Tchau-tchau lixinho!
Uma atitude ecológica é coisa de adultos, não importa a idade que se tenha!
Não importa o quando os apocalípticos possam resmungar: acredito que o mundo e seus habitantes vêm melhorando. Sei da contabilidade triste da destruição ambiental. Tampouco ignoro que preservar e cuidar são posturas em construção. Ainda assim constato que pudemos nos tornar mais civilizados. Em meio século de vida tive tempo de testemunhar mudanças radicais: na minha infância, o chão parecia bom lugar para largar qualquer lixo; praias, praças, jardins e lugares públicos no final do dia pareciam um campo de guerra onde jaziam milhares de detritos; fumava-se continuamente em todos os lugares, até nos hospitais, e ninguém achava nada disso estranho. Há muita gente que ainda não entendeu, mas fazer sujeira agora pega mal.
Cuidar dos próprios dejetos é uma forma de crescer, uma demonstração de autonomia para a qual estamos ficando mais aptos a cada geração. Pode parecer estranho, mas o cocô é nosso primeiro lixo e o penico é a inaugural experiência de responsabilidade com os dejetos. Mãe não é somente aquela que alimenta, é também a que limpa, que se incumbe dos restos da sua cria e é com muito pesar que abrimos mão de ser cuidados. Ter alguém que ande atrás de nós recolhendo o que deixamos atirado, dando um destino àquilo que descartamos, é um jeito de sentir-se amado, mas para os crescidos é uma infantilidade.
Não é incomum na vida dos bebês, que esperem a chegada da mamãe, um dia inteiro se necessário, para poder oferecer-lhe o presente do conteúdo de suas fraldas. Quando uma criança pequena descarta uma embalagem ou resto de comida a mão de sua mãe surge como extensão natural do gesto do filho, recolhendo aquilo que ele simplesmente deixa cair ou joga fora. Na verdade, nossos dejetos corporais são uma parte de nós que precisamos perder, mas mesmo que já não nos sirvam, nunca abrimos mão de bom grado daquilo que foi nosso.
Durante a aprendizagem do controle dos esfíncteres, é comum os bebês ficarem acenando para seu cocô, em uma despedida lúdica, antes que seja acionada a descarga e desapareça no vaso sanitário, assim fica mais fácil separar-se dele. Acontece na vida das crianças que elas desenvolvam distúrbios como a encoprese, no qual fazem suas necessidades na roupa. Esse tipo de acidente decorre da tentativa de reter seus dejetos, não entregá-los para ninguém, até que eles acabam escapando, quando não dá mais para segurar. Como se vê, nosso lixo corporal pode ser nojento, mas para nosso inconsciente maluco faz parte de nós e é difícil livrar-se dele. Uma sociedade que recicla seus dejetos atingiu pelo menos o nível dos pequenos que podem ir ao vaso sem a ajuda de um adulto. Estamos indo bem, algum dia seremos todos cidadãos adultos, deixando de acreditar que uma mão mágica de mãe vai limpar nossa sujeira.
(Publicado na Revista Vida Simples, edição especial, ecológica, de fim de ano)
Meus heróis não morreram de overdose
Sobre a foto recentemente divulgada da Presidente Dilma sendo interrogada aos 22 anos e o medo nos tempos da repressão.
A foto não me sai da cabeça. Tirada em 1970 e só recentemente divulgada, mostra a presidente Dilma Roussef. Ela estava com 22 anos, sendo interrogada por militares que escondem a face com as mãos. O olhar desafiador da jovem militante, que vinha de uma jornada de tortura, contrasta com os rostos ocultos dos inquisidores.
Em 70 eu tinha apenas 10 anos, mas a próxima década me jogou numa militância que tinha conexão com aquela imagem. Nossa principal reivindicação era a abertura política e a libertação dos presos políticos: sentíamos um compromisso com os mais velhos que, mesmo apanhando, conquistaram o pouco ar rarefeito que se respirava. Admirava sua coragem, pois lembro bem do medo que sentia.
