diferenciar a criatura do criador, o demônio da vítima que o conjurou. Assim era Elis, de quem se dizia que era “só” intérprete.
Os psicanalistas se aproximam desse espírito: ao interpretar sonhos, por exemplo, o fazemos num estado de entrega, como o dos artistas. A verdade oculta sob o enredo maluco de um relato onírico pode ser lida sob o texto daquele que o narra. O paciente lembra o que sonhou, mas em sessão faz um relato peculiar onde, sem saber, opina sobre a aventura onírica. Seu analista exercita uma escuta sem preconceitos, sem deixar-se influenciar por suas teorias. É preciso surpreender-se por uma formulação curiosa de palavras, um desencaixe no relato, um estribilho: eis a dita atenção flutuante. Assim descobre a nota dissonante do relato e a destaca do contexto, essa será a chave do enigma ou pelo menos de uma porta para entrar nele. Também o analista se relaxa e se perde de si, pois sem entrega não ocorre essa peculiar forma de escuta. Interpretações, como se vê, são sempre uma inusitada autoria, onde alguém se apropria do texto do outro para produzir a novidade.
Somos versões dos nossos antepassados, adaptadas ao nosso tempo. Seus traços nos assaltam e com eles compomos uma identidade. A originalidade possível não passa da apropriação peculiar dessa origem, que é de certa forma uma interpretação. Uma intérprete, como Elis, é autora de versões. Versões também são obras de arte, ou, como diria Borges: obras de arte são sempre “só” versões.
Um homem, muitas vidas
nunca é tarde para se reinventar
Quantas vezes deixamos de realizar algum anseio por achar que é tarde para recomeçar ou transformar nossa vida? Encruzilhadas, opções, estão sempre aparecendo, mas falta coragem. Muitas vezes sou procurada para ajudar nessas curvas de destino. A teoria me diz que é possível, mas nada como uma história verdadeira para acreditar.
Para o primogênito de um ferroviário a universidade oferecia poucas opções: médico, advogado, engenheiro. Naquela época, arquiteto e psicólogo não eram destinos plausíveis para um macho gaúcho do interior. Estudou engenharia na capital, militou em tempos de repressão. Apaixonou-se por uma mineira, companheira de política, e perseguidos tiveram que sumir. Foram parar novamente no interior. Mas suas aspirações estéticas e ideológicas contaminavam o pragmatismo do engenheiro civil. Projetou formas inéditas e com elas desenhou o campus da universidade onde leciona até hoje, o museu antropológico, casas exóticas. Era arquiteto, urbanista, educador e político. Teve filhos, netos. Basta? Para ele, não. Guloso de novidades foi analisar-se. Apaixonou-se novamente, desta vez pelo caminho aberto por Freud. Nada o impediu de voltar aos bancos da mesma universidade onde é professor, cursou psicologia, estuda psicanálise. Já tinha quase sessenta quando se formou e hoje, rumo aos setenta, tornou-se psicanalista. Provavelmente seus pacientes têm oportunidade de projetar para suas vidas formas tão criativas quanto as que ele encontrou.
Quantas vidas teve esse homem? Todas as que quis e sabe-se lá o que ainda vai inventar. Talvez, relativo à vocação, possa se aquietar, pois um psicanalista vive muitas vidas além da sua. Quem clinica é testemunha e promotor de viradas surpreendentes ou, ao contrário, de situações em que se reencontra o eixo anterior, que já parecia perdido.
Ele não é meu paciente, é meu tio e graças e ele não tenho dúvidas de que a vocação é algo muito maior que um conjunto de dons. Aprendi que o norte são desejos inesperados, inexplicáveis, e sobre a tenacidade em realiza-los.
Se para um homem cujas opções cabiam nos dedos de uma mão a vida abriu-se em leque, imagine hoje! Além das mais inusitadas profissões possíveis, o jovem sabe que as oportunidades e vivências o transformarão de modo imprevisível. Outrora poucos ousavam sonhar, mudar de rumos, descobrir novidades em si mesmo. Mas não há porque se apoquentar, podemos nos inspirar nessa e em tantas histórias assim. Para seu pai, chefe de estação, os caminhos seguiam os trilhos, não havia como nem porque descarrilhar. O filho, pioneiro de um tempo de roteiros indeterminados, descobriu o número infinito de linhas com que se pode projetar e percorrer a própria existência. Uma história e tanto, que hoje pode ser a de qualquer um.
(Publicado na Revista Vida Simples, edição de dezembro de 2011)
A última viagem do Professor
sobre Monsieur Roche e a arte de ensinar uma língua estrangeira
Banido de sua Hungria natal pelo nazismo, meu pai não cessou de viajar até a aposentadoria. Nunca se aquietou de fato, enquanto o corpo permitiu seu armário era uma mala. Quando ficou velho e teve que parar fiquei preocupada: podia ficar horas lendo, mas eu sabia que para mantê-lo bem ele teria que seguir viajando. Então o apresentei aos cursos do Professor Alexandre Roche. Ele ensinava francês no instituto que leva seu nome, mas fazia isso contando histórias, levando seus alunos para jornadas históricas e literárias. Nascido em Alexandria, de pais franceses, estudou história na França. No Brasil, ensinava a língua de Voltaire com muito mais do que verbos e pronomes. Por vários anos, ele conduziu meu pai em suas últimas viagens, que não foram menos divertidas do que as que fazia de avião.
Recebi a triste notícia de que Monsieur Roche, como o chamávamos, também partiu. Gostaria de acreditar que eles se encontraram em algum lugar e estão botando a conversa em dia. Estes dois velhos se foram deixando-nos uma lição inesquecível: um professor e um aluno nunca se aposentam, ensinar e aprender pode ser um prazer que dure a vida inteira.
Uma língua é mais que um acervo de palavras, um decantado das culturas nela se expressa, carrega sentimentos, convicções, conta histórias. Idiomas são musicais, falar a língua em que se nasceu e cresceu é reproduzir a entonação e o ritmo do discurso amoroso que nos fez ser o que somos. A língua materna é a do acalanto, dos sonhos, é a que usamos para praguejar secretamente e contar quando estamos distraídos.
Aprender uma outra língua sempre será uma traição à original. Traindo a língua mãe produzimos diferentes versões de nós mesmos, experimentamos liberdades, mas também vivemos um exílio, a alma sente-se em viagem. Quando aprendemos um idioma depois de adultos conservaremos restos de sotaque que são nosso certificado de origem. Meu pai falava sete línguas com sotaque húngaro, língua em que encontrava poucos parceiros com quem conversar após os 17 anos.
Várias vezes estrangeiro, Roche sabia disso e não escondia seus erres arrastados em português. Mas para ensinar francês, fazia o possível para que seus alunos se sentissem em casa. Como um ancestral emprestado, oferecia as histórias de uma tradição aos que nunca serão nativos nela. Falava da França, do Egito, de literatura, política. Seu ensino era acima de tudo uma experiência de hospitalidade. Monsieur Roche, desta vez partiu numa viagem sem malas. Obstinado como um gaulês, deve estar ensinando francês para os anjos.