Decodificando a culpa masculina
Sobre o filme O Codigo da Vinci
Cenas de correrias e empolgações à parte, o popular livro de Dan Brown que está chegando aos cinemas parece demonstrar que o cinema e a literatura podem aproximar-se mais do que acreditávamos: Código da Vinci já é um filme impresso. O que não é uma censura. Nos dias em que andei com ele em baixo do braço, não houve fila ou sala de espera que me irritasse, estava imersa nessa aventura de bolso.
Freud implica
Implica sobre os 150 anos do nascimento de Freud
No princípio, a psicanálise parecia uma aventura de horror e exorcismo. Quando Freud era um aprendiz de feiticeiro, a histeria tinha ares de espetáculo e obscurantismo. Na França, o jovem médico austríaco observou como o Dr. Charcot era capaz de produzir ataques histéricos em seus pacientes com seu magnetismo pessoal. Na mesma temporada, viu que sugestão e hipnose tinham o poder debelar essas irrupções de patologia tão vistosas, com suas paralisias, ataques e visões. Eram os tempos de O Médico e o Monstro (R.L.Stevenson,1886). Já não ignorávamos que havia algo dentro da nossa alma que conspirava contra a moral e os bons costumes, mas parecia um conteúdo a ser eliminado.
O tele-orfanato nosso de cada dia
Texto sobre telenovelas infantis e família contemporânea
Ser brasileiro, habitante da segunda metade do século XX implica em ter em sua memória, entreverado com as lembranças infantis, os hinos e músicas, brinquedos, roupas e tantas outras coisas, um certo acervo de lembranças ligadas a telenovelas, cada época teve um tipo de novela. As lembranças infantis são coalhadas de cenas pinçadas de novelas que os adultos em volta assistiam, incluindo o telespectador criança como participante, seja de roubadinha ou não.
POBRE MENINA RICA
Sobre o assassinato dos pais por Suzane Von Richthofen
A história de Suzane Richthofen tem todos os ingredientes dum grande drama: bonita, mimada, universitária, poliglota, pais ricos com sobrenome nobre, mas namorou um rapaz pobre, inculto e envolvido com drogas. Dois mundos se encontraram num resultado funesto. Num país de baixa mobilidade social, não a perdoamos por ter tido as melhores chances e fazer tão feio. Sua história abala nossa fé na educação das crianças. Infelizmente, a fartura de recursos não impede a pobreza de espírito.
Vida besta
Sobre o filme queime depois de ler
O título do último filme dirigido por Joel e Ethan Coen, “Queime depois de ler”, é uma expressão que pode estar no fim de uma importante mensagem secreta, mas também significa que não vale a pena guardar. Opto pela primeira.
Os ovos
Sobre a arte de envelhecer, em 15/04/2006
Quando a conheci ela tinha 77 anos e problemas de 47, já vão uns dez anos. Dilemas de amor e conflitos com a mãe envelhecida. Vou chamá-la de dona Irma. Semana passada encontrei sua neta e soube que continua lúcida, curiosa, conectada. Senti saudades, foi minha paciente, mas me ensinou muita coisa.
Fofoqueiros da aldeia global
Sobre os paparazzis, a modelo e as ridículas famas instantâneas
Veio por e-mail: a imagem é de um pacotinho de massa instantânea, onde se lê: “Miojo Cica, sabor galinha, e só esquentar na água e comer”. Para quem passou os últimos dias em Marte, a “piada” é a propósito da ampla divulgação de um vídeo da transa da modelo Daniela Cicarelli com seu namorado numa praia, captada por um paparazzi.
O show da banalidade
Sobre vários tipos de reality shows
Mal nos recuperamos de mais um Big Brother, com suas notícias constantes e desimportantes sobre vidas insignificantes, em tramas tão medíocres que fazem as telenovelas parecerem obra de Proust. Mas os reality shows estão longe de restringir-se ás disputas pelo prêmio milionário da audiência, por ser o melhor espécime do zôo global. Entre outras, há uma modalidade muito em voga na televisão britânica, (passa em nossos canais a cabo) nas quais as personagens são gente comum, mas as recompensas não são monetárias, nem o efeito é de celebridade instantânea.
Pinóquio no divã
Paródia do que aconteceria se o boneco Pinóquio se analisasse
Nada nele o diferenciava de outro rapaz qualquer, talvez, analisando sua imagem a posteriori, poderíamos dizer que ele era meio acastanhado. Mas isso pode ser uma auto-sugestão… De qualquer forma era mais um no consultório desfilando suas dores.
Apesar de seu nome, Pinóquio, tema dele não eram as mentiras, e sim inúmeras queixas sobre sua criação. Dizia que a Fada dominava sua mente. Fora como uma mãe para ele, acostumou-se a chamá-la de Fada Azul. Ela era genial nos disfarces, primeiro apresentava-se como uma menina de cabelos azuis, depois, quando ele lhe pediu ajuda, fingiu-se de morta. Desaparecia e retornava quando queria. E quando vinha era para submetê-lo à sua vontade. Sim, ele se admitia cheio de caprichos, mas ela recorria a ardis, ameaçava-o com a morte se não seguisse seus conselhos. A Fada conhecia formas inusitadas de impressionar sua imaginação infantil.