O clima ainda era de caça às bruxas, de paranóia: agentes infiltrados nas aulas e reuniões, pancadaria nas passeatas, a maior parte dos bons professores expulsos. Na vida cotidiana da maior parte das pessoas dos anos de chumbo imperava a alienação orgulhosa de si, a mediocridade convicta, o discurso retrógrado. Os rebeldes eram exceção.
As famílias classe média tomavam seu Campari e sentiam-se prósperas. Os governantes militares davam arrepios, mas pareciam ter chegado para ficar. Sentia que nadava contra corrente, não conseguia me acomodar. Embora barulhentos, éramos poucos os chatos que discursávamos proselitismos de revolução. O despotismo se firma esbravejando certezas nas quais muitos se acomodam, aniquilando discordâncias. Uma espécie de bullying em escala gigante.
Os efeitos desse mundo de adultos, pais, governantes e mestres, vivendo alegremente graças à ditadura se fizeram sentir em várias gerações de adolescentes, hoje adultos. Sofremos as seqüelas culturais e psíquicas da tentativa de extermínio, ou do exílio de uma boa safra de pensadores, artistas, militantes. Muitos morreram, outros nunca voltaram ou desistiram. O psicanalista Winnicott dizia que o questionamento dos jovens, sua irresponsabilidade criativa, capaz de pensar soluções novas para velhos problemas, era um tesouro para qualquer sociedade. Mas o despotismo nutre-se de salgar essa terra, cortar o broto da transformação. As ditaduras são estruturadas sobre a morte dos opositores e das utopias, com elas morre a juventude.
Eu devia ter visto antes aqueles rostos ocultos, vexados. É o detalhe da foto que mais me impacta: pelo jeito, a soberba dos repressores não era tão senhora de si. Se soubesse disso, poderia ter encontrado mais coragem.
Viajando nas figurinhas
Em defesa da literatura em quadrinhos, porque imagens não valem por palavras, elas as geram, são indissociáveis como letra e música.
Na infância, além viagra quadrinhos, adorava livros ilustrados. Meus preferidos eram os que passei a ler quando maior, com uma ilustração a cada muitas páginas, que sequer eram bonitos, mais fiéis que criativos. Costumava voltar à gravura de tanto em tanto, na medida em que o texto ia acrescentando um detalhe. Por vezes, voltava só para sonhar sobre o conteúdo da obra, como se o portal para entrar na minha própria fantasia estivesse na imagem. A palavra impressa impunha seu ritmo, conduzia a imaginação, o que é bom. É melhor entrar num labirinto desses com a certeza de ter um guia e uma saída, um fim. Até hoje sou leitora lenta, mais divago do que leio. Pena, meus livros raramente são ilustrados. Saudosa, lembro das figuras como o melhor lugar para onde ir quando queria fantasiar sobre a fantasia e recorro à capa do livro, que detesto quando não contém figuras.
Adulta descobri um tesouro: as “graphic novels”, traduzidas por “romances gráficos”. São histórias longas contadas através de quadrinhos. Os exemplos mais populares são os maravilhosos “Persepolis” (Marjane Satrapi) e “Maus” (Art Spiegelman). Ao contrário da leitura breve e desatenta que por preconceito que costuma ser atribuída ao quadrinho, elas são detalhadas na construção da linguagem visual, sempre peculiar. Entrar numa delas é como desvendar uma novidade literária a cada vez, um novo estilo narrativo. Cada autor tem um traço, um modo de inserir as falas, personagens e ambientes se devotam à máxima eloqüência. Ali, página após página, reencontro os portais em que costumava me perder. O que na literatura era uma relação clandestina, aqui torna-se estável, reconhecida, é o centro das atenções. As imagens não valem por palavras. Elas não dizem, nos fazem dizer. Não discursam, põem nossa cabeça a falar. Nas novelas gráficas a literatura se aproxima do sonho.
