Fazes-me falta
Sobre o livro de Inês Pedrosa
O amor e a amizade são territórios de fronteiras sutis. As amizades juvenis são a primeira forma (em geral homossexual) de amar, amizades são amores que não vão para a cama, paixões são relações que se recusam a ser amistosas. Escrito pela portuguesa Inês Pedrosa, “Fazes-me falta” (Ed. Planeta 2003), é um atípico romance sobre o quanto de amor há na amizade e vice-versa. O livro é o discurso paralelo de dois amigos que vão alternadamente falando sobre sua relação, com o detalhe que ela está morta e ele não consegue esquecê-la. Embora se amassem, optaram pela amizade, pela abstinência do sexo. Diz ela: “Acreditei que na amizade encontraria o sabor mítico da correspondência absoluta, a felicidade sincrônica com que o amor apenas brinca.” E ele: “Nós não podíamos prescindir um do outro. Não podíamos entrar no infinito jogo do corpo.”
Chihiro no país das maravilhas
Sobre o filme A Viagem de Chihiro
Para todos os adultos e crianças que quiserem passar duas horas na terra de Alice, vale a pena comprar um ticket para “A viagem de Chihiro”. A história é simples mas desencadeia um belo e impressionante desfile de personagens estranhos à cultura ocidental.
Um investimento de risco
Sobre o investimento nos filhos
Já dizia Vinícius de Moraes: “filhos, melhor não tê-los, mas se não tê-los, como sabê-los?” Mas o que ficamos sabendo quando criamos outro ser humano? A resposta é: mais de nós mesmos. Freud dizia que os filhos são uma extensão do narcisismo dos pais, ou seja, eles são vistos como o que gostaríamos de ser e damos a eles o que gostaríamos de ter. Há pouco altruísmo na parentalidade. É indiscutível que se pode amar um filho mais que tudo e que sua perda é a mais irreparável. Um amor egoísta não deixa de ser amor. Porém, graças aos céus os filhos são demasiado humanos e, como tais, são um investimento imprevisível, arriscado e surpreendente.
O nada raro prazer de se matar
Sobre o vício de fumar
Já dizia Mário Quintana: “Fumar é uma forma disfarçada de suspirar”. O suspiro é uma expressão aérea da angústia, do alívio, é o escapamento de uma quantidade de ar e sentimentos maior do que podemos comportar. Nada estranho que tenha ocorrido aos homens preencher de fumaça o entra e sai de ar, arrancar um prazer deste automatismo do corpo. Para nós nada é natural, tudo fica impregnado de significados, contaminado de emoções. Quando estamos com problemas, ficamos sem fome ou comemos a casa e isto não coincide com as necessidades de reposição de energia do corpo. Glamourizamos a alimentação com maravilhas para ver, cheirar e saborear. Fumar é comer iguarias com os pulmões. O tabaco é como um ansiolítico curinga, ele se coloca no lugar de quaisquer incógnitas e instabilidades. Se não sabemos o que falta, deve ser o cigarro. Ao fumar, sentimos que era isto mesmo, se novamente a angústia vier, o alívio está ao alcance da mão. Além da química da nicotina, há o social: fumar conduz ao sucesso, empresta um certo Charm.
Tarde demais
Sobre o filme O Filho da Noiva
O assunto desta coluna chega tarde demais. O filme argentino, O filho da noiva, já é veterano nos cinemas, mas se você o perdeu ganha uma chance agora nas locadoras. A história é simples: o estressado Rafael descobre que o tempo dos vínculos humanos não cabe no seu ritmo agitado de vida. Um infarto obriga-o a parar de trabalhar e abre espaço para o drama de seus pais, Norma e Nino, um casal de velhos marcado pelo mal de Alzheimer dela e pelo romantismo incurável dele. Nino está dedicado a realizar um antigo sonho de Norma: casar na igreja. Tarde demais, a noiva já não tem condições de entender a cerimônia. Rafael, o filho da noiva, é despertado para sua própria vida pela obstinação de seu pai em realizar este casamento, objetivamente absurdo, mas subjetivamente necessário. Como todos nós, ele tem diálogos pendentes os pais. Por mais que a vida os tenha distanciado, um filho precisa mostrar-lhes que valeu a pena nascer , que foi digno das expectativas ou até que não fracassou como eles temiam. Para Norma ele não passava de um pelotudo, por isso ele trabalhava tanto para provar o contrário, empenhado em tornar o restaurante da família num negócio rentável. Tarde demais, ela já não podia valorizar a sua vitória.
