Vida de cão
Sobre o filme Dogville
Dogville é um filme absolutamente cruel. Ele é cruel com as ilusões que vamos buscar no cinema, aniquilante com o desejo de ver alguma qualidade humana nas mentes simples. Ao longo de três horas, uma protagonista que evoca o trabalho de Cinderela, as intenções de Polyana, os revezes de David Copperfield e tantos outros emblemáticos altruístas sofredores, vive seu martírio sem nenhum dos paliativos que estes encontraram. Nada de bom se revela na alma humana ali, os pálidos momentos de harmonia ou esperança só servem para aumentar a altura do tombo. O diretor Lars Von Trier rompe o pacto histórico do cinema com seu público de garantir alguma forma de catarse.
O intransmissível da experiência
Sobre o filme O Senhor dos Anéis, em 07/01/2004
O Senhor dos Anéis é a prova de que fantasia, efeitos especiais e lutas só valem a pena se forem amarrados numa trama genuinamente humana. Apesar de ambientada num território imaginário, a Terra Média, e de envolver povos fictícios como elfos, feiticeiros, hobbits, anões e árvores falantes, a história de Tolkien é o relato feito por um homem que lutou numa guerra de verdade, como seus heróis.
A comilança
Sobre os banquetes natalinos
Desde que o homem é homem comunga em torno do alimento, mas não basta que comamos juntos, a refeição deve oferecer uma fartura que garanta a saciedade e deve haver sobra. Uma boa mesa de celebração deve causar nos comensais a sensação de que eles são muito poucos para dar conta da quantidade e ou variedade oferecida. É esperado que os convivas aleguem estar mais que satisfeitos, devem se declarar totalmente incapazes de ingerir um bocado a mais que seja.
Os Duelistas do Yu-Gi-Oh!
Sobre o jogo e desenho infantil 10/12/2003
Crianças brincam de fazer ativamente aquilo que sofrem passivamente, seja bom ou ruim. Visto isso, cabe a pergunta do que se encena quando travam batalhas, à moda das rinhas de galo, com criaturas virtuais provenientes de um baralho animado. Em vez de valetes e damas, as cartas são de dragões, feiticeiros, guerreiros, bestas, demônios, fadas e muito mais, num total de mais de mil variantes. Estamos falando do Yu-Gi-Oh!, jogo e desenho animado japonês, no qual crianças se enfrentam em duelos e competições através da mestria em colocar a criatura adequada na hora certa. Antes deste, os desenhos animados Pokemon e Digimon, já desenvolveram trama parecida, porém os monstrinhos que duelam são de estimação. São lutas por prestígio, tal como as que se travam em qualquer local de trabalho ou estudo. No Yu-Gi-Oh, medem seus poderes em pontos e capacidades da criatura, decidem numa arena de quem é a vitória e o perdedor vai para o cemitério. O criador do jogo, Kasuki Takashi, desenvolveu este híbrido entre a impessoalidade do videogame e o socializante jogo de mesa, por considerar “muito mais emocionante lutar contra um humano enquanto estás olhando nos seus olhos, do que contra uma máquina”. Já que temos que duelar, que seja corpo a corpo.
A casa das pessoas estranhas
Sobre uma exposição de artes plásticas no Hospital Psiquiátrico São Pedro
A Bienal, nas performances realizadas nas antigas dependências do Hospital Psiquiátrico São Pedro, levou muita gente a um lugar que preferimos desconhecer. A ocupação daqueles prédios centenários pela intervenção artística foi uma boa idéia mas nos deixou da loucura a pior imagem. As performances sentiram-se convocadas a dialogar com os fantasmas que passeiam nas dependências do velho prédio, porém estes eram os dos pacientes cronificados pela reclusão, não necessariamente dos loucos.
Não me siga, também estou perdido
Sobre o filme Aos Treze
Sempre achei divertido encontrar este adesivo para carros com os dizeres acima e a frase é a tônica de um filme em cartaz que vale a pena prestigiar. É uma história sobre adolescentes, mas gostaria que fosse visto prestando atenção nos adultos da trama, que parecem ter um adesivo destes colado na testa.
Homens na cozinha
Sobre o livro Histórias de Cama e Mesa, de Pinheiro Machado
Homem na cozinha é chef ou gourmet, mulher é cozinheira. Certo? Errado.
O limite é a melhor herança
Sobre educação como forma de amor parental
É merecido o sucesso da campanha publicitária contra os maus tratos sofridos pelas crianças intitulada: “O amor é a melhor herança”. Seu mérito encontra-se na escolha de um grupo de garotos-propaganda muito peculiares: o Bicho-Papão, a Bruxa, a Mula-sem-Cabeça, o Diabo e o Boi-da-Cara-Preta. Num desenho animado, este time de monstros clássicos aparece cuidando bem dos seus filhos, acompanhados de um jingle no qual se diz que a verdadeira monstruosidade está naqueles que são violentos com os pequenos.
Tornar-se mulher, tornar-se homem
Sobre concursos de miss e identidade sexual
A temporada é de certames de beleza, não mais o antigo e popular Miss Universo, mas uma série de versões de concurso de miss, que vão dos reis e rainhas de escolas e festas temáticas aos concursos de modelo. Miss hoje se chama modelo e tem no mínimo cinco anos menos que sua predecessora. No mundo da beleza as adolescentes imperam.
Quem tem medo de teatro
Sobre o Porto Alegre em Cena em 17/09/2003
Na peça Hamlet há uma passagem na qual se encena uma apresentação teatral, ficando seus personagens colocados na função de espectadores. Hamlet providenciou esta representação e instruiu os atores para que a cena do assassinato de seu pai fosse reproduzida tal qual o fantasma lhe revelou que havia ocorrido. Para ter certeza de que seu tio e padrasto era realmente o culpado, durante a peça pôs-se a observar o seu comportamento. A reação violenta deste frente à encenação, funcionou para Hamlet como uma confissão do crime, reforçando sua determinação de vingança. Ao criar esta cena, Shakespeare supôs o espectador como personagem do drama, se ele se sentir tocado é porque no palco algo tomou forma. O teatro realiza tudo aquilo que a realidade virtual promete, você dentro da ficção. No teatro o ator e o personagem estão de corpo presente, não tente comer pipoca ou aproveitar o escurinho para uns amassos, eles estão te vendo. O ator só poderá trabalhar se conseguir ser um só com seu personagem, acreditar-se nele, como aquele que mente tão bem que acredita no que diz. É uma experiência particular ver surgir diante dos olhos, sem edição nem efeitos especiais, um personagem convincente. Quando o ator entra no palco ainda não acreditamos em seu personagem, mas minutos após já esquecemos essa duplicidade e embarcamos na sua ilusão. Fascina-nos a falsa realidade dos reality shows, tanto quanto nos angustia a veracidade da mentira no trabalho dos atores. Se o fingimento deles é tão convincente, onde está então a verdade do que somos?