Tudo isso para recomendar uma delas: “Asterios Polyp” (de David Mazzucchelli, Ed. Quadrinhos na Cia.). A história de um famoso arquiteto em crise, que após um incêndio que destrói seu apartamento no dia do qüinquagésimo aniversário, resolve abandonar a vida que tinha. Com o dinheiro do bolso compra uma passagem até onde esse valor possa levá-lo e lá experimenta fazer tudo diferente. É uma fantasia que já tivemos: sair para comprar uma Pepsi e nunca voltar. Fim de ano é época de promessas de mudança e de sonhar com viradas radicais. Asterios pode ser um bom cicerone nessa fantasia. Perca-se nessas imagens.
Camaleões
Sobre o “A pele que habito”, de Almodovar. O amante, o cirurgião e quão longe podemos ir ao nos transformarmos pelo olhar daqueles que nos amam.
Minha tia ligou. É uma mulher sensível, gosta de cinema e sabe o que sente. Ela me pedia algo muito simples: posso matar o Almodovar? Ponderei que não valia a pena, afinal, ele nos deu tanto. Ela estava inconformada, saíra do filme “A pele que habito” muito inquieta. Não é que o filme seja ruim, dizia, é que “ele não tinha direito de fazer aquilo conosco”. Aplaquei sua ira com um argumento baixo, nem sei se verdadeiro: graças a ele temos Antonio Banderas. Ela amoleceu.
O filme de Almodovar trabalha na vertente persuasiva do horror, parte de premissas absurdas, inaceitáveis e as faz parecer viáveis. É a magia do cinema, mas a literatura consegue o mesmo com menos orçamento, pois o combustível do encantamento é nossa empatia, fonte dos melhores efeitos especiais. Nesta obra, um cirugião plástico transforma alguém em uma criatura construída à imagem de suas obsessões. Ele aprisiona e intervém nesse ser tornando-o outra coisa, seu belo monstro. É possível que alguém torne-se algo tão diferente do que seria normalmente só porque outro quis assim? É muito mais comum do que parece.
Os pais, amigos e parentes assistem a isso rotineiramente. Eis que alguém com quem sempre convivemos se apaixona e fica irreconhecível. Por força desse amor, vai se modificando de tal forma que sua identidade mais se parece com a fantasia que compartilha com seu atual parceiro. Se for um amor construtivo isso ocorre suavemente, nos parece natural e não produz grandes resistências.
Mas o chocante nisso é nossa suscetibilidade, a maleabilidade da imagem e da identidade, como se não tivéssemos uma essência. Entregues, em breve não conseguiremos mais diferenciar o que éramos daquilo que nos tornamos por amor. Encarnamos as fantasias daqueles que amamos com assustadora facilidade. Tão plásticos e influenciáveis, quem somos afinal?
Minha tia tem razão, Almodovar não precisava ter sido tão duro, isso dói. A pele que habitamos é um órgão sensível, uma superfície modificável pelo amor. Vai tomando a forma dos seus olhos. É assim que ocorre com todos os filhos, que se constituem inspirados pelo afeto e desejos de seus pais, por isso os filhos adotivos se assemelham aos pais não biológicos. Esse fenômeno segue vida afora e a cirugia plástica, com seus poderes de transformação, algum dia acabaria herdando a sina desse feitiço e desse horror. O bisturi é o instrumento mágico que representa o fato e a fantasia de que nos transformamos pelo olhar dos outros. Se um artista é aquele que melhor desvela as fantasias, só podemos por isso agradecer ao Almodovar. Além do Banderas.
Mensagem do além
Passamos nossa vida reeditando nossa auto-biografia. (revisitando “Quase memória”, do Cony)
Até tenho medo de fantasmas, cresci entre muitos, a morte me foi apresentada muito cedo. Mas não acredito em mensagens psicografadas, cartas do além. Entendo os espíritas e as mensagens que eles dizem receber, deve ser reconfortante. Porém desconfio dessa comunicação: sempre me pareceu demasiado coerente, previsível.