– Ela ficava desaparecendo para que eu a desejasse ainda mais e depois, no calor do retorno ansiado, conseguia de mim todas as promessas de ser diferente. Ninguém me manipulou tão bem e tanto como ela. Se eu a conhecesse como hoje, certamente a teria atirado contra a parede, como fiz com o Grilo Falante.
Sim, e também havia o Grilo, ele falava muito, conselhos lições, sermões.
– Eu tinha uma vida novinha em folha pela frente e ele já a estragava tudo, sempre me castrando, me agourando, me recriminando! Quer saber?A pior ditadura é a da virtude!
Mas o que Pinóquio fazia de tão errado? Bem, eram problemas de disciplina, ele era vacilante em suas determinações. Os outros pareciam-lhe ter escolhido um caminho, que fosse bom ou mau, era o deles… Já ele, sempre sem rumo, prometia e não cumpria. Dizia: da próxima vez serei mais forte, não cairei na conversa dos meus amigos, serei mais persistente em meus propósitos… Além disso, Pinóquio era atormentado pela culpa de ter desperdiçado os melhores esforços de seu pai, um artesão chamado Gepetto.
Ah, mas o pai também o manipulava, ah sim, não se pode negar! Quando ele nasceu, não teve vergonha em declarar que o queria para apresentá-lo em público e usá-lo para ganhar dinheiro. Seria uma marionete que garantiria suas rendas na velhice. Não custou muito para esse pobre velho descobrir que, para ser um pai digno de ser cuidado pelo filho, era preciso passar bem mais trabalho do que cinzelando nele suas vontades.
Pinóquio diz que até prometeu, mas foi sem intenção de mentir! Se ele disse ao pai que seria diferente dos outros rapazes, que aprenderia um ofício e seria seu consolo e sustento na velhice é porque o amava e tencionava mesmo isso. Tanto é que no fim das contas até conseguiu. Claro que quase lhe custou a vida várias vezes: como nas entranhas do tubarão, por exemplo.
-Sim fui cabeçudo e turrão – diz ele– sempre quis fazer as coisas a meu modo, sem obedecer àqueles que me quiseram bem e que tinham mil vezes mais juízo do que eu!
Tantas vezes foi perdoado, afinal conseguiu ficar bem com seus pais e com o mundo. Do que se queixa agora Pinóquio? Esse nome… Pinóquio, sinônimo de mentiroso, parece que já não é mais seu. Hoje ninguém duvida da sua boa reputação, todos sabem o quanto lhe custou desfazer-se dos problemas que teve por causa das suas lorotas e sua indisciplina. Como da vez que abandonou tudo para ir para a País dos Brinquedos (não foi fácil deixar de ser burro), depois de mais uma vez ter jurado que seria um bom menino. Agora seus negócios vão bem, não tem do que se queixar. Mas é o jeito como se sente depois de adulto que lhe parece um problema, agora que é um homem de bem acha-se menos autêntico do que quando era um boneco trapalhão. Mentiu muito, mas ousou. Quando dizia algo, ele próprio era o primeiro a acreditar! E ele era impulsivo também para as coisas boas, havia belos gestos em sua história, era corajoso… nem sempre, mas sempre que pôde.
–Sentía-me mais vivo sendo o antigo Pinóquio. O mundo me melhorou para pior.
A Fada disse uma vez que haviam dois tipos de mentira: as que têm o nariz comprido e as de pernas curtas. Ele praticava as primeiras, do tipo óbvio, que esconde alguma coisa e ingenuamente revela a verdade: dizia ter perdido um dinheiro que não desejava entregar, mentia que ia tomar o remédio se lhe dessem açúcar antes, mas só comia o açúcar. Eram pequenas trapaças, visando negociar suas vontades com as imposições que sofria. Mesmo jovem e inexperiente, sabia que devia resistir a tantas ordens.
– Eu já dizia que somos azarados, nós pobres meninos, todo mundo nos repreende, todo mundo nos censura, todos nos dão conselhos (e olha que eu nem era um menino ainda!)
Com o tempo, foi praticando as mentiras de pernas curtas, do tipo que promete mas não tem pernas para chegar lá. Quando pequeno, muitas vezes foi contrariado, desmascarado, mas sempre perdoado. Mas agora, ninguém duvidava dele! Agora que parou de mentir, sente-se uma fraude. Detesta o trabalho, continua sonhando com um mundo de ócio e diversão, desconfia das mulheres, todas lhe parecem excessivamente maternais, por isso finge entregar-se, mas está sempre espreitando seus disfarces.
Seu problema? Quer livrar-se dessa aura de confiança. Nunca se sentiu tão mentiroso. Agora que ele desconfia de todos, todos acreditam nele, sempre esperando dele o melhor: a retidão, a verdade, o exemplo de amor aos pais, a perfeição…
– Não agüento mais esse peso. Esse negócio de ser um bom menino, tem cura, doutor?
Publicado na Revista Argumento, número 13
O Causo dos Quatro Negros
Sobre o livro de Luis Augusto Fischer
Aqui nos pagos estamos acostumados ao Luís Augusto Fischer como professor de literatura, ensaísta e autor de dicionários, tão precisos quanto bem humorados. Pois resulta que de tanto lidar com o jeito particular que temos de torcer as palavras para a nossa sardinha, sejam as regionais, as estrangeiras ou os ditos espirituosos, aconteceu dele usar tudo isso para contar uma história, várias aliás, em sua primeira experiência com a narrativa longa. Trata-se de Quatro Negros (Ed. L&PM).