O tabu do compromisso
Sobre o livro de quadrinhos Kiki de Adão Iturrusgarai
Kiki deve ter por volta de quinze anos e só pensa naquilo: é inexperiente no sexo, tem a língua solta, fica com uns meninos meio bobos, fantasia com casamento e maternidade e quer se livrar da virgindade do modo mais rápido e prático possível. Ela nasceu do traço do cartunista Adão Iturrusgarai, cresceu nas tiras publicadas na revista Capricho o hoje protagoniza uma compilação chamada “Kiki: a primeira vez” (Ed. Devir). As adolescentes como ela vivem de fato uma liberdade que para suas avós era utópica. Agora a perda da virgindade é uma opção pessoal, pode não ser orgástica, mas raramente é traumática, não é preciso contas à sociedade sobre este momento, sequer aos seus pais (a quem no máximo manterá informados) e seu hímen tampouco é prêmio para homem nenhum. Além da iniciação sexual, o assunto de Kiki é o desafio de lidar com o medo de se envolver e com a total ausência de romantismo das relações.
Uma mulher de verdade
Sobre o filme Simone
Pigmalião esculpiu em mármore a mulher dos seus sonhos, hoje ela certamente seria concebida em imagem digital. Quando uma história insiste cabe-nos observar com cuidado a especificidade de cada versão. É o caso desta alusão cinematográfica à clássica história grega Pigmalião que é o filme Simone. Para quem não viu, Simone é na verdade “Simulation One”, uma personagem construída em um programa de computador, capaz de mixar todas as melhores características da beleza e da alma feminina. Um diretor fracassado, derrotado pela dificuldade de lidar com as estrelas cinematográficas, que sobrepunham seus caprichos narcisistas ao seu trabalho de atriz, cria esta obediente e perfeita atriz virtual, mas oculta do público sua inexistência real. O filme vale mais pela idéia inicial, pela referência ao mito, do que pela produção em si. Na narrativa clássica, a estátua ganha vida após seu escultor se apaixonar por ela e pedir a Vênus para casar com uma mulher que fosse à imagem e semelhança de sua criação, comovida por este amor a deusa opta por dar vida à pedra. Já Simone não é para uso pessoal, esta mulher obra prima é uma atriz, concebida em sua perfeição para o público, que a coroa com uma enlouquecida tietagem. A criatura ganha vida no amor dos fãs, num feitiço que foge ao controle do feiticeiro e este se torna prisioneiro da ilusão que infundiu.
O mito do amor materno
A maternidade vista de um ponto de vista histórico
O leitor deve estar empanturrado de tanta glicose derramada nos últimos dias em nome da glorificação da mãe. Sem desmerecer, mas minimizando a dimensão desta exaltação da progenitora, gostaria de propor um pouco de leitura como antídoto.
Frida Kahlo é pop
É pop sobre a pintora Frida, por ocasião do filme homônimo
Esta pintora mexicana, cuja biografia é narrada num recente filme estrelado por Salma Hayek, tem todos os motivos para ser objeto desta espécie de canonização artística. Aliás dizem que as mexicanas mais famosas e reverenciadas mundo afora, são Frida e a virgem de Guadalupe. Um terço de suas pinturas é constituído de auto-retratos, em sua forma geral elas parecem com pinturas votivas, coloridas e decoradas conforme a tradição do folclore mexicano. Ali estão os órgãos expostos e o corpo despedaçado desta mulher que teve poliomielite, sofreu um acidente gravíssimo aos 18, foi submetida a 32 cirurgias e sofreu vários abortos involuntários. Em suas pinturas também estão seus amores: seu marido, o muralista Diego Rivera, o revolucionário Leon Trotsky, as mulheres e seu país. Contrariando os clichês, que pudessem ver no ocasional homossexualismo e num travestismo brincalhão alguma dúvida a respeito da feminilidade de Frida, ela mostrou que nem todas que parecem femininas sabem sê-lo e vice versa.
Psicopreconceito
Sobre os preconceitos pseudo psicológicos e religiosos a respeito da homossexualidade
A Igreja Católica emite suas opiniões e ninguém é obrigado a leva-las em conta, fora seus fiéis. Em um glossário recém divulgado (Lexicon – Um dicionário Católico, coordenado pelo cardeal Alfonso Trujillo) o Vaticano qualificou o homossexualismo como um problema oriundo de um “conflito psicológico não-resolvido”, afirmando que as nações que legislaram em prol do reconhecimento civil de uniões homossexuais “negam um problema psicológico que joga a homossexualidade contra o tecido social”. Não me oporia a que uma religião fizesse exposição pública de seus preconceitos e de sua rigidez moral, faz parte, o que me move a opinar é o argumento psicológico que é utilizado para fundamentar a condenação moral de uma forma de amar.