Se após minha morte tivesse que mandar dizer algo para os meus seres queridos, não creio que me ocorreria algo bonito, lapidar. Como gasto boa parte da energia do meu cérebro com ninharias, provavelmente minha mensagem seria algo como: “o casaco de couro ficou na lavanderia”, “a vizinha do 301 deixou comigo o dinheiro da faxineira”, “deveria ter ligado para fulana”. Temo que quando eu partir minhas filhas lembrarão dessa minha vocação para ficar angustiada por bobagens, entre outras coisas (espero melhores) que não posso prever. Mas não adianta fazer da vida um epitáfio. Após a morte, mais que espírito serei uma personagem fabricada pela fantasia delas. Não temos controle sobre o que deixamos para trás, sempre é aparentemente menor e muito mais revelador do que gostaríamos.
Por isso, adoro o livro de Carlos Heitor Cony, chamado “Quase memória” (Companhia das Letras, 1995) uma espécie de tratado sobre o legado possível. No livro, o autor transformado em personagem recebe um inusitado embrulho. A identidade do pacote é inequívoca: sobrescritado pela letra do pai, vinha amarrado com um barbante fechado num tipo de nó do qual somente ele era capaz, alegava ter-lhe sido ensinado por um marinheiro holandês (embora também existisse a versão do escoteiro para a mesma história). A chegada do embrulho não era estranha, visto a mania constante do pai de mandar pacotes para onde quer que fosse, desde que algum conhecido, mesmo que remoto, fosse para lá. O detalhe sinistro é que o pai de Cony, morto há dez anos na ocasião da entrega, desta vez tinha providenciado uma origem particular para a encomenda: o além.
Independente do conteúdo, a presença do pacote abre as comportas da quase memória. Cony não esconde que o pai que ele nos apresenta no livro talvez seja tão fantasioso como as histórias que o próprio contava com tanto prazer. Nosso passado é um pacote fechado, composto de enigmas, que mais que fatos, contêm quase ficção. Os espíritos, caso existam, terão que se conformar: a última palavra é dada pela imaginação dos sobreviventes. Graças a esse caráter fantasioso do passado, os psicanalistas acreditam que uma história sempre pode ser revista, levando a um novo final. Passamos nossa vida reeditando nossa auto-biografia. Uma análise é isso, e, podem acreditar, re-elaborar o passado ajuda a viver um futuro melhor.
Professores de leitura
Ler é uma aprendizagem, que requer mestres. A propósito da Feira do Livro de Porto Alegre.
Mara, professora aposentada de português, sente saudade de procurar textos para seus alunos. Adorava ler com a perspectiva de indicar trechos aos jovens, para os quais cada texto abria-se em descobertas. Recorda com particular carinho do trabalho com um poema de Cecília Meireles, “O anjo da noite”, sobre o guarda noturno, hoje figura extinta. Nas palavras finais dessa poesia, que narra as belezas da noite, aparece o outro lado, seu mistério assustador: “o guarda noturno está tomando conta da noite, a vagar pelas ruas, anjo sem asas, porém armado”. A escuridão, onde cada um se entrega à inconsciência, requer providências de segurança. No lugar da vigília, a presença vigilante de um anjo da guarda que nos proteja dos precipícios interiores, afastando os monstros que moram nas trevas íntimas. Imagino o prazer da professora ao fazer reverberar essas metáforas nos alunos, para quem a literatura era ainda uma experiência quase virgem.
Num livro, chamado “Borges oral & sete noites”, encontram-se reflexões onde o escritor argentino aborda o encontro do texto com a voz. Depois de ficar cego foi obrigado a passar à narrativa oral, porém, suas conferências e referências nunca abandonam o livro como hábitat, lugar de onde emana uma presença. Era leitor apegado, voltava inúmeras vezes aos seus clássicos prediletos como quem vai a uma praça ou uma praia em busca de um estado de espírito. Mesmo sem visão comprou uma enciclopédia: “lá estavam os vinte e tantos volumes impressos numa letra gótica que não tenho condições de ler, com os mapas que não tenho condições de ver; o fato era que os livros estavam lá. Eu sentia uma espécie de gravitação amistosa que vinha deles. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, homens, temos”. Ele precisou dos olhos de outros leitores, mas aos que lhe emprestavam a voz ele acabava contando histórias sobre o que estavam lendo, guiava-os pelos labirintos imaginários de sua Biblioteca de Babel, pelas páginas do Livro de Areia. Diziam que suas aulas de literatura eram de fato de leitura.
