Mafalda quarentona
Sobre os 40 anos de publicação da personagem de Quino
Mafalda é uma menina petulante, fonte inesgotável de perguntas irrespondíveis e observações constrangedoras, um pesadelo para seus adultos. Personagem de tiras humorísticas de jornal, publicadas na Argentina desde 29 de setembro de 1964 até 1973, ela sobreviveu pelas três décadas seguintes graças às compilações em pequenos livros, a bordo dos quais chegou às gerações posteriores. Filha do humor inclemente de Quino, ela se permite questionar tudo. Apesar de seus cinco ou seis anos de vida, não pára de pensar nos descaminhos da humanidade, na beligerância dos povos, no poder dos militares (os golpes pipocavam), nos problemas do terceiro mundo e na podridão dos políticos de plantão. Ela brinca de governo, escuta notícias no rádio e filosofa sobre um globo terrestre, que é seu brinquedo predileto, tudo muito engajado. Mas Mafalda é tudo o que na verdade as crianças não são.
Infanticídio
Sobre o desenho animado Happy Tree Friends
Pense em bichinhos muito fofinhos, eles olham para você com olhos redondos e arregalados e fazem onomatopéias próprias dos bebês. Sem motivo para desconfiar, pois seu maior atributo é a inocência, eles se empenham em tarefas pueris, como brincar, comer guloseimas, fazer piqueniques, tomar limonada ou dançar. Mas o mundo é cruel e resistir é inútil, por isso eles invariavelmente terminam massacrados, com requintes de sadismo e nojeira. A cena sempre inicia em cores pastéis e encerra vermelha, com vísceras derramadas e globos oculares correndo soltos das órbitas. O que estou descrevendo está disponível na Internet, veja o site: www.happytreefriends.com. Acesse, se tiver estômago. Alguns fãs compram os DVDs, em poucos países é possível ver episódios na TV, mas são pesados até para a estética sanguinária corrente.
Porto Alegre tem Mu-Mu
Sobre a cidade
Conheci o Brasil com um olhar infantil e estrangeiro (nasci uruguaia), cheguei primeiro na cidade de São Paulo, que me apresentou à poluição e à programação infantil da TV (a qual muito me ajudou na aquisição dessa língua impronunciável). Quando mudamos para Porto Alegre, percorremos em nosso fusca turquesa os mais de mil quilômetros que nos separavam do novo lar. No caminho, como recém havia aprendido a ler, chamaram minha atenção as placas que anunciavam cada cidade: “cidade tal tem Mu-Mu”. Para os que não sabem, Mu-Mu é uma marca de doce de leite. Pois bem, eu não sabia, então supus, com o tipo de pensamento poeticamente incoerente que as crianças têm, que Mu-Mu era uma espécie de qualidade abstrata, de elogio à essência de uma cidade. Traduzindo para uma linguagem adulta, o Mu-Mu de uma cidade seria onde o melhor de seu espírito se revelaria.
A infância minimizada
Sobre o filme Cidade de Deus
“Eu fumo, eu cheiro, já matei, já roubei, sou sujeito homem”, é a frase do personagem Filé-Com-Fritas no filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. Quando profere a frase tem aquela idade indefinida entre dez e dezessete, a dos denominados “menores”. O filme é narrado por Busca-Pé, o filho do peixeiro que quer ser fotógrafo.
A impostora
Sobre uma falsa sobrevivente do 11 de setembro
A mais famosa sobrevivente da tragédia do 11 de setembro não existe: era Tania Head, que chegou a ser presidente da associação de sobreviventes. Alegava ter fugido da torre sul enquanto seu noivo David morria na torre norte. David tampouco existia.
Violência de faz de conta
Sobre o livro Brincando de Matar Monstros
Já foi estudado um fato interessante: quando a cultura americana edulcorou a produção para as crianças, criou histórias edificantes e pueris, elas não tiveram dúvidas, migraram em massa para os desenhos animados japoneses. As crianças foram em busca do que necessitavam para elaborar suas fantasias agressivas. Nos últimos anos muito se pesquisou sobre o efeito do mundo virtual no mundo real da criança. Nenhuma correlação foi encontrada, a gênese da violência está em outro lugar. Mas não adiantaram os estudos, o senso comum comprou a idéia de que ali está a semente do mal. Parece piada, atribuir às fantasias para crianças, com seu sangue de mentira, a origem da violência em que estamos mergulhados.
A família reinventada
Sobre o livro A Família em Desordem de Elisabeth Roudinesco
Uma estrutura familiar consiste em um vínculo sexual e afetivo oficializado (civil e ou religioso), na união de dois seres humanos de sexos diferentes, que gera e cria uma ou mais crianças. Certo? Errado! A estrutura familiar se baseia numa relação nem sempre oficializada e quando isso ocorre cumpre mais a função de celebração dum amor.
Pequenas paixões
Sobre coleções e artes plásticas
Um colecionador é um sujeito invejável: ele sempre sabe o que quer. Pobres dos que não tem uma paixão tão precisa, andam a deriva, sem saber o que buscar. Uma variante qualquer que decore seu objeto de desejo é o suficiente para que ele entusiasticamente o incorpore a uma série interminável de pequenas ou grandes possessões. Ele não está preocupado em porque se dedicar a caixinhas de fósforo, sapos ou corujas…Reivindica-se ligado a estes objetos e os classifica, expõe, busca. Estas obsessões o representam. Conhecer uma coleção é aprender a perceber variáveis num universo recém revelado. Por exemplo, antes da visita não sabíamos que poderia haver tantos tipos de pingüins de geladeira e, principalmente, que eles deveriam ser preservados da extinção.
Calçadas da infâmia
Sobre o trabalho artístico Stolpersteine em homenagem às vítimas do holocausto
A instalação artística de Gunter Demnig começou a se espalhar pelas ruas alemãs há quase uma década. O nome deste trabalho é Stolpersteine, traduzível por “pedras nas quais se tropeça”. Em frente a casas comuns, em ruas normais, os pedestres caminham sobre pedras cobertas com placas metálicas onde estão escritos os nomes de antigos moradores daquelas residências. Os dizeres são simples, por exemplo: “aqui vivia Olga Wolf, nasc. 1910, deportada em 1941, Riga, assassinada”, “aqui vivia Dan Wolf, nasc. 1939, deportado em 1941, Riga, assassinado”.
Campeões
Cinema infantil para adultos
Sobre Shrek 2
Na sessão legendada à qual compareci para ver Shrek 2, praticamente não havia crianças presentes. Poderá se argumentar que é obvio que elas foram ver o filme dublado, o que é correto, mas o detalhe é que o cinema estava lotado (na dúvida, verifique a média de idade do público de Harry Potter). O que estávamos fazendo lá? Há algo no formato do entretenimento infantil que nos atrai. O que será?