Os livros são lugares mágicos aos quais nos entregamos sem medo, porque a voz do autor nos conduz com segurança pela trama que ele fantasiou e organizou para nós. Se tivermos sorte, como os alunos de Borges e da professora Mara, contamos com a voz de outros leitores mais experientes, que nos acompanham ou orientam, pais e mestres que partilharam suas leituras. O livro é um sonho ou um pesadelo seguro, como uma noite vigiada por um anjo. Armado, é claro, pois não somos bobos.
A ex-madrasta
sobre os efeitos da separação sobre os padrastos e madrastas que perderam contato com seus enteados.
O desencontro se deu numa loja de departamentos: sem ser vista, ela pôde observar com calma a moça que circulava entre as araras. Tentava em cada traço recordar a garotinha insone que lhe pedia muitas histórias antes de dormir. Foram tantas noites juntas lutando contra os medos do escuro. A jovem mulher não evocava em nada sua menina, sua boneca Emília depois de engolir a pílula falante. Tornara-se uma desconhecida. Depois de tantas conversas sem pé nem cabeça, hoje não imaginava nada sério para lhe dizer. Devia estar com vinte e quanto? Passara-se mais de uma década da separação e todas as fantasias de manter contato foram dolorosamente dissolvidas. No fim do casamento, parecia-lhe óbvio que manteriam um laço. Com o tempo sua incredulidade foi dando lugar à resignação: era apenas a ex-esposa do papai.
As novas configurações familiares produzem padrastos e madrastas órfãos de uma família que sentiram como sua. As razões para esses afastamentos são infinitas, mas a central é que essas relações com os enteados são vistas como um gesto romântico, que consiste em cuidar e valorizar os filhos do outro. Alguns vínculos podem se tornar fortes, porém poucos driblam o fim do casal.
Depois de uma separação os filhos mantêm uma fantasia duradoura de reunificar a família. Aliás, mesmo que já não se gostem seus pais ainda serão obrigados a se encontrar, discutir providências, finanças, partilhar festividades, resolver problemas. Já o novo casal do pai ou da mãe é visto como uma obstrução a esse fantasioso propósito de reencontro do casal parental. O amor recém chegado sempre vai acabar herdando uma culpa, que em geral não teve, pelo fim de uma família, que podia ser ruim, mas era a que originou aquele filho.
Claro que há exceções, mas frequentemente, quando chega ao fim um relacionamento onde o filho é só de um, parece ser a hora perfeita para uma espécie de vingança. O padrasto ou madrasta serão condenados ao ostracismo, numa demonstração de fidelidade aos pais, e ressurgirá o despropositado desejo de que o casal original volte a se encontrar. Numa separação, frente à partilha dos afetos, o ex-enteado tomará o partido do seu pai ou mãe, além de deixar claro aos pais originais que nunca os substituiu, apenas aceitou aquela madrasta ou padrasto como parte do pacote do novo casamento.
Em pé, na loja de departamentos, lembrava o passado quando a garota a fizera sentir-se quase uma mãe. Seu ex-marido aprovava a intensidade da relação, a mãe da menina educadamente aceitava a ajuda. Hoje, sem ao menos um nome certo para o que sente, resolveu sair de cena sem chamar a atenção.
(Publicado na Revista Vida Simples, edição de outubro de 2011)
Escutar os enlutados
sobre o tabu da morte e as consequentes dificuldades de escutar os enlutados
Eram um casal inseparável. Ambos obstetras, trouxeram centenas de bebês ao mundo. Dizem que os partos estão deixando de ser nascimentos, transformados em cirurgias eletivas, com eles não era assim. Criaram dois filhos, tiveram netos, estavam aproveitando o início de uma nova época, com menos trabalho, curtindo a sensação de dever cumprido. Subitamente ele partiu, sequer teve tempo de perceber a morte. Tranquilo, em casa, em meio a uma frase, foi traído pelo coração. Levou consigo os belos planos de (mais) vida a dois.
Nesse ano minha consulta anual atrasou-se. Não sabia o que dizer a ela, já mais amiga que médica. Nossos papos roubados costumeiramente abarrotavam sua sala de espera. Encontrei-a forte. No consultório que era de ambos, costumava se escutar a voz dele, alta e musical, agora o silêncio se fazia ouvir. Naquele dia fui disposta a inverter as coisas: a consulta era minha, mas queria que os assuntos fossem dela. Sabia que seria difícil escutar o que ela tinha para contar. Também constituo um casal no qual partilhamos o trabalho e o companheirismo dos tempos livres, por isso sempre nos vi neles. É insuportável pensar que um dos dois pode instantaneamente desaparecer. Por isso a missão de escutá-la era difícil. Temia sufocar o encontro com uma verborragia solidária mas vazia.
Descobri que sua relação com a dor foi admirável: deixou-se chorar, enfrentou a solidão, a nova imparidade. Continuou, como de hábito, sendo parteira da vida, desta vez da própria, arrancada a fórceps das suas entranhas. Mas encontrei também o que temia: a infinita solidão dos enlutados. Quando falamos com eles raramente suportamos seus depoimentos. Impomos nossa versão: relatamos o último encontro, nossa reação ao saber da perda, a falta que o falecido nos faz. Sempre temos algo a dizer, não importando se fomos próximos, íntimos ou remotos admiradores. Aliás, quando se trata da dor do outro, raramente conseguimos escutar suas queixas sem interpor nossos depoimentos: “também passei por isso e, veja bem, comigo foi pior”…
Colocar-se na cena serve para partilhar o sofrimento, ajuda na elaboração do trauma. Mas a tagarelice ansiosa que irrompe na hora das condolências é útil mesmo para abafar as palavras do enlutado. Quando estamos fora da dor do viúvo, do órfão, dos que foram privados da presença de um pai, irmão ou, o pior de tudo, um filho, não queremos chegar tão perto. Seu sofrimento assusta. O enlutado nos apavora mais do que o morto no seu caixão. Apesar de ser nossa única certeza, a morte segue tabu e o sobrevivente seu emissário.
Escravos da infantilidade
ter uma criança interior não significa ser infantilóide!
Sábado à tarde, supermercado lotado. No caixa paciência para os carrinhos abarrotados, mas dessa vez precisei de uma dose extra. À minha frente, ar aparvalhado, um jovem pai de família, forte e normal, esperava imóvel seus produtos passarem no caixa e serem empacotados. Em pé, olhar perdido, boca entreaberta, fitava o vazio, só faltava o fio de baba. Lembrava aquelas crianças que são carregadas junto com a família para um lugar que não lhes interessa, distraídas, alheias. Nesse supermercado existem empacotadores prestativos, mas eles não davam conta. Não custa ajudar, ir organizando, embalando junto, cooperar.
No comportamento passivo do meu companheiro de caixa, impossível não evocar a figura do nobre, sendo vestido, banhado, alimentado e conduzido nos braços de seus servos ou escravos, um eterno bebê. Quanto mais evoluídos nos tornamos, caminhamos em direção à autonomia, prescindimos de serviçais. É assim com as crianças, que aprendem a cuidar de si mesmas cada vez melhor. Mas será que me comporto diferente quando consigo pagar um hotel mais estrelado? Quem não curte café na cama macia, toalhas limpas, massagem, chofer? O que é um restaurante, senão ficar sentado enquanto o solícito garçom se dedica a atender nossos caprichos? São ocasiões em que voltamos no tempo, nos quais amar é maternar, cuidar. À vezes, ser independentes exaure, queremos algum mimo.
Os trabalhos associados aos cuidados maternos primários, nos quais adultos adquirem privilégios de crianças, sempre foram desvalorizados. Mulheres, pessoas socialmente exiladas, escravos, ocuparam os bastidores da nossa vergonha. Na verdade, aquele que abre mão da autonomia também se abstém da liberdade que ela proporciona, da intimidade, da privacidade. Por isso relega-se ao ostracismo aos que fazem parte dela. Mães, pobres e escravos tornaram-se ralé da vida pública, escondidos no armário de nossa carência afetiva, associados ao medo de ficar sozinhos. A infantilidade é um segredo.
Entregar-se nos braços de alguma comodidade é uma delícia, mas como exceção, descanso de guerreiro, conquista. É gostoso, um luxo que só é tal se não for um hábito. Mas no dia a dia, a dependência é uma forma de alienação, uma existência empobrecida. Que dizer de alguém, aparentemente crescido, que precisa se fazer adotar pelo primeiro empacotador franzino que encontra pela frente? Por favor, supermercado não é Spa, há adultos na fila!
Fézinha
Pequenas superstições, parecem absurdas, mas são reveladoras.
Viver é perigoso e mesmo depois de crescidos ainda nos sentimos desamparados frente às arbitrariedades do destino. Por isso, restos de um pensamento mágico infantil ajudam a recuperar um poder que sempre nos escapa: o de prever catástrofes para melhor evitá-las. De natureza atéia e incrédula, não conto com uma idéia qualquer de conectar-se com algo maior. Posso até tomar milhares de cuidados, mas não me iludo: há um forte elemento de imprevisibilidade, a morte e o sofrimento podem simplesmente aparecer quando bem entenderem. Tomada nessa ideia, e sem perceber, criei para mim uma brincadeira, um pequeno oráculo portátil, que me ajuda a diminuir a sensação de impotência. Acredite se quiser: são os sachês de adoçante.
Uso uma marca de adoçante em pó que vem em doses individuais, em lindos envelopes coloridos. O ritual é o seguinte: no café da manhã devo pegar um envelope na caixinha sem olhar (a fé é cega) e sua cor é prognóstico do dia que me espera. Há cinco cores: roxo, azul, verde, amarelo e cinza. Sem pensar fui montando um sistema no qual tendo ao bom prognóstico: os envelopes roxos significam um dia “excelente”, todos meus desejos serão viabilizados, não seremos vítima de acidente ou violência, nem uma doença se revelará ou matará qualquer pessoa da minha família. Já os azuis e verdes, nessa ordem, são dias respectivamente “muito bom” e “bom”. O amarelo significa um prognóstico “regular” e somente o cinza revela necessidade de cautela, perigo no ar, frustrações ou tristeza à vista. Como se pode observar, em cinco possibilidades só uma é ruim. De posse desse pequeno prognóstico, junto mais coragem matutina para enfrentar a assustadora jornada diária.
Embora não fosse consciente, sei que a brincadeira não é sem sentido: pertenço a uma família de diabéticos, meu querido avô morreu antes de ficar velho, recusando-se a qualquer abstinência alimentar. Para mim o açúcar era um grande vilão. Sem perceber, associei minha brincadeira mágica a uma providência: substituir o açúcar por adoçante. Não se tratava de uma aposta cega na sorte! Talvez no fundo ela não exista. Toda fé, superstição ou crença inclui seus ritos. Reverenciam-se homens santos, reza-se, fazem-se oferendas, pensamentos positivos, rituais. Sempre é uma revolta ativa contra a passividade à qual a morte nos condena. Ela vem quando quer, mas não morremos sem lutar. Inconscientemente, elegi o açúcar como um vilão que podia enfrentar. Graças a isso pude desenvolver esse otimismo infundado, onde de cinco possibilidades, tenho quatro bons prognósticos. Quem dera a vida fosse assim, passível de controle! Ainda bem que algo da magia da infância sobrevive para que possamos brincar de esperança, nem que se tenha que recorrer a pequenos truques! (revista Vida Simples, edição de setembro 2011)